A Última Xícara
Todo dia começava com a mesma rotina. Fábio acordava às 6h, bocejava, descia para a cozinha e preparava uma xícara de café forte. Isso era imutável, praticamente um ritual. O aroma do café se espalhava pela casa, trazendo uma sensação de normalidade e conforto. Mas naquela manhã, algo parecia estranho.
A casa estava absurdamente silenciosa. Fábio não era o tipo de pessoa que se deixava levar por sensações vagas, mas, naquele dia, ele sentiu uma certa tensão no ar.
Ele entrou na cozinha, mas, em vez de sentir o habitual conforto, foi envolvido por uma sensação de desconforto. O relógio da parede, que sempre marcava 6h15min naquela hora, estava parado. O ponteiro dos segundos, congelado. Fábio ficou confuso e balançou a cabeça, tentando ignorar a sensação de que algo não estava certo.
Ele pegou a cafeteira, encheu-a com água e a colocou no fogão. Tudo parecia normal por alguns segundos, até que o som da água fervendo soou mais alto, como se ecoasse em um vazio profundo. O cheiro do café começou a se espalhar, mas havia algo estranho nesse aroma. Um toque metálico que ele nunca havia sentido.
Fábio tentou ignorar e se serviu de uma xícara. Quando a levou aos lábios, uma sensação fria percorreu sua espinha. Ao inclinar a xícara, percebeu que o líquido dentro não era como o café que tomava todos os dias. Era espesso, quase como sangue.
Ele deixou a xícara cair, e o líquido derramou no chão, revelando uma mancha escura que não parecia café nem sangue, mas algo entre os dois. O pavor tomou conta de seu corpo, e ele deu um passo para trás, escorregando no líquido que agora estava vivo, movendo-se lentamente em sua direção.
O barulho do relógio ressoou na cozinha novamente. Agora, os ponteiros haviam começado a girar ao contrário. O tempo estava distorcido, e o ambiente ao seu redor se transformava. As paredes da cozinha começaram a pulsar, como se fossem feitas de carne viva, e o teto parecia afundar, aproximando-se dele lentamente.
Fábio tropeçou ao tentar correr, e, quando olhou para trás, viu a cafeteira. Ela não estava mais no fogão, mas no meio da cozinha, e do bico dela escorria um líquido negro, denso como piche. Era como se o café estivesse vivo, tentando alcançá-lo.
Desesperado, ele correu até a porta, mas ela não estava mais lá. Em vez disso, havia uma parede lisa, como se a porta nunca tivesse existido. Ele se virou lentamente, e, na penumbra, viu uma figura de pé ao lado da mesa.
Era ele mesmo.
O outro Fábio, idêntico em todos os sentidos, exceto pelos olhos vazios e negros. O outro Fábio segurava uma xícara de café, com um sorriso vazio no rosto, e sussurrou com uma voz grave e distorcida:
— Agora, você nunca mais sairá.
Antes que Fábio pudesse reagir, o chão abaixo dele se abriu, e ele foi engolido, sentindo o cheiro metálico do café ao seu redor, como se estivesse se afogando em um oceano de escuridão.
Na manhã seguinte, a cafeteira estava no mesmo lugar de sempre. A rotina havia sido restaurada. Mas quando os primeiros raios de sol tocaram a cozinha, Fábio não estava mais lá.
Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo
Residente de Dom Pedrito/RS, Cláudio Borba formou-se em Contabilidade e escreve contos de terror e poemas geralmente melancólicos. Ele faz parte de diversas antologias de contos e poéticas de diversas editoras. E atualmente trabalha para lançar seus livros de contos e poemas....
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