Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Nos últimos meses, Velian entregou-se a um jogo silencioso de morte e desejo nos becos e esquinas da Fortaleza. Sua fome de sangue, antes um ritual de prazer e sobrevivência, tornara-se algo mais sombrio e impulsivo. Ele matava mais que o necessário, mas nunca de forma descuidada. Como um predador meticuloso, seduzia homens e mulheres com sua presença magnética, arrastando-os para noites de prazer e promessa, apenas para desaparecer sem deixar vestígios. Para alguns, deixava apenas um vácuo insuportável de paixão não correspondida; para outros, um destino mais definitivo, corpos drenados em quartos de motéis baratos, em vielas abafadas ou em apartamentos frios onde apenas o cheiro do sangue indicava que algo terrível havia acontecido.

Ele queria se sentir vivo, queria encontrar sentido em sua fome, em seu jogo de sedução e destruição, mas tudo o que encontrava era mais vazio. A paixão ardente dos amantes logo se tornava uma poeira esquecida, o terror dos moribundos se dissipava na banalidade da rotina da cidade. O caos que ele causava não lhe trazia nenhuma epifania, apenas uma sensação crescente de que estava fugindo de algo que nem mesmo compreendia.

Numa noite particularmente abafada, Velian se viu em seu quarto, um refúgio de sombras e silêncio, onde apenas a cidade distante, viva e indiferente, pulsava lá fora. Sentia-se cansado, exausto de sua própria existência. Estava farto das promessas de prazer e do gosto do sangue quente. Farto da imortalidade que não lhe trazia respostas, apenas mais perguntas sem solução. Ele se deitou dentro de seu caixão, não para descansar, mas para escapar.

Então, o chamado veio.

Ele sentiu o ar mudar, a realidade tremer. A grande cidade de Fortaleza ficou para trás, e, quando abriu os olhos novamente, estava no Castelo Drácula, envolto em névoa e frio. Os ventos obscuros rugiam contra as muralhas ancestrais, e flocos de neve dançavam no ar gélido, trazendo uma sensação de deslocamento impossível. O tempo havia se partido. O mundo, por um instante, parecia outra coisa, algo entre o real e o inexistente.

Ele caminhou lentamente pelos corredores da fortaleza até os portões exteriores, onde encontrou um mundo que não deveria estar ali. Casas estendiam-se ao horizonte, como se um lapso do tempo e do espaço tivesse arrastado toda uma civilização para dentro do limiar do Castelo. E foi ali, no meio desse cenário de distorção e silêncio, que a viu.

Uma mulher de manto negro, segurando um cajado de carvalho com uma pedra negra incrustada na voluta, guiava um pequeno rebanho de cabras negras. Seus olhos refletiam algo ancestral, algo que Velian não sabia nomear. Ela não parecia pertencer a esse mundo, mas tampouco destoava dele. Algo em seus olhos lhe diziam que ela conhecia a natureza vampírica, mas também não era um deles, parecia ser também uma magista poderosa e Velian já tinha conhecido bruxas e magistas grandiosas, mas era algo que não só dominava, mas que parecia possuir toda a magia conhecida e desconhecida do universo. Ela era como uma sombra que sempre estivera ali, pairando, apenas esperando que ele a notasse.

Ele se aproximou, sentindo um misto de irritação e fascínio.

— Quem é você? — Sua voz era baixa, arrastada, como se cada palavra fosse um peso que carregava há séculos.

A mulher ergueu os olhos para ele e sorriu levemente, um sorriso que era tão antigo quanto a noite.

Sou a pergunta que nunca terá resposta, Velian.

Ele sentiu um arrepio percorrer seu corpo, não de medo, mas de algo mais profundo, um reconhecimento involuntário. Por meio de suas várias leituras ao longo dos anos sobre mitologias, deusas e deuses antigos, parecia que o vampiro estava diante da deusa da própria noite, conhecida pelos gregos pelo nome de Nix, uma deusa que até o própria Zeus temia. Mas Velian desejou continuar o diálogo com esse ser tão desconhecido, primordial e poderoso e em seu tom desafiador, crítico e sarcástico de vampiro secular respondeu:

— Eu já tive todas as respostas — murmurou, desviando como o olhar. — Mas nenhuma delas valeu de nada.

