Iter
Não importava que o mundo estivesse em lockdown, Dario passava todos os dias pela curva atrás do mercado. Era o caminho mais rápido para o seu trabalho: o hospital. As ruas, antes cheias de vida e barulho, agora eram corredores vazios, como se a cidade estivesse presa em um pesadelo interminável. Todos aqueles que não precisavam sair de casa estavam dentro delas. As janelas fechadas e as portas trancadas pareciam observar Dario com um silêncio pesado, como se o isolamento tivesse tornado o próprio ambiente um vigia silencioso. Algumas casas, às cinco da manhã, ainda estavam com as luzes acesas. Ou será que seus moradores tinham acabado de acendê-las?
Dario tinha a impressão de que nunca saberia isso, pois passava exatamente no mesmo horário por ali, e a luz já estava acesa. O vazio ao redor o fazia sentir como se estivesse sendo sugado para dentro da própria monotonia da rotina. Isso ele conseguia aceitar. O que realmente gostaria de saber era por que raios sempre se perguntava a mesma coisa toda manhã? Por quê? Nunca obteria a resposta, a não ser que acordasse antes ou se atrasasse, tendo a imensa sorte de passar por ali no exato momento em que os donos da casa estivessem apagando ou acendendo a luz. Mas, mesmo se descobrisse, isso realmente mudaria alguma coisa? A cidade parecia suspensa no tempo, sem espaço para surpresas, apenas a repetição constante de sua própria solidão.
Gostaria de ter um amigo matemático só para calcular as probabilidades de isso acontecer. Santo Deus! A tática de pensar bobagens para não pensar no caos e no horror que o hospital estava — com vítimas de COVID que não paravam de chegar, gente morrendo nas filas de espera, a nulidade de leitos disponíveis, e ele arriscando a própria vida todos os dias na linha de frente — estava funcionando bem demais. Que tipo de médico sem coração eu sou? Pensar essas idiotices enquanto tantas pessoas morrem todos os dias, a cada momento... Que babaca eu sou.
Ele já havia dobrado o plantão, ido para casa, dormido por quatro horas, e ali estava, passando pela curva atrás do mercado. Hoje, a luz da casa rosa não estava acesa. Sentiu-se estranhamente motivado a olhar para as janelas, reparando que eram amplas. Não havia cortinas. Parecia que os moradores tinham se mudado.
Ou talvez estivessem mortos. Outro dia, ele pensou ter visto um vulto com máscara observando-o lá de dentro. Na ocasião, achou que era coisa de sua cabeça. Ao olhar melhor, viu que as cortinas estavam fechadas, e era apenas o padrão da estampa delas que parecia uma pessoa parada, de máscara, em pé. Sorriu ao perceber que chegava novamente ao impasse de não obter respostas sobre a casa rosa, nem sobre os moradores ou as luzes.
Na volta do hospital, ele nunca passava pela casa rosa, mas desta vez decidiu passar. Lera certa vez em uma revista de neurologia que mudar os caminhos que percorremos habitualmente pode prevenir ou retardar o aparecimento do Alzheimer. Quando passou em frente à casa rosa, desta vez no lado da pista que ficava ao lado dela, viu que havia alguém sentado nos degraus da varanda. Usava um chapéu de abas largas, roupas pretas e uma máscara de tecido branca.
Era sua chance! Decidiu frear e parar em frente à casa. Seu intuito era falar com o morador. Se identificaria como médico, essa era a desculpa perfeita. Perguntaria se ele estava bem, puxaria papo e aproveitaria para perguntar sobre a casa. Sim, sim, era o plano perfeito. Foi isso que pensou enquanto apertava o botão para desprender o cinto. Abriu a porta do carro olhando para a maçaneta — sempre evitava contato visual quando pensava no que iria dizer. Porém, ao dar o primeiro passo em direção à varanda, notou que a figura com o chapéu de abas largas já não estava mais lá. Devo estar me esforçando além dos limites do meu próprio corpo, pensou, nem sequer ouvi a figura se levantar, caminhar, abrir a porta e fechá-la. As luzes da casa rosa estavam apagadas. Dario pensou que não haveria mal nenhum em espiar lá dentro, quem sabe descobrisse algo. Dessa forma, ficaria satisfeito e esqueceria o assunto.
Aproximou-se pé ante pé. Chegou a pensar em parar e retornar para o carro, ir para casa, telefonar para a recepção e avisar que tiraria o dia de folga. O julgamento de Hipócrates o impedia de trabalhar mais. Estava tão estafado que, com certeza, mataria alguém se continuasse a trabalhar. Mesmo querendo ajudar, ele não poderia ultrapassar os limites do próprio corpo. Além disso, aquilo baixaria sua imunidade e ia contra o juramento de Hipócrates.
