Tornar-se espectro

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

“Imaginariamente, a Fotografia (aquela de que tenho a intenção) representa esse momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo então uma microexperiência da morte (do parêntese): torno-me verdadeiramente espectro.” 

Roland Barthes, em Câmara Clara, página 27. 

Toda fotografia é uma imagem que carrega o espectral: a morte. O instante fotografado jamais será vivido novamente; assim jaz um tempo que passou, um tempo qualquer. Como o verde do capim, o tempo exato do fim do solstício de tal ano, o passeio com as antigas crianças, etc. 

Nesse momento único — o foco —, o fotógrafo, representando o seu olhar delirante de coveiro, enquadra e aprisiona o flagrante: o erro da pose, o silvo do vento no vestido comprido da senhora, a alegria de êxtase do casal e o retrato pálido pendurado na lápide. No caixão, a perfeita sincronia da candura de um corpo frio em profundo sono; eterno, deita-se em pose de mãos cruzadas em agradecimento, pois quer sua última fase serena. 

Assim como em Roland Barthes, a imagem fotografada é carregada de sentidos; o material revelado se desgasta, o papel corrói, mancha, se perde. A contribuição do tempo é feroz e dizima as esperanças de saudades dos familiares e dos personagens, que envelhecem como o papel, mas de maneira diferente: a carne apodrece e morre, a fotografia é a própria morte — ficando banguela, rasurada, rasgada, acariciada e pingada de lágrimas. Seus dias estão contados desde o momento inicial do clique. A fotografia já é o espectro. 

Na câmara escura de outrora, buscava-se a beleza no breu. Na Câmara Clara, Roland Barthes encontrou a essência, o cheiro da reprodução analógica que se perpetua na era digital: o jazigo dos vivos, o enclausuramento da finitude. A procriação do sepulcro. O mantenedor da reprodução do padecimento. 

Sendo assim carcomida, como o corpo do morto no meio do álbum que a mãe balança no colo — aquele cemitério de gentes e paisagens que já se foram — toda fotografia é um fato post-mortem

Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo

 
 

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