Espelho, espelho meu
Tal qual a Rainha Má do conto infantil da Branca de Neve, eu tinha como conselheiro o meu espelho, espelho este que, desde que minha avó materna falecera, quando eu tinha por volta de cinco anos de idade, passou a pertencer à minha mãe. O espelho fazia parte de uma penteadeira antiga, que foi disputada como parte da herança de minha avó entre minha mãe e minha tia. Para que não houvesse desavenças maiores na ocasião, meu tio mais velho decidiu dividir o móvel: o espelho, que era a parte de cima, pertenceria à minha mãe, e as gavetas com a base do móvel ficariam com minha tia. Depois de um tempo, já no período da minha adolescência, minha mãe havia deixado o espelho de lado. Eu, então, o resgatei na garagem de casa e tive a ideia de reformá-lo ao meu gosto: pintei sua base de madeira de preto e colei algumas meias pérolas em volta, a fim de torná-lo um adorno sombrio, tendo em vista que ele já possuía uma moldura no estilo provençal.
Passei a ter o espelho reformado em meu quarto, sempre no canto oposto à janela, de modo que a luz que entrava pela manhã refletia de maneira suave, quase sutil. No entanto, ao cair da noite, quando as sombras se alongavam, o espelho parecia ganhar vida própria. No início, não dei importância à sensação de que algo se movia ali, um brilho diferente, um jogo de luz que eu atribuía à iluminação fraca do abajur. Mas, com o passar dos dias, comecei a notar que o reflexo que ele me devolvia era… estranho.
Certa noite, ao escovar os cabelos diante do espelho, percebi algo que fez minha mão tremer: meu reflexo, por um instante, sorriu, mas eu não havia sorrido naquele momento. Meus lábios estavam imóveis, fechados, mas a figura no espelho ostentava um sorriso ligeiramente torto, quase zombeteiro. Afastei-me num sobressalto, culpando o cansaço e o sono por aquilo. Mas, no fundo, uma inquietação se instalou em mim.
A partir daquela noite, o espelho passou a me mostrar versões distorcidas de mim mesma. Eram sutilezas: um olhar um pouco mais sombrio, um contorno mais afiado do rosto, uma sombra nos cantos dos olhos que não estava lá quando eu me olhava em outros espelhos. Mas eu sabia que não era apenas uma ilusão de ótica. Algo mais profundo acontecia. O espelho, que antes eu considerava apenas um objeto de valor sentimental herdado de minha avó, parecia estar revelando algo de mim que eu não conhecia… ou talvez, algo que eu sempre soube, mas nunca quis admitir.
Quanto mais eu me olhava nele, mais sentia que ele me via de verdade, além do que era superficial. E então, numa noite, ouvi algo. Não era uma voz, ao menos não no sentido comum. Era como um sussurro, um pensamento, vindo do espelho, ecoando dentro de mim:
— Você vê o que realmente é?
Meu coração acelerou. A sensação de que o espelho me espreitava, me estudava, tornou-se insuportável. O medo crescia, mas havia algo irresistível também. Eu não conseguia parar de olhar. A cada dia, a imagem refletida parecia mais distorcida, mais feroz, como se minha própria essência estivesse se desfazendo e algo sombrio, profundamente maligno, estivesse tomando seu lugar.
Até que, numa madrugada de insônia, enquanto encarava o espelho na escuridão do quarto, percebi a distorção, as sombras, os traços desumanos que começavam a se formar. Não era apenas uma brincadeira da luz ou da mente; era a revelação de algo mais profundo. O espelho estava me mostrando minha alma, nua e crua. E ela era sombria, maliciosa, perversa. Parecia que, a cada olhar que eu dava no espelho, eu estava permitindo que essa parte oculta de mim emergisse.
Foi então que me lembrei das histórias que minha avó contava, de como aquele espelho pertencia a uma linhagem de mulheres poderosas, mas que todas, sem exceção, haviam sucumbido ao que ele revelava. Não era apenas um reflexo. Era uma janela para a alma, um julgamento silencioso e implacável. E agora eu entendia que minha avó, minha mãe e talvez todas as mulheres antes delas haviam visto o mesmo. Mas o espelho não deformava a realidade. Ele mostrava a verdade, a parte de nós que tentávamos esconder.
E quanto mais eu olhava, mais me tornava aquilo que o espelho refletia.
Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo
Thais Gomes é apaixonada pelo universo Gótico da Literatura, sua formação é em Letras Português/Espanhol e sua obra mais recente, ainda está sendo produzida, é Contos Vampirescos, uma releitura de muitos personagens do Drácula de Bram Stoker. Inspirada em clássicos como Edgar Allan Poe, Lord Byron…
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Thais Gomes é apaixonada pelo universo Gótico da Literatura, sua formação é em Letras Português/Espanhol e sua obra mais recente, ainda está sendo produzida, é Contos Vampirescos, uma releitura de muitos personagens do Drácula de Bram Stoker. Inspirada em clássicos como Edgar Allan Poe, Lord Byron, Álvares de Azevedo, e contemporâneos como André Vianco e Eduardo Spör; a autora explora o universo da literatura gótica com maestria e suas narrativas estão imersas no mais puro mistério. Além de escritora, Thais é produtora de eventos, cantora e musicista.
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