Fome Abominável
Isso aconteceu há mais de cinquenta anos, quando eu ainda era um jovem adolescente em meu primeiro emprego, tentando juntar alguns trocados para sair da casa paterna e me aventurar na capital em busca de uma vida melhor. No entanto, sendo eu um rapaz de família humilde, deveria, a todo custo, tentar ajudar meus pais, que viviam de seu próprio suor e nada possuíam, a não ser a Graça de Deus sobre suas vidas. Eu era um dos três serviçais que trabalhavam na casa dos Genarus. Além de mim, que tinha a função de copeiro, havia uma faxineira e uma cozinheira. Fora da casa, havia mais de uma dúzia de serviçais que faziam todo tipo de função que uma grande propriedade poderia exigir.
A casa era um imenso palacete assobradado, onde era possível se perder entre os diversos aposentos. Nada estranho para uma construção que precisava abrigar uma família tão importante. Os Genarus que conheci eram uma família de nove pessoas ao todo, contando a matriarca, que estava se aproximando dos cem anos. Dona Gercira era a mais velha deles. Mesmo já bastante debilitada fisicamente, ainda mantinha certa lucidez e, sempre que havia alguém disposto a ouvi-la, relatava várias histórias sobre a opulência que envolvia a história de sua família. Se essas histórias realmente aconteceram, ninguém sabia ao certo, mas ela gostava de contar sobre a oportunidade que sua família teve de hospedar, em sua casa, o Imperador e sua esposa, numa viagem que a Família Real fizera por essas bandas.
O restante da família era composto pelo Coronel Severiano, sua esposa, Dona Amélia, seus quatro filhos, um irmão – que não tivera sucesso na vida e vivia às expensas do coronel – e, por último, um filho bastardo, que ninguém ousava admitir ser seu. Dentre os filhos do coronel, havia uma adorável jovem que, por sua beleza, era considerada a joia mais rara dos Genarus. Essa singular criatura era a jovem Elizabeth, a quem seu pai sempre chamava de Liz, comparando-a à delicada beleza da flor que era o símbolo da realeza da França, país de origem de sua esposa.
A propriedade dos Genarus era de um tamanho descomunal e, devido a essa infinitude de terras que se perdiam no horizonte, sempre havia um enorme contingente de pessoas de todos os tipos, num vai e vem infinito. Até porque a estrada real cortava suas terras de ponta a ponta. Por esse movimentado caminho, passavam dezenas de pessoas diariamente, de um lado para o outro. Próximo à casa grande, havia um enorme barracão que, outrora, em tempos bastante antigos, fora uma senzala abrigando mais de sessenta escravos, e que, na época em que trabalhei lá, era usado como abrigo para os viajantes. Coronel Severiano sempre fora um homem bastante benevolente e muito prestativo aos mais necessitados, desde que, por sua vez, soubessem o significado de respeito e obediência, e cada qual permanecesse em seu devido lugar.
O que causou a ruína da família Genaru aconteceu num friorento mês de janeiro, quando um agrupamento cigano acampou em suas terras. Logo após as festas de final de ano, sempre acontecia aqui em nossa cidade — e ainda acontece todos os anos — uma festa em homenagem aos três Reis Magos. Esse era o motivo pelo qual os ciganos estavam acampados ali, pois esses nômades perambulavam de cidade em cidade, aproveitando as festas para comercializar suas bugigangas e seus artifícios mágicos. Como nossa cidade era bastante pequena — e ainda é —, padre João Pedro, o pároco da época, não autorizou que eles acampassem pelas cercanias. Por isso, receberam autorização do Coronel para ficarem em suas terras.
Dentre esses curiosos nômades, havia um jovem chamado Iago, que era a perdição e o pecado em pessoa. Jovem alto, de corpo atlético, com belíssimos olhos claros, cabelos dourados encaracolados e sorriso fácil, esse belo rapaz muito se assemelhava à imagem de João Batista, de Da Vinci. Além de muito belo, era também eloquente, sabia tocar violão e cantava com uma voz tão doce quanto a de um anjo entoando um louvor ao firmamento. Quando Elizabeth, passeando a cavalo, acompanhada de seu irmão caçula, o viu pela primeira vez, ficou imediatamente seduzida pelos seus encantos.
Elizabeth, ninguém sabe ao certo como, conseguiu, numa determinada tarde, estar a sós com esse jovem, que já era o objeto de desejo da maioria das mulheres solteiras da cidade e, com certeza, de muitas casadas também. Ele era um homem que, apesar de ter uma aparência muito juvenil, já estava na casa dos seus vinte e cinco anos e, desde cedo, havia sido instruído pelas ciganas sem marido de sua tribo sobre os caminhos que levam ao paraíso carnal.
