A Última Porta
A casa estava em completo silêncio. Julia, uma menina de apenas oito anos de idade, sentia o peso da ausência da mãe como um buraco em sua alma. O lockdown não terminava nunca. As janelas fechadas escondiam o mundo lá fora, como se o medo de que algo pudesse acontecer pudesse ser barrado da mesma forma que o vírus. Ela não se lembrava de uma época em que o medo não existisse.
Seu pai, Ricardo, estava na sala, sentado no sofá. Desde que Camila, mãe de Julia, havia morrido, ele não era mais a mesma pessoa. Estava sempre com uma aparência cansada, olheiras profundas e uma tristeza que corroía sua alma. Ele quase não falava, mas, quando o fazia, suas palavras pareciam vir de um lugar distante.
Julia andava inquieta pela casa. Ela sentia algo diferente, uma presença sutil, uma brisa gelada. Não era como o vento, pois as janelas estavam sempre fechadas. Era como se a casa respirasse, como se algo nela, além deles, tivesse vida.
— Você ouviu isso, pai? — perguntou Julia.
Ricardo levantou os olhos e deu de ombros, indiferente. Ele não ouvia nada. Somente ela ouvia e sentia.
Nas primeiras semanas, era apenas um murmúrio que Julia fingia fazer parte de um sonho. Mas logo as coisas começaram a se mover: portas batendo, sombras pelos corredores...
Em uma noite, enquanto Ricardo dormia no sofá, Julia acordou com um som. Uma batida suave na porta da frente. No começo, achou que era um sonho, mas ouviu outra batida, e mais outra. Seu coração acelerou, e ela desceu as escadas assustada.
Ao se aproximar da porta, viu algo que a congelou. A maçaneta girava lentamente, como se alguém do lado de fora estivesse tentando entrar. Ela tentou gritar, mas o som não saiu. Até que ouviu uma voz familiar em seu ouvido.
— Julia...
Era a voz doce e gentil de sua mãe. Ela recuou, e, de repente, a porta parou de tremer. Tudo voltou ao silêncio inicial.
Ela correu de volta para o quarto, sem contar nada ao seu pai. Ele jamais acreditaria. Nos próximos dias, o som das batidas prosseguia, e tudo se tornou mais frequente. A porta tremia, as janelas vibravam, e aquela voz tornava-se cada dia mais nítida.
Ricardo começou a notar também. Uma noite, enquanto os dois jantavam em silêncio, a porta da cozinha se abriu. Os dois pararam. Os olhos de Ricardo encontraram os de Julia, e, pela primeira vez em semanas, ele falou:
— Acha que é ela?
Julia não respondeu, mas sentiu um frio tomar conta do local. Sabia que algo estava tentando entrar na casa, e já sabia o que era.
Nas noites seguintes, a situação piorou. A porta batia com violência. Julia acordava com o som de arranhões na parede de seu quarto e o sussurro insistente de sua mãe:
— Venham para mim...
Então, em uma noite, enquanto a tempestade caía lá fora, Julia não resistiu. Ela desceu até a porta da frente, movida por uma força que não conseguia controlar. A maçaneta, como sempre, girava sozinha. Ela a segurou com força, mas, ao tocar o metal frio, a voz de sua mãe a envolveu.
— Julia, meu amor, abra a porta. Eu só quero que estejamos juntos novamente.
Julia hesitou, mas estava tão "quebrada" que não conseguiu resistir. Queria a presença de sua mãe, seu calor, sua proteção. Ela abriu a porta.
No meio da escuridão da rua, a figura pálida de sua mãe se revelou. O rosto de Camila estava distorcido, seus olhos vazios. Ela sorriu macabramente.
— Venham. Vocês precisam vir comigo. Aqui não é mais o lugar de vocês.
Julia recuou. Mas algo na voz de sua mãe a fez parar. Ali havia dor e tristeza, como se a morte tivesse transformado sua mãe em algo sombrio.
— Mamãe... — A voz de Julia saiu quase inaudível, seu coração despedaçado pela revelação de que aquela entidade que tanto a assustava era a pessoa que ela tanto amava.
O que restava de Camila estendeu a mão.
— Precisamos estar juntos de novo. Venha, minha filha.
Julia olhou para trás e viu seu pai. Ricardo estava parado no topo da escada. Seu rosto estava cansado, derrotado, como se estivesse esperando por aquele momento desde o começo de tudo. Ele não falou, tampouco lutou.
Com os olhos cheios de lágrimas, Julia compreendeu. Não havia como escapar. Sua mãe não queria que eles vivessem; não queria eles no mundo sem ela. Ela os queria em seu novo mundo.
Julia deu um passo para trás, mas sentiu o frio crescendo ao seu redor. Ricardo, sem forças para reagir, olhou para a filha pela última vez.
— Desculpa, Julia.
A porta se fechou sozinha.
A casa, antes um refúgio, agora era uma prisão para os vivos. A voz da mãe continuaria a chamar até que todos estivessem juntos no silêncio eterno da morte.
Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo
Residente de Dom Pedrito/RS, Cláudio Borba formou-se em Contabilidade e escreve contos de terror e poemas geralmente melancólicos. Ele faz parte de diversas antologias de contos e poéticas de diversas editoras. E atualmente trabalha para lançar seus livros de contos e poemas....
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