Desconstrução
A construção estava em ruínas. Aquela casa devia ser mais velha que o mundo. Os matos cresciam desordenadamente e tomavam conta dos espaços vazios, reclamando silenciosamente a posse do imóvel – essa obtida por usucapião indevido – mas o imóvel não ousava protestar contra tal invasão e, nessa dinâmica mutualística, a casa já não sabia o que era ela e o que era mato.
Após anos dessa disputa muda, o Banco também resolveu reclamar sua posse. O antigo e inexistente ex-proprietário não tinha herdeiros, mas sua dívida permanecia mais viva que nunca — e que ele. Algo precisava ser feito; o Banco não podia ficar com esse prejuízo, coitadinho!
Foi expedida uma ordem de demolição. O terreno ficaria livre da velha construção, do matagal invasor e, consequentemente, de toda espécie de insetos e bichos que tanto atrapalhavam a vizinhança. Todos seriam contemplados pela decisão de uns poucos acionistas preocupadíssimos com o bem-estar da comunidade.
A empresa de demolição foi escolhida a dedo, não porque fosse a mais qualificada – talvez até fosse – mas o fato era que o sobrinho do acionista majoritário precisava dessa força. Quem poderia se opor ante tanta ajuda humanitária?
Geraldo, o encarregado do procedimento que aconteceria naquela casa, era um dos funcionários mais dedicados e experientes daquela empresa. Pai de dois meninos, ele tinha terminado o relacionamento com a ex-companheira há cinco anos, mas mantinham uma relação amistosa.
Obtivera ordens expressas para conduzir impecavelmente aquela ação. Como se o sobrinho do acionista majoritário precisasse reforçar pessoalmente as ordens e garantir que tudo transcorreria da melhor maneira possível, ele compareceu pontualmente ao local no dia marcado.
Em procedimentos desta natureza, era comum a empresa separar peças reaproveitáveis, tais como louças dos sanitários, pias, janelas, portas e qualquer outro móvel que ainda estivesse nos imóveis e em condições de uso. As peças eram então revendidas para casas de materiais para construções usados.
Tudo estava seguindo o planejamento; todos já estavam presentes e devidamente munidos de seus EPIs e ferramentas. Os caminhões, que levariam os entulhos e as possíveis peças reutilizáveis, já estavam a postos. A demolição ia começar!
Após entrarem naquele imóvel, todos ficaram surpresos com o que avistaram: internamente, aquele lugar não condizia com a aparência externa. Estava, de certo modo, limpo, sem insetos, teias de aranha ou qualquer outro indício que sinalizasse um local abandonado, como era de fato. De repente, parecia que estava iluminado por uma luz que não emanava de lâmpadas, mas como se o teto tivesse sido removido e a claridade externa tivesse tomado conta do local. Não era a claridade de sol do meio-dia, mas a luz levemente alaranjada de um belo entardecer. As janelas e portas permaneciam fechadas.
Parecia ser maior e com mais cômodos do que se imaginava. Ao chegarem a uma das salas, no canto direito de quem entra pela porta interna, havia uma mesinha com um computador ligado. Não havia qualquer fio conectado à tomada, mas ele estava ligado. Não era de um modelo atual e nem conseguiam identificar se era algum modelo antigo, pois os celulares e qualquer outro aparelho que portavam não funcionavam mais. O monitor era hexagonal e, pelo que se sabe, nunca houve na história dos computadores um monitor nesse formato. Não havia periféricos, mas somente a aproximação de alguém já fazia o cursor mover-se na tela. Tudo o que eles diziam era “digitado” e o texto era exibido na tela.
Indagavam-se que tipo de máquina seria aquela. O sobrinho, ao ver aquele estranho aparelho e suspeitando ter obtido uma tecnologia superior, aproximou-se bruscamente do computador e, ao tocar no monitor, desapareceu — não o monitor, mas ele — como se houvesse entrado por um portal oculto. Os homens ficaram apavorados. Uns tentaram correr, mas, ao tocarem na porta principal de entrada, também desapareceram.
Geraldo permanecia inerte, observando catatônico a cena. Ao olhar para a tela, percebeu que não era mais exibido o “prompt”, mas uma espécie de simulação 3D daquela sala. Ele era o único naquele plano terrestre. Na tela, todos os seus companheiros estavam correndo e gritando desesperadamente. Não se ouviam os sons, mas era possível ver as aberturas descomunais de suas bocas. Na sala, ele continuava imóvel, sem saber como agir dentro do imóvel.
Ouviu vozes e, após alguns segundos, as reconheceu: eram os seus filhos. Um medo crescente e perturbador percorreu todo o seu corpo; sentia cada batida de seu coração a saltar-lhe o peito. Conseguiu mover-se. Correu até a porta principal de entrada. Parou. Lembrou-se que todos que a tocaram desapareceram. A maçaneta começou a girar lentamente; ele precisava agir, não permitiria que seus filhos entrassem naquele local. Por impulso ou não, segurar a porta foi seu último movimento.
Na tela, era possível ver um Geraldo gritando mudo e desesperado.
Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo
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