Iago sabia, desde muito jovem, como agradar uma mulher em todas as suas vicissitudes e desejos. Elizabeth, que recentemente completara dezessete anos, mesmo transpirando desejo e volúpia, ainda era muito inocente em certos assuntos. Sua família mal a deixava respirar longe de seus olhares vigilantes. Coronel Severiano era uma fera, e a maioria dos pretendentes o temia como o diabo teme a cruz. Mas Iago era indiferente a tudo isso; nem sequer sabia ao certo quem ela era, muito menos quem era seu pai. Quando se viu na iminência de conquistar mais um coração para sua crescente coleção, não se fez de rogado e a cobriu de galanteios e elogios, deixando a jovem e inocente Elizabeth completamente embriagada de desejos por ele.
No dia seguinte ao qual se conheceram, Elizabeth disse que queria estar a sós com ele em um local afastado, onde pudessem ter liberdade e privacidade para se conhecerem melhor. Combinaram, então, de se encontrar às margens do rio, onde buscariam algum lugar mais calmo, longe de olhares curiosos. Naquela tarde, ela selou o destino de toda sua família ao entregar sua inocência ao cigano Iago. Uma pessoa como Coronel Severiano tinha olhos por toda parte e conseguia enxergar tudo o que acontecia ao seu redor. Naquela mesma noite, o acampamento cigano foi incendiado. Muitos ciganos foram mortos, e o galante e belo Iago nunca mais foi visto — fato comum entre os desafetos do Coronel, que anoiteciam, mas não amanheciam, desaparecendo sem deixar vestígios.
A mãe de Iago — a cigana Soraya — era uma cartomante poderosa e tão bela e sedutora quanto o próprio filho, e estava fora do acampamento naquela noite, na casa do prefeito, prestando-lhe alguns de seus serviços sobrenaturais — consultando os astros para lhe mostrar o caminho mais rápido ao paraíso. O prefeito, na época, era um viúvo que jamais permitira que o leito outrora ocupado por sua finada esposa ficasse vazio. Quando Soraya soube do trágico acontecimento em sua tribo, teve uma incontrolável crise de loucura e partiu numa desenfreada correria até a casa dos Genarus. Um dos ciganos relatara a ela tudo o que acontecera, pois, de alguma forma, sobrevivera ao ataque ao acampamento. Escondido para preservar sua própria vida, ele pôde presenciar quando os jagunços do Coronel levaram Iago preso e amordaçado, arrastado por uma corda como um perigoso animal selvagem.
Era alta madrugada quando todos na casa foram acordados pelos gritos ensandecidos de uma mãe desesperada em busca de seu filho. A cigana estava no mais profundo desvario, urrando como um animal ferido e esmurrando violentamente a porta da frente, como se quisesse derrubá-la. Seus gritos eram de cortar o coração e, certamente, podiam ser ouvidos a uma enorme distância. Até hoje — mesmo depois de tantos anos — ainda posso ouvi-los em meus sonhos...
— Devolva meu filho... Devolva meu filho... Seu monstro!
Lembro-me de que, em cinco minutos, todos na casa estavam de pé. Coronel Severiano foi o primeiro a ir até a porta. Logo, dois de seus jagunços estavam ao seu lado e, ao abrir a porta, a pobre cigana não conseguiu se aproximar dele — se o fizesse, certamente o teria retalhado com suas unhas e dentes —, pois os jagunços a contiveram. Debatendo-se como um animal selvagem, foi necessário que mais alguns homens se juntassem aos dois primeiros para conseguirem segurá-la. Vendo que suas forças eram insuficientes para enfrentar o poderoso Coronel, ela baixou a cabeça e começou a chorar com profundos soluços de lamentação. Em dado momento, uniu forças, levantou a cabeça mais uma vez, olhou nos olhos do Coronel e perguntou-lhe:
— Me diga, por que tanta maldade com pessoas inocentes como nós? Só estávamos acampados por um breve momento em suas terras. Que mal fizemos ao senhor ou à sua família para merecermos tão violenta afronta à nossa humilde existência? O que fizeram com meu filho?