Porque você fez as perguntas erradas.

O vampiro soltou uma risada irônica e amarga.

— Então me diga, qual é a pergunta certa?

A mulher tocou o cajado no chão, e a realidade ao redor deles pareceu oscilar, como se estivessem flutuando entre mundos.

Por que você continua?

Velian ficou em silêncio.

— Você bebe sangue para sobreviver, mas não sente mais prazer nisso. Seduz humanos, mas não se importa com eles. Provoca paixões e abandona-as, mas isso não preenche nada. Mata, mas a morte se tornou banal. Então, por que você continua?

Ele sentiu a irritação crescer dentro de si.

— Porque não há outra opção. Eu existo, e essa existência tem um preço.

Mas quem lhe disse que você precisa pagar esse preço assim?

O silêncio caiu entre eles. A mulher parecia esperá-lo chegar a uma conclusão por si mesmo.

Velian respirou fundo, um hábito humano que ele nunca abandonara.

— Eu sinto... como se estivesse abandonado pelo próprio universo. Como se nada importasse. Mas eu não quero desaparecer.

A mulher assentiu.

É essa a verdade. Você não quer desaparecer. Você tem medo do vazio, mas também tem medo da existência. Então fica preso na dúvida, na monotonia, na repetição. Mas as dúvidas são sua única salvação.

Ele olhou para ela com um misto de desconfiança e curiosidade.

— Por que você diz isso?

Porque são as dúvidas que o fazem continuar. O desejo morre, o prazer desaparece, as paixões são efêmeras. Mas a dúvida... essa nunca o abandona. É ela que o mantém de pé, mesmo quando você acredita que não há mais sentido. É ela que o faz buscar algo, mesmo sem saber o quê.

Velian sentiu um frio estranho percorrer seu corpo. Havia algo certo nas palavras dela. Algo incômodo, mas verdadeiro.

— Eu achei que espalhar caos e destruição me fizesse sentir vivo — admitiu, quase para si mesmo.

Mas só o deixou mais vazio.

— Sim.

A mulher se aproximou, sua voz tornando-se um sussurro antigo, um eco de algo perdido no tempo.

Então, pare de buscar sentido em fins e comece a buscar sentido no próprio caminho.

Velian sentiu um peso deixar seu peito, mas não sabia o que isso significava. Ele olhou para a mulher, mas ela já estava se afastando, desaparecendo na névoa.

— Espere. Quem é você, de verdade?

Ela virou-se uma última vez, e seus olhos brilharam como estrelas distantes.

Eu sou o que você sempre soube, mas nunca quis aceitar.

E então, ela sumiu.

O Castelo Drácula retornou ao seu estado habitual, e Velian sentiu-se sozinho novamente. Mas, desta vez, a solidão parecia diferente. Ele não sabia explicar o que havia aprendido, mas sabia que algo dentro dele havia mudado.

Velian voltou para seu quarto, na cidade de Fortaleza, nordeste do Brasil e lembrou por que decidiu habitar ali, os costumes nordestinos e cearenses eram hilários, engraçados e as pessoas eram mais simpáticas e possuíam um animo para a vida diária que o fascinava, diferente da frieza europeia, e isso o despertou por um tempo, mas o vampiro também percebeu a pouca força, consciência e vontade de organização social para enfrentar problemas coletivos que a raça humana enfrentava ali naquela região e isso junto de todas as mazelas que já existiam também na antiga Europa e em outras partes do mundo.

Assim, mais uma vez, o vampiro entendeu seu tédio, sua chateação e medo do vasto mundo que parecia não parar de crescer de forma caótica sem uma finalidade e um sentido e Velian percebeu o quando ainda se apegava a essa ideia mortal de sentido e de coerência no vasto mundo e decidiu dormir um sono longo. Não porque estivesse cansado, mas porque precisava de introspecção. Apenas o Castelo poderia acalentá-lo, e ele esperaria até que fosse chamado novamente.

E, enquanto o vento soprava lá fora, trazendo consigo os sussurros da noite, Velian fechou os olhos, mergulhando na escuridão não apenas de seu quarto e seu caixão, mas também de seus próprios pensamentos.

Texto publicado na Edição 13 da Revista Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2025. → Ler edição completa

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