Mas só faltava um passo para alcançar alguma visão da janela, e ele continuou. A curiosidade sobre a casa rosa — uma casa que, a princípio, era muito parecida com todas as outras — precisava ser sanada. Ela era como uma coceira em seu cérebro, muito mais torturante que o cansaço que estava sentindo.
Foi então que ele viu: uma cadeira e uma corda enrolada sobre ela. Somente isso. Não havia mais nada no cômodo, só isso. A porta que dava para o interior da casa estava fechada. Ele sentiu um aperto no peito. Aqueles objetos o levavam a uma conclusão óbvia: a figura de chapéu era alguém que planejava se matar.
Novamente, Hipócrates o obrigou a bisbilhotar mais. Olhou em direção às casas vizinhas. Já passava da meia-noite, e era época de lockdown. A casa à direita ficava muito distante, e pela janela ele podia ver luzes que pareciam ser de uma TV piscando. A casa à esquerda era amarela, com muitas margaridas plantadas ao redor. Também havia girassóis. Mas, naquele horário, estava tudo desligado e fechado. Parecia ser a casa de algum casal de idosos, que não teria a mínima chance de ouvir nada. Será que algum vizinho sabia o que acontecera com os moradores da casa rosa? Será que havia moradores ou era apenas aquela figura? Porra, eu nem sei se é homem ou mulher.
Decidiu parar de pensar e agir. Se aquilo que ele presumia fosse verdade — e ele tinha quase certeza de que era —, por que mais alguém disporia aqueles objetos daquela forma? Dirigiu-se até a porta principal e girou a maçaneta. A porta estava destrancada. Um pedido de socorro silencioso? Um grito do subconsciente daquela pessoa implorando por ajuda? Talvez... Seus instintos de médico estavam emergindo. Sentia que, pouco a pouco, estava ativo, desperto e atento. Por isso, ouviu alguém derrubar algo muito pequeno na sala. Talvez, sob outras condições — aquelas de antes do lockdown, quando ele ainda não era o médico fatigado e ansioso de agora —, talvez ele não desse atenção ao pequeno barulho. Começou a suar frio e a se arrepender daquela decisão. Quem quer que estivesse ali poderia ser perigoso e ter a mente perturbada...
Alguém acertou sua cabeça com toda a força. Dario despertou no carro, fazendo novamente a curva atrás do mercado. Quando seus olhos pousaram sobre a casa rosa, notou que as luzes estavam apagadas. Foi tudo um pesadelo então? A casa, a cadeira, a corda... Ele se perguntava como tinha ido parar ali de novo. O desconforto crescia, e ele decidiu estacionar para verificar. Precisava ver se a cadeira e a corda ainda estavam lá. Seu corpo estava tenso enquanto caminhava. Ao se aproximar da janela, seu coração acelerou: a cadeira e a corda permaneciam no mesmo lugar, dispostas exatamente como antes.
Desta vez, o medo o corroía de forma diferente. Sua mente gritava para se afastar, para ir para casa. Pensou imediatamente na sua família — e se aquela figura me atacar de novo? Ele imaginou Alícia e sua esposa sozinhas, esperando por ele. Fazia três meses que o lockdown havia começado, e ele mal as via, exceto nas breves horas de descanso. Ainda assim, sentia que sabia mais sobre Mari, a enfermeira do hospital, do que sobre sua própria filha Alícia. Afinal, por que diabos eu não consigo parar?
Mesmo sabendo o que provavelmente iria acontecer, ele girou a maçaneta da porta com o máximo de cuidado, o coração batendo forte. Sentiu o formigamento nas extremidades, a ansiedade apertando-lhe o peito. Ele respirou fundo e entrou, os olhos escaneando o cômodo vazio. Então, um clarão. E, de repente... estava de volta ao carro, mãos no volante, como se nunca tivesse saído de lá.
O carro estava em movimento, a caminho do hospital. As ruas estavam desertas, imóveis, como se a vida tivesse sido drenada de cada esquina. Um medo crescente continuava a corroer sua alma. Suas mãos estavam firmemente presas ao volante, mas ele as sentia molhadas, bem como seu peito por debaixo da camisa. As vitrines dos comércios, uma vez cheias de movimento e cores, agora eram apenas silhuetas vazias e opacas, lembranças do que já fora uma cidade viva. Sabia que era por causa do isolamento, devido à pandemia, mas sentia que algo estava errado.