O Coronel, não querendo expor a imagem de sua filha — que logo seria enviada a um convento por uma longa temporada, a fim de expiar seus pecados e refletir sobre sua indecorosa ignomínia —, apenas lhe respondeu:
— Com muita prestatividade e toda boa vontade do mundo, abri as portas de minha propriedade para seu povo, mesmo quando a própria igreja lhes negara abrigo. Permiti que instalassem suas barracas imundas em meus domínios e fiz vista grossa perante suas profanas práticas de magia negra em minhas terras. Contudo, criaturas vis como vocês parecem nunca se contentar com o que lhes é oferecido; sempre tentam pegar aquilo que não lhes pertence. Da mesma maneira que são vistos por todos como gente de índole e costumes bastante duvidosos, mais uma vez demonstram aqui, perante todos os presentes, que são indivíduos covardes, desprovidos de qualquer forma de caráter. E ainda têm a ousadia de vir à minha casa me acusar de algum tipo de ato vil. Que culpa tenho eu se, por onde passam, conquistam apenas inimizade e repugnância de todos ao seu redor?
— Inimizade! Repugnância! É tudo que tens a me dizer?
Soraya, ao olhar ao seu redor e perceber que todos ali presentes — com toda aquela balbúrdia à frente da casa do Coronel, apinhada de gente — não ousariam, de forma alguma, contrariar nem questionar tão poderoso senhorio, entendeu que era inútil desperdiçar seu tempo e suas palavras em uma discussão tão inócua. Sabendo que muitos de seu grupo estavam mortos, os que restaram feridos e desprovidos de seus bens, e que certamente jamais veria seu filho novamente, decidiu usar seus conhecimentos sobre o mundo das sombras e invocar sobre o Coronel e toda sua família uma terrível maldição.
— Percebo que minhas palavras e minha dor, perante sua tão importante figura, são completamente irrelevantes. Contudo, nobre Coronel, quero que saibas que, por mais poderoso e quão importante o senhor possa se achar, logo perceberá que o senhor não é ninguém e que toda a riqueza que acha que possui não lhe servirá de nada. A vida de qualquer ser humano é como uma partida de xadrez: por mais longa e importante que pareça, ao final, todas as peças — sejam elas peões ou reis — retornam sempre para a mesma caixa.
— O senhor encheu a boca para dizer que somos seres repugnantes. A partir de hoje, tanto o senhor quanto toda a sua honrada família saberá o significado da palavra repugnância. Sei que não terei a chance nem ao menos de dar o último adeus ao meu amado filho — todos sabem o que acontece a quem afronta pessoas ditas poderosas como o senhor —, mas dou-lhe minha palavra: viverá para ver toda a sua família definhar diante de seus olhos, e somente quando o último de sua descendência não estiver mais entre os vivos, terá o privilégio da morte.
A cigana, que naquele momento estava com os braços livres, os levantou em direção ao Coronel e, após fazer alguns sinistros movimentos e proferir palavras em um idioma desconhecido, soltou uma gargalhada sinistra, como se a loucura a tivesse dominado de vez. Um dos jagunços — o tipo de homem com sangue nos olhos, que adquirira o abjeto prazer de tirar a vida de outro ser vivo — deu-lhe um tiro entre os olhos. A cigana caiu morta na varanda. Para justificar seu ato de violência gratuita, ele disse, alto o suficiente para que todos ouvissem:
— Ninguém, seja quem for, ameaça meu Coronel ou alguém de sua família em minha presença e sai impunemente, sem responder por tal desrespeito.
Esse mesmo jagunço seria encontrado morto três dias depois, arrastado por seu cavalo, preso pelo pé ao estribo. Seu corpo estava terrivelmente ferido, tanto pela queda quanto pelos coices que o cavalo, em completo estado de pavor, lhe aplicava repetidamente. A ruína dos Genarus começara no exato momento em que a cigana fora assassinada a sangue frio. O mesmo fogo que reduzira o acampamento cigano a cinzas, devido a uma estranha ventania, se alastrara pelas pastagens e plantações da fazenda, consumindo tudo o que estava à frente. Mais da metade de todos os animais da fazenda pereceu naquele violento incêndio. Nenhuma plantação ficou intacta. O prejuízo material foi extraordinário. Mas o pior ainda estava por vir, e teve início naquela mesma noite, quando Elizabeth, ao presenciar a cena lastimável da cigana morta diante de seus olhos, e ao saber dos planos de seu pai de enviá-la para um convento, decidira atentar contra sua própria vida.
