Plácido
Desde que entramos em quarentena, nunca mais fomos os mesmos. Dia após dia, nossa sanidade foi cruelmente usurpada pelo desconhecido. Sem que pudéssemos revidar, fomos algemados pelas perversas mãos do invisível, aprisionados em nossas próprias casas. Ao mesmo tempo, a falsa ideia de “proteção” nos dava algum consolo.
Enquanto isso, o terrífico vazio reina imponente sobre os escaldantes paralelepípedos; os únicos sons que se ouvem são o soprar da brisa marítima, que parece vir das profundezas do mar, espalhando os grãos de areia por todas as esquinas e ruas, precipitando-se por entre as frestas dos desgastados paralelepípedos.
Minha casa fica em uma íngreme ladeira, próxima à placa de boas-vindas da vila. Devido à impiedosa maresia, não é possível mais ler a placa, mas, com muito esforço, é possível enxergar entre a ferrugem a vogal “P”.
Minha casa é simples, assim como todas as outras. Possui um terraço feito de cimento queimado, uma rede dobrada sustentada por antigos armadores e uma cadeira de balanço. A sala é de bom tamanho; um sofá marrom de camurça ocupa o centro, próximo à porta, junto a uma poltrona, e em frente ao sofá há um rack com uma televisão de trinta polegadas. Acima do rack, algumas lembranças em fotografias. Mais à frente, uma mesa talhada em imbuia com quatro cadeiras. À esquerda, os quartos; à direita, uma cozinha.
Por minha casa ter uma boa localização, consigo enxergar quase toda a vila e sua natureza exuberante. A vila é cercada por imensas falésias cobertas de gramíneas, e acima delas, belos e frutíferos coqueiros bailam suavemente perante os ventos.
Vivo sozinho desde o fatídico dia em que minha família precisou fazer uma viagem de emergência, dois meses antes do isolamento. Nosso primo havia passado muito mal, acometido por um grave quadro de arritmia, e precisou ir ao hospital o mais rápido possível. Fiquei cuidando da casa; eles confiavam muito em mim. Toda noite, porém, sou assombrado por devaneios. Será que estão bem? Como anda a saúde de meu primo, a quem tenho tanta estima? Será que estão vivos?... Se algum dia tudo voltar ao normal, tentarei ser uma pessoa melhor.
Os dias são iguais; tudo se tornou monótono, como um interminável e solitário entardecer de domingo. Às vezes ligo a televisão, mas as notícias são desanimadoras, o alerta para não sair é torturante. Apesar de ser uma vila muito afastada, não irei arriscar sair e algo acontecer. Ouço com apatia o tique-taque do relógio, que anuncia a chegada de mais um anoitecer.
A noite se tornou para mim o pior momento do dia. É desconfortável olhar e ver os bancos das praças vazios. Se eu fechar os olhos, consigo ouvir pessoas caminhando, sorrisos, crianças correndo, até mesmo o cheiro amanteigado do carrinho de pipoca. Agora, porém, a desolação ocupa a praça.
Debruçado na janela, observo com profunda melancolia e recordo com pesar momentos felizes. Meus olhos se perdem naquela rua escura, mas algo me tira do calabouço de memórias: escuto um arrepiante som vindo de alguma das longínquas casas. Era uma porta que acabara de ser aberta; o ranger foi ouvido por toda a vila, e meus olhos arregalados procuram a origem do som, sem êxito.
Não importa qual seja o motivo — desespero, revolta ou curiosidade — o fato é que há alguém lá fora. Eu ouvia os passos com uma certa fascinação mórbida. Os passos, que começaram acanhados, se tornaram mais acelerados. Em meio àquele breu, os primeiros traços surgiram. Tratava-se de um homem alto, branco, de cabelos curtos, trajando pijamas em tons de bege, que caminhava desorientado. Em determinado trecho, ele parou, olhou para trás e formulou frases inaudíveis. A pálida lua salientava seus olhos apavorados, que pareciam querer saltar das órbitas. Sua expressão terrífica era assustadora. Outros moradores também observavam pelas frestas de suas casas. Ele clamou por ajuda, mas sem êxito; eis que uma voz ecoa, alguém lhe pedindo para que voltasse, mas ele ignorou o pedido.
Ainda ali, com os olhos imersos na fechadura, noto que o homem continua na mesma posição, mas algo o faz olhar bruscamente para trás. Ele eleva as mãos aos céus, em desespero, e depois baixa a cabeça, lamentando sua escolha. Realmente havia algo lá fora. Ele continuou a correr, falando frases desconexas; sua respiração tornou-se mais debilitada. Prosseguiu por mais alguns metros, mas não o suficiente, pois seus pulmões começavam a falhar. Contemplo enquanto seu corpo lentamente cai de joelhos e, antes de sucumbir, ele profere a seguinte frase: “Não saiam! Pois Ele está à espreita, e quem desobedecer será severamente punido.” Após dizer isso, seu corpo cai sobre os paralelepípedos.
Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo
Pablo é um escritor nascido no Nordeste do Brasil, em João Pessoa. Possui uma escrita bastante carregada em angústia, com a essência do terror, horror e ultrarromantismo. Sua paixão pela Literatura Gótica começou na infância. Algumas de suas referências literárias são: Mary Shelley…
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