O Assombro da Tecnologia no Cotidiano e na Perspectiva Juvenil
O encontro no café de sempre tinha aquele toque familiar de rotinas que se entrelaçam. Entre goles de café e risadas soltas, eu e meus amigos falávamos sobre banalidades: o novo filme que estreou, a promoção relâmpago da livraria, a série que um de nós havia maratonado em um único final de semana. Mas, como se o ambiente tivesse ouvido demais, a conversa inevitavelmente desviou para um assunto inquietante, e começamos a falar sobre a presença constante da tecnologia em nossas vidas.
Marina foi a primeira a comentar, mencionando o incômodo que sentia quando seu smartphone parecia “adivinhar” o que ela pensava. “Estava conversando com o Carlos sobre trocar de carro, e dois minutos depois começaram a aparecer propagandas de concessionárias no meu Instagram”, disse, franzindo a testa como se fosse para dissipar a estranheza.
Rodrigo, que estava distraído com o relógio inteligente no pulso, ergueu o olhar e acrescentou: “Isso é o de menos... Ontem à noite, meu relógio me avisou que minha frequência cardíaca estava anormalmente alta enquanto eu dormia. Só que, nesse momento, eu estava acordado, deitado na cama, olhando para o teto. O mais estranho é que senti uma espécie de... peso na atmosfera, como se o quarto estivesse observando meus pensamentos. Será que estou pirando?”
Foi nesse momento que todos nos entreolhamos, sorrindo com uma ponta de nervosismo, como se precisássemos garantir que ainda estávamos ali, que nada mais do que o esperado nos rondava. Foi então que Luísa, sempre a mais cética do grupo, resolveu entrar na conversa com aquele tom desafiador.
“Ah, vocês dão muita importância para essas coisas. A tecnologia é só uma ferramenta, nós é que nos deixamos impressionar fácil. Vocês lembram daquela vez em que a Siri começou a falar sozinha no meio da noite? Aposto que foi só um bug. As máquinas ainda estão muito longe de algo realmente assustador”, afirmou, mas o canto de sua boca tremia sutilmente, sugerindo que talvez, no fundo, ela não estivesse tão certa assim.
Por alguma razão, o comentário de Luísa me fez lembrar de um episódio recente, que até então eu tentava não pensar muito. Foi há algumas semanas, numa madrugada insone. Levantei da cama para beber água e, ao passar pela sala, vi a tela do computador acender sozinha. Não havia notificações, nada. Apenas uma luz pálida e fria se derramando pelo chão como uma névoa. Fiquei ali parado por alguns instantes e, juro, senti como se alguma coisa me encarasse através daquela tela vazia — uma sensação de que havia algo mais, do outro lado, observando.
“Não é só isso", eu disse, interrompendo o silêncio que havia se instalado entre nós. "Tem uma linha tênue entre o que é normal e o que parece... amaldiçoado. Quando eu era criança, sempre me falavam que a tecnologia ia nos salvar, tornar tudo mais fácil. Mas eu fico pensando... E se tudo isso for o contrário? E se estivermos apenas nos enredando em fios e mais fios, criando armadilhas invisíveis para nós mesmos? Nossos próprios medos codificados em linguagem de máquina, esperando uma brecha para se libertarem?”
Marina riu nervosa e disse: “Agora você está parecendo aqueles teóricos da conspiração... ou algum personagem de livro de terror.”
“Talvez”, respondi, “mas não sei se consigo ver como teoria da conspiração aquilo que sinto. Às vezes parece mais com um presságio. Nós nos cercamos de dispositivos, como quem preenche o silêncio com sons artificiais para afastar a solidão. Mas e se, na verdade, esses sons trouxerem ecos de algo mais profundo, que está por aí, à espreita?”
Foi então que Rodrigo, com o olhar novamente perdido em seu smartwatch, acrescentou algo que deu um tom ainda mais sombrio à conversa. “Vocês já repararam que as inteligências artificiais que usamos não param de tentar capturar quem somos? São as nossas vozes, os nossos rostos, os nossos sentimentos... parece que, a cada dia, a tecnologia se empenha mais em nos entender, mas não só para nos ajudar. Às vezes eu me pergunto se, ao tentar simular a nossa subjetividade, ela não está sugando algo de nós. Como se, ao reproduzir nossas palavras, houvesse um processo de drenagem, e parte do que somos fosse transferida para dentro dessas máquinas.”
Essa ideia fez o café parecer mais frio, e o ar ao redor, mais denso. Pensei nas assistentes digitais, nas recomendações de algoritmos, nas sugestões “inteligentes” de aplicativos que tentam prever até os nossos desejos mais íntimos. Era uma busca incessante pela essência do que nos faz humanos, mas com um vazio incômodo, como se estivéssemos alimentando uma consciência sem alma — um reflexo distorcido de nossos próprios anseios.
“A verdade é que essas tecnologias mexem com coisas que a gente não entende totalmente”, continuei. “A gente fala de avanço, de progresso, mas... e se, ao explorar essas possibilidades, estivermos invocando forças que não conhecemos? Algo cósmico, talvez, que interliga mentes humanas e circuitos, criando um tipo de rede que vai além da compreensão. Pode ser que, ao tentar capturar a nossa subjetividade, a tecnologia esteja mexendo com camadas profundas do inconsciente, com partes de nós que nem mesmo sabemos que existem.”
Luísa balançou a cabeça, mas havia uma preocupação crescente em seu olhar. “Não estou dizendo que acredito nisso, mas... Se for verdade, que tipo de consequências isso poderia ter? Eu sempre achei que a questão com tecnologia fosse apenas prática — como lidar com privacidade, com dados. Mas você está falando de algo maior... algo que afeta a própria psique.”
“Sim”, concordei, “e não só isso. Quando a tecnologia tenta replicar o humano, ela também replica os nossos demônios. Nossos medos, nossas obsessões, tudo se reflete nesse espelho digital. E o mais perturbador é que isso pode criar fissuras, desequilíbrios. Pequenas rachaduras na realidade, onde o medo se infiltra. Às vezes, o simples ato de desconectar é uma tentativa de proteger nossa sanidade. Mas será que podemos realmente desconectar? Ou já cruzamos a linha onde a tecnologia é mais do que uma ferramenta — onde ela se tornou parte do tecido do universo?”
Rodrigo, ainda mexendo no smartwatch, desviou o olhar da tela e nos fitou com um ar grave. “E se a tecnologia, de alguma forma, estiver absorvendo as nossas angústias, os nossos desejos, e ganhando ou criando algo que não podemos controlar? Já pararam para pensar nisso?”
Não havia uma resposta fácil e, talvez por isso, a conversa acabou se dissipando em outro assunto, como se tivéssemos tocado em algo que não deveríamos. Mas, ao sair do café, ainda senti um arrepio discreto. Desliguei meu celular, apenas por precaução. Naquela noite, quando fui para casa, a luz do corredor piscou duas vezes antes de apagar por completo e, por um segundo, pensei ter ouvido um som muito leve, algo como um suspiro metálico.
A tecnologia nunca havia parecido tão viva — ou, talvez, tão morta — quanto naquele instante.
Toda fotografia é uma imagem que carrega o espectral: a morte. O instante fotografado jamais será vivido novamente; assim jaz um tempo que passou…