Enquanto a imensa propriedade dos Genarus ardia em incontroláveis chamas, os ciganos que sobreviveram ao covarde ataque ao acampamento reuniam os parcos bens que lhes restaram e, após recolherem o corpo de Soraya, decidiram partir ainda naquela mesma noite. Nunca mais se ouviu falar deles. Na casa dos Genarus, quando o alarde da morte de Elizabeth foi dado, houve um desespero total, e a situação ficou ainda pior quando um dos serviçais chegou correndo para avisar que o irmão do Coronel havia perecido no incêndio, tentando salvar alguns animais das chamas. Para uma senhora quase centenária, todas aquelas desventuras foram demasiadas, e seu coração não pôde mais suportar tantas desgraças em uma única noite. Assim, a matriarca da família também se despediu do mundo dos vivos.
No dia seguinte, o caos continuou. Após as exéquias de três integrantes daquela poderosa família, logo se descobriu o porquê de a cigana ter dito que eles saberiam o significado da palavra "repugnância". Quando o jantar foi servido, aqueles que ousaram se alimentar não conseguiram; a comida estava estragada, havia até mesmo larvas no assado que fora servido. Como todos estavam cansados demais e extremamente desolados, decidiram, cada qual, se recolher a seus devidos aposentos. Dona Amélia, demonstrando estar bastante irritada com aquele desrespeitoso ato de negligência, deu a ordem para que toda a comida fosse descartada. A cozinheira, sentindo-se bastante ofendida, recolheu a comida da mesa sem entender nada do que se passava. Pela primeira vez, todos nós, os serviçais presentes naquela noite, nos refestelamos com um intocado banquete dos Genarus. A comida estava esplendidamente deliciosa.
No outro dia, quando o almoço fora servido, a cozinheira levara um bofetão por parte do coronel que, ao ter seu prato servido, se levantara da mesa e, num ato de violenta selvageria, se lançara sobre a pobre cozinheira a cobrindo de ofensas e impropérios. A filha mais jovem do Coronel vomitara sobre a própria mesa. Todos da família Genaru olhavam para a comida com a expressão do mais abjeto asco. Dona Amélia colocou as mãos sobre a face e começou a chorar desesperadamente diante do que ela via sobre sua bela mesa de jantar. Vermes enormes rastejavam entre os talheres e a prataria. Subindo pelas finas taças de cristal. Mais uma vez fora dada a ordem para descartar toda aquela comilança. O jejum dos Genarus continuava.
Naquele mesmo dia, após o jantar ser servido e a cena se repetir, a cozinheira, depois de mais de vinte anos servindo naquela casa, foi-se embora com o sentimento de mais profunda ingratidão. Sentia-se extremamente ofendida, pois sua comida estava em perfeita ordem e asseio. O odor era agradabilíssimo, e o sabor, melhor ainda. Mais uma vez, nos banqueteamos como se fôssemos pessoas de mais alta estirpe. A pobre faxineira ficou responsável por preparar as refeições até que uma nova cozinheira fosse contratada. No dia seguinte, assim que ela serviu o almoço — claro que não era nenhum banquete, mas tratava-se de um belo repasto —, perdeu até mesmo o emprego de faxineira. Nenhum dos Genarus sequer experimentou a comida daquela pobre coitada. Alguns saíram da mesa com ânsias, cobrindo os olhos e a boca, como se estivessem vendo a mais terrível das visões.
Desde aquele dia, nunca mais voltei àquela casa, mas soube que, em menos de quinze dias, mais dois integrantes daquela família se recolheram à cidade dos esquecidos. O restante os seguiu em pouco tempo — haviam todos morrido de fome. O filho bastardo do Coronel, não suportando toda a tragédia que se abateu sobre aquela casa, decidiu partir e nunca mais voltou. Notícias suas, ninguém mais teve por aqui. Se estava vivo ou morto, ninguém sabe.
Alguns acreditam que esse filho torto ainda esteja vivo — a menos que o Coronel tenha outro descendente desconhecido —, pois, segundo a profecia da cigana Soraya, o Coronel Severiano só teria o privilégio da morte quando o último de sua linhagem morresse de fome ou atentasse contra a própria vida. E ainda há quem ouse dizer — mesmo sendo uma das criaturas mais terríveis de se ver — que o Coronel ainda esteja vivo. Como, ninguém sabe ao certo, pois se alimenta muito raramente, uma vez ou outra, quando já não consegue mais suportar a fome. Quem já o presenciou comendo diz que é uma cena lastimável. O poderoso Coronel Severiano, para poder se alimentar, precisa vendar os olhos antes de ver a comida e, quando o faz, fica com ânsia de vômito o tempo todo, vez ou outra retirando vermes imaginários da boca...
Toda fotografia é uma imagem que carrega o espectral: a morte. O instante fotografado jamais será vivido novamente; assim jaz um tempo que passou…