Olhava para as janelas das casas e, de repente, via diversas silhuetas, todas com máscaras, mesmo dentro de casa. As sombras nos prédios pareciam observá-lo de dentro dos apartamentos escuros, como se o vazio da cidade o julgasse silenciosamente. O medo imperava em cada olhar; as ruas, sem alma, pareciam conspirar contra ele, como se a própria cidade quisesse expurgá-lo. Por que todos estavam observando o seu carro? Eram olhares de julgamento. Mas eu sou médico, caralho! Estou fazendo a minha parte. Olhou para o timer do painel do carro; eram 13:36 da tarde. A essa altura, Alícia e Rebeca já teriam almoçado? 13:36! Ele já deveria ter batido o ponto há horas! Pisou no acelerador e, de repente, na próxima curva, lá estava ela: a casa rosa. Desta vez, com as luzes acesas.
Lá dentro, Alícia, Rebeca e um homem, que ele não soube dizer quem era, almoçavam. As duas sorriam e conversavam animadamente. À medida que se aproximava, notou que o homem vestia suas roupas, tinha a mesma cor de cabelo que ele, os mesmos trejeitos. Quando o estranho se levantou, antes que ele fechasse a persiana, notou, com horror, que era um cara igual a ele — só que muito mais feliz! Por Deus! O que estava acontecendo? Quem era aquele? Sou eu que tenho de estar lá, e não esse cara. Mas o hospital o aguardava. Apesar de estar acelerando, fechou os olhos por alguns segundos, enquanto uma solitária lágrima de desespero e culpa escorria. Quando abriu novamente, a casa rosa estava como antes, luzes apagadas; não quis parar dessa vez e seguiu para o seu trabalho, já que estava atrasado. Por que será que Rebeca não o acordara esta manhã para ele ir trabalhar? Será que ela já não se importava? Depois que a pandemia começara, ele não tivera tempo de conversar com ela. Mas o hospital o aguardava; o juramento de Hipócrates cobrava o seu preço. Ele devia salvar vidas, sua esposa e filha poderiam entender. Elas entendiam?
Ao chegar no hospital, um pouco de normalidade se fez presente; a realidade batia à porta! Muita gente se acotovelava na recepção do hospital, dezenas de pacientes aguardando para dar entrada, acompanhados de parentes desesperados. Dor, miséria e desespero por todo lado. Ele pegou o jaleco no banco do carona e desejou, mais do que nunca, estar com sua família. Será que, enquanto ele trabalhava, havia outro no lugar dele? Buscava, sem sucesso, tentar entender o que estava acontecendo, mas o que ele acabara de experienciar ia além dos limites da sua razão. Quando pisou no saguão do hospital, uma mulher magra e desesperada agarrou o seu braço:
— Doutor! Doutor! Por favor, leva o meu esposo pra dentro com o senhor, senão ele vai morrer; ele não tá conseguindo respirar.
Dario olhou para a mulher apontando para o paciente, um homem que estava com as mãos no peito, cambaleando. Gritou, e algumas enfermeiras acudiram rapidamente, enquanto uma pressionava o ambu, ele realizava a manobra de ressuscitação. Quando olhou para o rosto do paciente, viu seu próprio, mas desacordado, pálido... Chorando, ajoelhada ao lado dele, não mais era a senhora, e sim Rebeca, desesperada e chorando. Não estavam mais no hospital; estavam em casa, ou melhor, na casa rosa. Um clarão tomou conta da sua visão; não quis parar, não queria parar a manobra. Rebeca não iria perdê-lo! Mas novamente não teve força e nem vontade própria para lutar contra a perda de consciência. Acordou novamente atrás do volante do seu carro. Novamente na curva atrás do mercado e em movimento.
Decidiu não olhar para a casa rosa; passou reto. Quando chegou até a esquina, ligou o pisca alerta para a esquerda. A decisão estava tomada; voltaria para casa para verificar a sua família. Apesar de gostar do seu emprego, da sua profissão, entendia que só trabalhava por elas, e se elas não existissem em sua vida, não havia motivo para continuar fazendo o que ele fazia. Iria para casa, abraçaria a sua esposa. Conversaria mais com Alícia. Mais tarde, ligaria para o hospital, dando uma desculpa, e reajustaria o seu horário; sua família também precisava dele.
Toda fotografia é uma imagem que carrega o espectral: a morte. O instante fotografado jamais será vivido novamente; assim jaz um tempo que passou…