Caos silencioso

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Naquela manhã, tudo parecia exatamente no lugar. Os mesmos móveis, as mesmas cores e o mesmo silêncio rotineiro. Maria, como de costume, preparava o café enquanto o mundo ao redor se mantinha em sua confortável repetição. Mas havia algo diferente, algo que ela não conseguia identificar. Um incômodo, sutil, como uma leve coceira na mente, que insistia em pedir atenção. 

Era um dia comum, mas algo dentro dela não estava. O reflexo no espelho da sala, por exemplo, sempre devolvera sua imagem fiel, mas hoje... o olhar estava diferente. Não era uma mudança óbvia, mas uma leve distorção, como se seus próprios olhos a observassem de um ângulo que ela não conhecia. O reflexo parecia mais cansado, como se carregasse uma angústia que ela ainda não havia aceitado. Aquilo a fez hesitar. Seria apenas cansaço ou algum pedaço de si que ela, até então, ignorava? 

As pequenas mudanças continuavam a se acumular. O saleiro, que sempre ficava no centro da mesa, agora estava deslocado alguns centímetros para a direita. “Detalhes”, ela pensou. Mas ao mesmo tempo, esses detalhes pareciam sussurrar algo mais profundo. O que significava aquela mudança quase imperceptível? Por que a simples alteração na posição de um objeto a inquietava tanto? 

Conforme o dia passava, Maria percebia que essas anomalias não estavam só na casa, mas dentro dela. Os pequenos desvios no mundo físico refletiam o caos silencioso de seu inconsciente. Talvez o espelho mostrasse uma versão sua que ela se recusava a reconhecer: uma parte de si aprisionada pela rotina, pelos papéis que assumira sem questionar. Aqueles detalhes fora de lugar não eram apenas externos. Eram manifestações de seu próprio desconforto, de uma alma sufocada pelas exigências e pelas formas padronizadas de viver. 

Ainda assim, algo mais parecia se insinuar nas brechas dessa percepção. Quando o relógio da parede atrasou de forma inexplicável, ela se perguntou: e se as anomalias não fossem apenas dela? E se fossem também sinais de algo além, algo que a mente racional não conseguia captar? As fronteiras entre o consciente e o inconsciente, entre o que é interno e o que é externo, começavam a se diluir. Seriam essas distorções parte do que ela reprimia, ou haveria forças desconhecidas, invisíveis, que se manifestavam por meio delas? 

Enquanto pensava nisso, sentiu uma corrente de ar gelado, embora as janelas estivessem fechadas. A sensação era estranha, como se algo de outra dimensão estivesse tocando sua realidade, quase de forma imperceptível. Maria se perguntava se aquilo que sentia – o desconforto crescente com a repetição dos dias – não era também uma abertura para o inexplicável. As anomalias poderiam ser tanto expressões de seu próprio interior quanto vestígios de algo que existia fora de seu entendimento, algo que não seguia as regras da ciência ou da lógica. Forças que, de algum modo, estavam em sintonia com sua angústia. 

Os objetos fora do lugar, os reflexos distorcidos, o tempo que parecia perder sua coerência – eram duais. Parte de um processo interno que gritava por mudanças, por rupturas com a normalidade que a sufocava. Mas também, talvez, expressões de uma realidade maior, onde o que é percebido como estranho não está limitado ao psicológico. As anomalias sussurravam segredos de um mundo ainda desconhecido, talvez feito de camadas que a humanidade sequer começara a compreender. 

Naquela noite, Maria não conseguiu dormir. Deitada, encarava o teto e sentia o peso dessas forças em equilíbrio. Sabia que, ao mesmo tempo em que aquelas distorções refletiam partes dela mesma que ela evitava, elas também podiam ser sinais de algo além do que ela conhecia. Entre as sombras, havia mais do que apenas metáforas de seu inconsciente: havia o toque silencioso do desconhecido. 

Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo

 
 

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