Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

5º relato

O desassossego noturno retornou para açoitar-me.

Inicio meu relato desculpando-me pelos prováveis lapsos de memórias e confusões textuais, pois esse texto reflete meu estado de espírito perturbado — o registro começou minutos após os eventos.

Eu, notívaga inata e teimosa em semelhante proporção, insistia em lutar contra a minha natureza. Contudo, compreendi que a noite não me trará descanso, mas poderá ser aliada nas minhas aventuras por lugares desconhecidos, internos ou externos a mim.

Contarei sobre um evento terrível e curioso, onde tive que enfrentar os limites da realidade. Novidade! Escavei coragem de um solo árido, até então, nunca regado por mim.

***

Algumas horas antes

Os sonhos arrastavam e sugavam-me para um oceano revolto por correntezas perfurantes. O despertar foi acompanhado de um grito. Gélido ar aspergia lâminas que perfuravam minha pele desnuda, mas as janelas estavam, hermeticamente, fechadas. De onde provinham?

Gritei por Lisa. Nada. Onde ela estava? Já prevendo outra incursão pelos recônditos do Castelo à procura da gata que tinha paixão por entrar em enrascadas, apoiei meu pé direito para levantar-me e o chão quase me paralisou, tamanha frieza com que me recebera.

Estranho. Não lembro de ter presenciado frio tão intenso desde que chegara aqui, mas imaginei ser normal. O chão estava coberto com uma textura peculiar. Ao passar suavemente o pé naquela superfície, ouvi um farfalhar, algo macio, gelado... Neve! O assoalho era um campo nevado!

Não confiei estritamente no tato, meus sentidos estavam diferentes. Não era? NÃO ERA?! Poderia confiar nos meus olhos? Acendi o abajur e a luz iluminava o tapete de gelo, entretanto, permanecia não acreditando no que estava vendo, sentindo.

Estabilizei meus pensamentos. Óbvio que eventos bizarros acontecem no Castelo, por que eu estou surpresa? Vesti um casaco longo de lã em tom de caramelo e uma calça preta justa em um tecido quente e escuro; para aquecer o pescoço, enrolei um lindo cachecol xadrez macio e completei o look calçando as botas de couro preto de cano alto. A quem pertencia aquelas roupas? Saí do quarto e embrenhei-me pelo corredor, cujo chão também estava revestido de neve límpida.

Enquanto percorria os imensos corredores do Castelo, recordava o último encontro com o Drácula: o momento que estava diante das três portas, que ele havia me ofertado, mas nas quais não adentrei. Será que ele havia ficado chateado com a minha rejeição? O que ele poderia fazer com Lisa? Vampiros podem alimentar-se do sangue de animais? Afastei o último pensamento, bobagem pensar que a criatura elegante poderia agir de forma tão vil.

Afligida pela dúvida, segui em direção àquele salão. Tudo estava diferente. Não era mais um salão de festas suntuoso, adornado de luxos e enfeites dourados. Diante da frustração de não encontrar a minha Lisa, nem as portas ou o Drácula, fechei os olhos e, ao abri-los, percebi estar na área externa do Castelo, no jardim!

Guiada pela maldita curiosidade, vasculhei ao redor. O luar iluminava a vegetação esverdeada, sem vestígios de que ali houvera caído neve. Passei pela estradinha com pedras âmbar, a mesma que havia utilizado quando cheguei aqui, mas agora descendo em direção ao portão principal. A temperatura estava amena e senti tanto calor que retirei o casaco e o cachecol.

A caminhada seguia perturbada por pensamentos terríveis, cuja racionalidade insistia em questionar o porquê daquelas alterações bruscas de temperatura e condições climáticas. Calei essa voz que gritava por explicações, pois este local não segue leis e princípios conhecidos.

Cheguei ao portal. Suas folhas eram como espelhos retangulares preenchidos por uma substância semelhante à névoa negra, pulsava e parecia ferver. Aproximei-me, sussurros incompreensíveis me instigaram a tocar na cascata nebulosa. Deveria? Óbvio que não! Mas eu me permiti ir além.

A névoa envolveu-me por completo, preencheu cada centímetro do meu rosto, cabelo, membros e tronco, e sentia-me levitar. Meu corpo, tomado por aquela força ficou em posição horizontal, flutuando. Primeiro foi a minha cabeça que passou por um dos retângulos-folha. Ao longe avistei uma criatura horrível, sem olhos, pele translúcida e com tantos dentes pequenos e afiados que mal podia contá-los.

Sustentada pelo medo-força atravessei, sem de fato mover nenhum músculo, o limiar que separava o Castelo do “Nenomium”, um lugar onde coisas ainda mais impossíveis poderiam acontecer. Amaldiçoei, novamente, a minha curiosidade!

Terminada a transição, percebi que a única coisa que me pertencia era o amálgama de sentimentos, mas agradeci por não ter largado o casaco e o cachecol, pois do outro lado estava deveras frio.

