O Mímico do Cemitério
O cemitério daquela pequena cidade era um lugar de solidão. Todas as noites, ele era envolto em névoa, como se houvesse um manto translúcido cobrindo sua vegetação rasteira. Poucos ousavam visitar o cemitério à noite. Durante o dia, aqueles que atravessavam seus portões só o faziam por um motivo: enterrar seus mortos. Mas havia algo que afastava ainda mais as pessoas do cemitério: o mímico. Ele estava sempre lá, e ninguém lembrava desde quando. Sempre parado nos portões do cemitério, com suas roupas de luto desbotadas, o rosto coberto de maquiagem branca, olhos vazios rodeados de preto, assim como os lábios, pintados de negro, paralisados em um sorriso largo. Ali, parado no seu posto de serviço, sem nenhum movimento, como um cadáver muito bem preservado, ele seguia com os olhos vazios cada passo dos que se aproximavam. Assim que alguém entrava no cemitério, ele os seguia, imitando cada gesto, cada lágrima, espelhando cada lamento em silêncio, tão perfeito quanto uma sombra.
Ninguém sabia seu nome; os habitantes da cidade apenas o conheciam como “O mímico do cemitério”. As autoridades locais já haviam tentado expulsá-lo diversas vezes. Em uma dessas tentativas, um policial corajoso o algemou e o levou à delegacia. Ao tocar as mãos do mímico, o policial sentiu sua pele gelada e rígida. Um frio desconfortável percorreu todo o seu corpo. Levou o mímico até a delegacia e, naquele mesmo dia, abandonou o trabalho policial, sem olhar para trás. Ele ficara em custódia na delegacia diversas vezes, mas sempre escapava, e ninguém sabia como. Sempre voltava ao seu lugar nos portões do cemitério, onde seguia os enlutados, imitando todos os gestos até o túmulo, até o último choro junto ao caixão, caminhando ao lado deles com passos silenciosos. Quem tentava confrontá-lo logo percebia que era inútil; ele só parava de imitar quando saíam do cemitério.
Uma tarde, durante o funeral de um antigo morador da cidade, o mímico decidiu seguir a viúva do falecido, Dona Griselda, imitando todos os seus gestos. Ela o ignorou enquanto ele copiava cada passo seu, cada assentimento silencioso e cada lágrima enxugada, perfeitamente sincronizado. No final da cerimônia, o mímico a seguiu até em casa, como uma sombra. Griselda o considerava uma presença inofensiva, pois, pelo que sabia, ele nunca havia feito mal a ninguém, além de apenas imitar. Ele a seguiu, mas ela não permitiu que ele entrasse. O mímico pareceu entender e ficou do lado de fora. Mesmo sem ver os movimentos dela, ele continuava a imitá-la do lado de fora da casa. Griselda, de coração partido pela perda, sentia a ausência do marido com dor. Passou a visitar o cemitério uma vez por semana, sempre acompanhada do mímico, que a imitava, e ela o ignorava.
Certo dia, Griselda foi novamente visitar o túmulo de seu marido, acompanhada silenciosamente pelo mímico. Já irritada com seu comportamento, que até então ignorara, decidiu confrontá-lo. Assim que chegou à entrada do cemitério, olhou para ele e, irritada, pediu:
— Fica aí no portão e me deixe ficar a sós com meu marido. — Falou com uma irritação contida.
O mímico apenas imitou seus gestos, sua expressão e sua fala em silêncio, e continuou a segui-la até o túmulo. Griselda chegou ao túmulo e notou uma cova recém-cavada ao lado. Olhou, incerta do que fazer. De repente, o mímico parou de imitá-la e começou a chamar sua atenção com gestos rápidos, como se quisesse que ela entendesse sua mensagem.
— Escute, eu não entendo o que você quer. Apenas me deixe a sós com ele, só hoje, por favor. — Ela suplicou.
Observava seus movimentos frenéticos: ele colocava a mão direita no peito e fazia uma expressão de pavor, depois colocava as duas mãos juntas ao lado do rosto e inclinava a cabeça. Em seguida, apontava para a cova. Apontava para si mesmo e para ela, como se quisesse que ela o imitasse. Repetiu isso diversas vezes, até que Griselda se irritou.
— Me deixe em paz, palhaço! Não tenho tempo para isso hoje. Tenho que ver com o coveiro quem ousa ser enterrado ao lado do meu marido. — Ela se virou para ir em direção à saída do cemitério, quando sentiu um desconforto intenso no peito. Colocou a mão direita sobre ele, fez uma expressão de pavor e, em seguida, tudo se apagou. Escuridão.
Todos os seus movimentos foram repetidos fielmente pelo mímico, que, após o ocorrido, voltou ao seu posto nos portões do cemitério, parado, com seu sorriso congelado, apenas esperando por alguém para imitar.
Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo
Valesca nasceu no Rio de Janeiro (RJ), cursa Ciências Biológicas, encontra-se no último período. Tem paixão por ciências, subcultura gótica, livros, seres sobrenaturais, ficção científica, cemitérios, igrejas e morcegos, ela também é voluntária em um projeto de divulgação científica…
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