O Mímico da Insanidade

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

O escritor Ivan Insanlini vivia uma insalubridade mental desde o instante em que sua esposa partira de casa. Foram casados por quase duas décadas, e no último Natal ele descobrira que sua amada estava se relacionando com o chefe dela. Aquela interminável noite venenosa o moldou de uma forma jamais recuperável. Ivan se observava no espelho de seu quarto: um semblante cansado, olheiras profundas, o cabelo castanho oleoso, roupas desgastadas e uma memória crua e suja escorrendo pelo reflexo de sua instabilidade emocional, enquanto tudo aquilo se desenhava no vidro manchado pelo sangue das lembranças. Recordava o momento em que caminhou até a casa do suposto amante de sua esposa e a avistou da calçada. As luzes do quarto se acenderam, e sua esposa apareceu nua na janela. Aquilo o destroçou. 

Ele o viu prensando os seios de sua esposa no suor quente do vidro moldando a definição perfeita do seu busto que ele amava. Sentiu uma tontura absurda e, então, tudo se tornou embaçado; sua visão se afunilou, e ele se recordou de arrebentar a porta da casa, adentrando como uma chama infernal pela escada acima. Arrombando a porta do quarto, entre os gritos histéricos dela, viu o imprestável chefe dela, um senhor de idade, magrelo, vestindo uma samba-canção de corações rosa. O olhar insano do escritor gritava horrorizado, sem parar, até suas pupilas dilatarem. Sentindo-se freneticamente tomado por algo entre um infarto e uma convulsão, virou as costas e foi embora, quebrando tudo em seu caminho. 

Semanas depois, presenciou-a forçando as roupas em uma mala apertada e batendo a porta do quarto com violência. Agora, sozinho naquele apartamento obscuro, ele não consegue mais dormir, escrever ou se alimentar direito. 

Na quietude daquela sala profunda e desesperadora, clamava por socorro... 

Em meio à bruma noturna, ele está parado. Seu rosto, similar ao de um cadáver, exibe um sorriso congelado como o do escritor: uma existência febril e doente. 

Uma protuberância no ócio da ferida do ódio. Mórbido sentir. 

Silenciosamente artístico, o fúnebre olhar de uma vida vazia e profunda. 

Todas as noites, antes de dormir, e, quando conseguia, despertava nas madrugadas com aquela entidade disfarçada de mímico o encarando incansavelmente. 

O escritor se levantava e, no reflexo do espelho do banheiro, ele estava lá. 

No escuro do quarto, quando ele acendia a luz, ele estava lá. 

Quando ia para a cozinha, atrás da porta, ao acender o fogão, lá ele estava: no reflexo do celular, na entrada de casa, no brilho das panelas, embaixo da cama. Seu olhar ocre surgia pela parede, surdo, mudo, feliz, sorrindo, chorando, alegre, histérico, sempre fitando o escritor. Certa vez, o escritor percebeu que enxergava o mímico até nas palavras que escrevia. No reflexo da tela do computador e da antiga máquina de escrever que possuía em sua sala, via sangue escorrendo. A banheira também escorria sangue. Suas roupas estavam sujas de sangue. Seu rosto estava pintado de branco, com a tinta escorrendo, manchando os olhos, mesclando a tinta preta com a pele esbranquiçada, enquanto o vermelho pingava sobre a folha, escorrendo de seus olhos e de seu peito. 

Ele sucumbiu ao chão, chorando, esbofeteando-se, puxando o próprio cabelo, horrorizado ao olhar novamente no espelho. E seu maior medo se materializou: ele enxergava a si mesmo como o mímico. Correu até seu quarto e viu-se dormindo, enquanto o mímico emergia de dentro de seu próprio corpo. O que estava de pé saiu do observador, enquanto o observado permanecia deitado, com os olhos frenéticos se remexendo. Então, o mímico rasgou o peito do escritor que estava na porta, colocando as duas pernas para fora, apoiando-se para encontrar a saída das entranhas mortas daquela pobre casca. Sorria maliciosamente, com dentes pontiagudos se formando em sua enorme mandíbula. Aproximando-se da cama, que começava a tremer com fumaça saindo debaixo dela, o corpo deitado se debatia. O mímico se aproximou e mordeu o peito, arrancando-lhe o coração e, em seguida, devorando-lhe o rosto... 

O escritor acorda transpirando horrores, mas não consegue gritar. Ele tenta abrir a boca e percebe que está colada. Rapidamente se levanta e corre até o banheiro. No caminho, escorrega em algo no chão e cai de joelhos. Ao passar a mão, percebe que havia escorregado em sangue. Acende a luz e se depara com um enorme rastro de sangue que se estendia até sua banheira. Horrorizado, olha primeiro no espelho e se vê com o rosto pintado de branco, um preto forte ao redor dos olhos e a boca costurada com uma linha vermelha inquebrável. Seus olhos lacrimejam. "Urgh, urgh", ele tenta gritar, sem sucesso. 

Seu roupão preto estava pendurado no lugar da toalha, e ao lado dele, um suspensório preto e uma camisa branca lisa, ensopada de sangue... 

Ele se aproxima de seu box fechado do banheiro, ele enxerga sua máquina de escrever ali dentro com muitas moscas ao redor, voando. Ao abrir bem devagar o vidro temperado escuro da cabine da ducha, um odor absurdo lhe embrulha o estômago. No exato momento quando, próximo do ralo, embaixo do chuveiro, ele vê algo terrível, ele regurgita no mesmo instante em que observa, em cima de sua máquina de escrever, a cabeça de sua esposa apodrecendo com vermes saindo dos olhos e muitas moscas de seus ouvidos. Sua "amada" também tinha parte do comprido cabelo preto raspado, o rosto coberto por uma maquiagem branca e enormes esferas escuras no lugar onde costumavam estar os olhos. Seus lábios estavam costurados. 

O escritor nunca mais foi visto, mas as autoridades dizem que todos os que tentaram destruir sua máquina de escrever foram mortos após a tentativa, enquanto outros enlouqueceram, alegando ver um mímico parado atrás da máquina, sorrindo com sangue e acenando com o dedo indicador para que não tocassem nela. Havia uma folha em branco na máquina, escrita com tinta e com algumas partes manchadas de sangue, em letras de forma. Não se sabe com o que foi escrito, se com caneta ou algum outro meio... 

“Eu fui o ‘pantomimeiro’ da minha sombra, minha persona emulava, gesticulando como um bailarino sangrando, um escultor do exílio, um estripador de palavras, um silenciador oculto da poética dos psicomotores, a eletricidade do tônus, a motricidade ampla em uma fugaz tentativa temporal de um terror atemporal. A lateralidade, a sematologia existencial, uma simbiose niilista e esquizofrênica do caos, enquanto me tornava uma estátua da minha vida e da nossa relação fria e silenciosa. Tu te afastavas e te distanciavas de mim, e eu percebi que minha vida estava se apagando. Viver sem teu amor, ou sabendo o que fizeste, matando minha sanidade, fez-me perceber que mergulhei na insanidade do meu viver. A definição do amor é a insanidade desta pintura visceral…” 

Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo

 
 

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