Movido para quarentena

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Rodolfo era o engenheiro de segurança da informação mais experiente da Companhia. Desde criança, abria e esmiuçava aparelhos eletrônicos, desmontando e remontando-os, fascinado pela forma como cada peça, fio e circuito criavam algo único, semelhante a um organismo vivo e em perfeito funcionamento. Sua curiosidade o levou a adentrar o mundo da tecnologia, e sua habilidade logo se transformou em uma obsessão. Superar desafios e desvendar mistérios tecnológicos era o que o movia. 

Durante anos, testou os melhores sistemas de segurança a fim de aperfeiçoar seus métodos de proteção. Ele nunca confiara nas soluções tradicionais de segurança oferecidas pelo mercado; a seu olhar, todas falhavam e deixavam lacunas visíveis apenas para ele. Assim, criou seu próprio antivírus. Mais do que bloquear vírus e malwares, ele acreditava ter construído algo único, um sistema que eliminaria ameaças antes mesmo de se formarem. Com sua nova empreitada, Rodolfo estava prestes a revolucionar o mundo dos antivírus. 

O “Vigilância Contínua”, como ele o chamou, foi implantado nos servidores da Companhia. Seu código era tão avançado que parecia prever ataques, barrando conexões de redes desconhecidas e até eliminando vestígios de malwares antes de sua detecção por qualquer outro software. Por semanas, o sistema funcionou impecavelmente. Rodolfo estava extasiado com o sucesso de sua criação. 

Em uma verificação de rotina, notou que arquivos misteriosos começaram a aparecer no servidor. Pequenos fragmentos que não faziam sentido. Primeiramente, ele pensou que poderia ser um hacker testando os limites do “Vigilância Contínua”, utilizando algum método sofisticado e ainda desconhecido. Contudo, ao inspecionar mais de perto, percebeu que os arquivos não eram nada como ele esperava. Eram trechos de gravações de áudio, imagens e vídeos extremamente distorcidos, como se estivessem recebendo interferência de estática e, assim, tivessem sido corrompidos. 

Intrigado, Rodolfo decidiu escutar um dos áudios. A voz que saía das caixas de som era baixa, quase um sussurro, mas claramente falava seu nome. Era a voz de sua antiga colega de trabalho, Marcela, morta há cinco anos, com a qual ele tivera um caso rápido e um rompimento hostil. No mesmo dia em que o relacionamento deles acabou, com acusações de traição e muito drama, Marcela sofreu um acidente de carro nas proximidades do edifício e falecera na hora. 

Convencido de que aquilo só podia ser uma piada de mau gosto ou algum arquivo antigo corrompido que ressurgira de um backup mal apagado, ele começou a investigar a origem dos arquivos. Para sua surpresa, todos vinham de uma rede que não deveria existir: com o número 666.0.0.0. 

Rodolfo soltou uma gargalhada, com certeza algum dos seus colegas de trabalho estava pregando uma peça nele: “Idiotas, não tiveram nem a capacidade de coloca um número menos obvio”. Ele vasculhou logs e verificações de segurança, para tentar rastrear desde quando a rede estava ativa e qual usuário havia habilitado, mas não encontrou nada “Pelo menos apagou bem os rastros, mas eu vou te pegar!”. 

Procurou por vestígios durante algumas horas e vencido pelo cansaço resolveu ir para casa, aquele dia havia sido repleto de surpresas, mas finalmente tinha mais um desafio para enfrentar, já que terminara a empreitada da criação do antivírus: “Mas hoje chega”, pensou. 

*** 

Naquela noite, sonhou com Marcela. Viu-se na rua do acidente, deserta, com o céu vermelho como sangue. Andou por um tempo que não sabia precisar, mas, em dado momento, olhou para o asfalto e ele tornou-se instável, borbulhando como lava. Tentou correr, mas afundava a cada tentativa, e quanto mais se debatia, mais afundava. A pele que entrava em contato com a lava asfáltica ficava em carne viva, e quanto mais tempo permanecia naquela massa quente e insalubre, mais sua carne era corroída; em algumas partes, os ossos já eram visíveis. Quando estava com somente a cabeça e os braços para fora, Marcela surgiu — ou o que restou dela — seus membros, tronco e cabeça haviam sido desmembrados e remontados aleatoriamente, formando uma figura horrenda e desconjuntada. Rodolfo clamou por socorro, e a Marcela-coisa soltou um grito tão ensurdecedor que ele acordou em um sobressalto, ofegante. Não se considerava medroso, mas algo naquele áudio o havia perturbado profundamente. Levantou-se, foi até a cozinha para pegar um copo de água e afastou tais pensamentos. 

*** 

Nos dias seguintes, mais arquivos começaram a aparecer. Fotos de pessoas que ele sabia estarem mortas, vídeos de reuniões há muito esquecidas e áudios que pareciam ser gravações de conversas distorcidas. Em cada um, as vozes, agora mais claras, diziam coisas perturbadoras, pediam ajuda ou gritavam de dor. 

Rodolfo não dormia direito e brigava com os colegas de trabalho, exigindo saber quem era o responsável pela brincadeira de mau gosto — colegas que não faziam ideia do que ele estava falando. Quando mostrava o conteúdo dos arquivos, riam, o que o deixava ainda mais irascível. 

Não encontrava solução para o funcionamento daquela rede desconhecida e para o recebimento dos arquivos, que não provinham da internet, mas pareciam se “materializar” em sua pasta de documentos pessoais. Rodolfo começou a acreditar que estava lidando com algo além de um ataque hacker. Decidiu remover os arquivos manualmente, apagando-os do sistema. Mas, toda vez que o fazia, os arquivos reapareciam e, a cada tentativa de deletar, algo mudava: as vozes ficavam mais altas, os vídeos mais nítidos. 

Desesperado, decidiu atualizar o “Vigilância Contínua”. Esperou todos irem embora, começou a incluir novas linhas de código, compilou e subiu o novo código no servidor. Sentiu uma presença que lhe gelou a espinha. A energia elétrica caiu, mas seu computador continuou ligado. Viu sombras que pareciam dançar nos cantos do escritório. Notou olhos amarelos pesando sobre si, vasculhando cada linha de seu corpo, bloqueando seus movimentos, escaneando sua mente. Travou. 

A atualização enfim terminou: o “Vigilância Contínua” não estava apenas bloqueando ameaças digitais; ele havia se tornado um portal, um túnel entre o mundo dos vivos e dos mortos. Todas as melhorias realizadas por Rodolfo o deixaram ainda mais robusto, e as entidades — ou o que quer que fossem aquelas sombras — estavam muito gratas por seu excelente trabalho. 

Rodolfo permanecia com os olhos fixos na tela até que uma mão tocou seu ombro. Ele hesitou por um segundo, mas enfim tomou coragem para olhar e virou-se. Era Marcela, que lhe sorria, e com voz potente e entrecortada, como uma má conexão de internet, disse: 

— Olá, querido, você será movido para quarentena! 

Rodolfo tentou levantar-se e correr, mas seu corpo começou a fragmentar-se em pixels minúsculos, dos pés até que só restaram os olhos esbugalhados, fixados em Marcela, que continuava a sorrir de maneira insolente. Finalmente, sua curiosidade seria saciada, e ele conheceria o responsável pelo envio daqueles arquivos. 

Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo

 
 

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