O Estranho Senhor Jack
Recentemente, fui contratada para cuidar do senhor Jack, um homem que precisava de atenção médica mais direta. Era uma tarde chuvosa, e as gotas de água deslizavam pelas janelas, criando um som quase hipnótico. A princípio, sua aparência não me parecia incomum. Ele tinha cabelos brancos, um olhar profundo e uma pele enrugada que parecia contar histórias de uma vida inteira. Um senhor aparentemente calmo e terno. Mas logo percebi que havia algo estranho em seu jeito de ser.
— A senhorita é Liah, a nova cuidadora? — perguntou ele, com uma voz trêmula, mas carregada de uma firmeza que me desconcertou. Seus olhos brilhavam de maneira peculiar, como se cada piscar guardasse um segredo obscuro.
— Sim, senhor Jack. — Ajeito a minha roupa. — Estou aqui para ajudá-lo com o que precisar.
Respondi, tentando manter a voz calma, apesar do frio que começava a se espalhar discretamente pela minha pele. A voz dele era assustadora, quase tenebrosa. Mas resolvi iniciar o meu trabalho e ignorar essa impressão.
Nos primeiros dias, segui a rotina que me foi indicada: preparar refeições, administrar medicamentos e, quando possível, conversar com ele. Mas as conversas rapidamente tomaram um rumo incomum. Jack tinha uma maneira de se expressar que me deixava desconfortável. Ele se detinha em detalhes, descrevendo coisas que não faziam parte de sua realidade aparente.
— Você sabia que o mundo não é o que parece, Liah? Às vezes, a verdade está escondida sob a superfície, como um peixe à espreita nas profundezas do mar — ele disse em uma tarde, enquanto olhava pela janela para a tempestade lá fora. — Talvez a realidade esteja abaixo da minha própria pele.
Eu tremi. Ali, eu não tinha mais dúvidas sobre a estranheza do senhor Jack.
— Acho que sim, senhor. Mas o que quer dizer com isso? — perguntei, tentando parecer interessada, embora uma sensação de inquietude começasse a tomar conta de mim.
— Ah, a curiosidade. Uma chama que pode queimar, sabia? Às vezes, é melhor não saber. Às vezes, o que se vê não é real. — Ele voltou a olhar pela janela, seus olhos distantes, como se enxergasse algo que eu não conseguia.
Havia dias em que eu achava que ele estava perdido em outra época. Ele falava de amigos que eu sabia que já haviam partido há muito tempo, ou mencionava lugares que não existiam mais. Suas mãos tremiam ao segurar o copo, mas, quando falava, sua voz era clara e poderosa, uma anomalia que me deixava assustada.
— Liah, você já ouviu as vozes? — ele perguntou em uma noite, quando a luz fraca da lâmpada lançava sombras dançantes nas paredes. Meu coração disparou.
— Vozes? Que vozes, senhor? — Eu estava apreensiva, mas não queria parecer insensível.
— As que habitam os lugares onde as pessoas não vão. Às vezes, ouço sussurros vindos do sótão. Eles me chamam, sabe? Como se soubessem que estou aqui, que guardo algo importante.
Respirei fundo, torcendo o lábio com irritação. Ele inclinou-se para frente e manteve os olhos fixos nos meus, quase como se estivesse tentando me convencer de que havia algo mais naquela casa, algo nele.
Naquela noite, não consegui dormir. Os sussurros pareciam ecoar na minha mente. Olhei para o sótão, e a porta estava entreaberta, como um convite à curiosidade. No entanto, um medo paralisante me impediu de me aproximar. O que se escondia lá em cima?
— Não se preocupe, Liah. A curiosidade é a mãe de todas as descobertas, mas também a raiz do medo.
— Dá para o senhor parar de falar essas coisas? — bradei, irritada. — Desculpe, não queria gritar com o senhor. É que estou amedrontada com essa conversa.
Percebi que me deixei levar pelo medo e me desculpei com ele, acalmando-me, fechando os olhos e virando-me de costas. Nesse momento, o senhor Jack havia se aproximado sem que eu percebesse, e a maneira como deixou esvair o som da sua respiração fez meu sangue gelar. Junto a essa percepção, notei seu rosto se transformando, como se fosse um líquido pastoso a se derreter, e seus lábios se abriram como quem grita. Seu olhar arregalou-se, e eu gritei, fugindo da sua presença. Quando olhei para trás, ele parecia normal. Então, me acalmei e ignorei o ocorrido durante todo o dia.
No calar da noite, comecei a notar pequenas coisas: objetos que mudavam de lugar, a temperatura da casa que oscilava inexplicavelmente, como se algo estivesse vivendo ali, algo que se alimentava da confusão e do medo. Eu tentava convencer a mim mesma de que eram apenas os efeitos do estresse, mas a sensação de que a casa estava viva e me observava crescia a cada dia.
Uma tarde, ao preparar o almoço, decidi confrontá-lo com a minha teimosia de jovem.
— Senhor Jack, tem certeza de que está bem? O senhor parece… diferente. Como se estivesse lutando contra algo.
Ele sorriu, mas era um sorriso que não chegava aos olhos.
— Ah, minha querida, todos lutamos contra algo. A diferença é que alguns de nós conseguem ver o que realmente está em jogo. Você não sente? A casa está mais viva do que nunca.
Meu coração parou. Não era apenas a voz dele que soava estranha; eram suas palavras, carregadas de um peso que eu não conseguia entender. Naquela noite, enquanto a tempestade rugia lá fora, não pude mais me conter. Com um nó no estômago e um aperto no peito, decidi subir ao sótão.
A escada rangia sob meus pés, e cada passo que eu dava era um desafio à minha coragem. Ao abrir a porta, um frio insuportável me envolveu. O sótão era escuro, exceto por uma luz fraca que parecia emanar de um canto. Quando me aproximei, percebi que não era apenas uma luz, mas uma espécie de pulsar, como se algo estivesse se agitando ali dentro.
— Liah… — O chamado era suave, quase um sussurro. Era a voz do senhor Jack, mas não era dele. Era um eco distorcido, vindo do próprio coração da casa.
— Senhor Jack? O que está acontecendo?
Eu estava paralisada, mas a curiosidade me puxava para frente. A luz tornou-se mais intensa e, por um momento, vi o que estava se movendo: sombras dançantes, figuras que pareciam absorver a essência do lugar.
— Venha, Liah. Você pertence a nós agora. A verdade é uma anomalia, e você acabou de descobrir sua essência.
Senti o chão tremer sob meus pés e, em um instante, uma onda de frio me atingiu. Meu grito se misturou com o vento que uivava lá fora.
No dia seguinte, despertei no sótão, sozinha, sem lembrar como, de fato, adormeci. A casa estava silenciosa. O senhor Jack havia desaparecido. O único sinal de sua presença eram os ecos de suas palavras que ressoavam na minha mente e a porta do sótão, agora fechada, mas com uma luz tênue que ainda brilhava através das frestas.
Não pensei mais e deixei aquela casa. Nunca mais voltei.
Às vezes, quando a chuva cai e as sombras dançam nas paredes da minha casa, posso ouvir a voz e ver o rosto desfigurado do estranho senhor Jack. Ele me chama, como se eu também fosse uma parte daquela anomalia, perdida entre o que é real e o que nunca foi. O estranho senhor Jack será o meu eterno terror.
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