A criatura horrível permanecia inerte, mas sorria de forma a gerar um insensato desconforto, e em fração de segundos, devido sua agilidade excessiva, locomoveu-se e parou frente a mim. O fato de não conseguir sondar seus olhos inexistentes aumentou meu receio.

Agarrou-me pelo pescoço com tanta brutalidade que pensei ser o meu fim. Foi quando ela apareceu, alta, esguia e coberta com longo manto negro, que conferia-lhe um aspecto misterioso, imponente. Uma mulher, acompanhada de dezenas de cabras negras, surgida do além para livrar-me das garras da criatura sem olhos. Com voz firme ordenou para que ele me soltasse. E tal como um servo fiel e obediente abriu de imediato as mãos constituídas de dedos compridos e pele descamadas. Fui ao chão.

Havia sido por pouco. Ao contrário do que costumam dizer, talvez como forma de romantizar a partida, o desespero causado pela aproximação da morte não te faz recordar nada, eu lutava tanto pela minha vida que não tinha tempo hábil para pensar nas coisas passadas. Arrependimentos não foram companheiros.

Recobrei o ar e o pouco de dignidade que ainda me restava. Em todo momento a mulher permaneceu quieta, observando-me. Quando consegui reconstruir a minha eu interior, perguntei seu nome e recebi um silêncio constrangedor como resposta. Teci mais algumas perguntas, as quais nenhuma resposta recebia. Perguntei por Lisa, e ela apontou para o portal, entendi que ela estava no Castelo. Quase morri por uma missão inútil!

Agora, pensando com calma, pergunto-me se eu realmente iria morrer. Tudo aqui é fantástico, não seria a morte uma possibilidade de viver outras vidas, um renascimento carnal e espiritual? Por que eu ainda tenho medo?

Voltemos ao relato. Explicou-me o que era o “Nenomium”. Por fim, disse-me que eu tinha duas opções: ficar naquele local e descobrir verdades almejadas ou voltar para o Castelo e para Lisa. Eu estava realmente preparada para enfrentar situações adversas e desconhecidas? Não! Eu não estava pronta, e não ignorei os meus instintos de sobrevivência, aquela noite já havia me proporcionado emoções intensas e meu pescoço ainda doía. Levantei-me e segui com passos firmes em direção ao portal para retornar ao Castelo. No entanto, ao recordar-me de me despedir, virei-me, mas a mulher misteriosa já não estava lá. Um calafrio percorreu minha espinha e então corri. Não podia depender da sorte novamente: encontrar outra vez aquela criatura voraz não era algo que eu pretendia arriscar.

Do outro lado, de fato, encontrei Lisa. Jazia em frente à porta principal. Seu corpinho estava retorcido, aproximei-me e vi o fio vermelho da vida escorrendo de sua boca. Quem a machucou? Aquela maldita criatura?

Gritei por ajuda. Após muitos gritos e lamentos, Drácula veio ao meu encontro. O rosto impassível emoldurava um sorriso aterrador, imaginei que por culpa e o impedi de se aproximar. Ele ficou me olhando, sem mover um músculo, como que a contemplar meu sofrimento. Esperou eu ficar mais calma e então disse que meu sangue poderia curá-la. À princípio, hesitei, isso era absurdo! Depois refleti:

Que mal poderia fazer? O sangue poderia sim ser a corda com a qual eu a salvaria do abismo que sugara sua frágil vida...

 Procurei por um material pontiagudo nos meus bolsos, e é claro que não encontrei nada. Aquelas roupas nem eram minhas! Drácula fitava-me com um olhar que agora entendi ser de compaixão. Na incerteza da sua culpa, cedi. Aceitei os dentes dele cravados em meu pulso, uma leve fisgada seguida de um frenesi instantâneo e indescritível. Não era prazer, orgasmo ou euforia, mas ao mesmo tempo era tudo isso.

Eu o deixaria sugar toda a minha energia, a sensação de não sentir dor, agonia ou tristeza mantinha-me em posição servil, silente. Mas ele cumpriu o combinado, parou o ritual a tempo. O braço perfurado liberou o líquido, o elixir salvador foi vertido na boca da indefesa Lisa. Ela, como quem desperta de um sonho profundo, abriu os olhinhos brilhantes como um céu estrelado. Aproximou-se de mim, delicada, esfregando-se em meu peito, como se pudesse sussurrar um agradecimento mudo pelo sacrifício. Eu chorava e sorria, um turbilhão de emoções dançava em meu ser, enquanto meus olhos buscavam os dele — Drácula!

O que ele fez comigo? Seus olhos, um enigma sombrio, carregavam segredos que eu não podia decifrar, mas havia algo diferente, algo que atravessava o silêncio entre nós. Um laço invisível, inquebrável, parecia nascer ali, conectando-nos de forma mais profunda do que jamais imaginei. Éramos agora partes de um mesmo destino, entrelaçados pela eternidade.

E Lisa, como um raio de sol após a tempestade, está linda e melhor do que nunca.

Texto publicado na Edição 13 da Revista Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2025. → Ler edição completa

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