Autômato Anômalo
O ano é 2665.
A metrópole Escarlate, situada no coração do mar Ártico, é sustentada por enormes reatores e tubulações que criam uma verdadeira fortaleza de titânio que alcança as nuvens e as estrelas.
O governo autoritário não permite animais, nem de estimação, nem para consumo. Também não é permitida nenhum tipo de criação literária ou musical. A cidade está sempre sob vigilância para que nenhum tipo de melodia seja reproduzida. Ela vive sob um domo de vidro enorme, assim como outras diversas cidades deste devastado mundo protegido por cúpulas, pois, fora delas, reside um selvagem deserto fervente e predatório durante o dia, que, à noite, torna-se um inferno congelante mortal.
Escarlate mantém-se abastecida por geradores ultramodernos, ligados por intermináveis cabos, tubos e conexões, além de incontáveis usinas hidrelétricas conectadas aos rios subterrâneos da cidade. A única forma de se deslocar para fora é por labirínticos túneis intermináveis que levam ao mundo exterior, caso se consiga sobreviver até encontrar a saída. Esses túneis abrigam criaturas grotescas, enormes vermes deformados e sedentos de sangue, entre outras ameaças. A superfície da cidade é inteiramente feita de titânio e concreto, está sempre chovendo, e o cenário é inteiramente cinzento e avermelhado, com um vermelho forte, como se a metrópole estivesse constantemente sangrando, iluminada por incontáveis luzes de neon de um vermelho-sangue.
A cidade é dividida em três partes: o subterrâneo da morte, o miolo e o topo.
A capital, situada no centro e chamada “Ruber”, fornece à elite todos os recursos necessários para a vida de luxo que os magnatas controlam com mão de ferro, sob constantes ameaças, medos, trabalho exploratório e a profunda exploração da mente e da racionalidade humana.
Devido a tais explorações, ao extremo estresse, à negligência médica e à violação da dignidade humana, os moradores de Ruber começaram a desenvolver uma espécie de doença em seus corpos.
Os cientistas da elite analisaram casos isolados e constataram que tal mutação ocorria devido a uma anomalia nas células dos indivíduos que apresentavam sintomas extremos de medo, tristeza, raiva e frustração. Em casos mais graves de tragédia ou traumas, as pessoas iam a óbito em poucos dias. Essa praga ficou conhecida como o Câncer Escarlate.
Medidas médicas não continuavam sendo tomadas, e a doença evoluía conforme a tecnologia também evoluía.
A elite desenvolveu humanoides autômatos para analisar, caçar e eliminar qualquer cidadão que fosse detectado com essa doença. Esse programa foi batizado por eles de
“A Purificação Escarlate”.
Logo, as ruas, avenidas e esquinas de toda a metrópole estavam sendo patrulhadas por inúmeros autômatos.
O que a elite não imaginava é que a doença se desenvolvesse ainda mais, criando mutações e transformações cada vez mais grotescas nas pessoas, tornando praticamente impossível esconder os sintomas da fiscalização robótica. A aparência das pessoas sofria mutações de acordo com a intensidade de seus sentimentos. Logo, todas as pessoas estavam assim; inclusive, os bebês já nasciam com deformidades, e todos, sem exceção, não se reconheciam mais. Todos se enxergavam deformados, com alguma anomalia na aparência e, principalmente, no interior. As poucas árvores e flores que coexistiam na metrópole também sofriam alterações genéticas, muitas tornando-se agressivas, predatórias e venenosas — criaturas sem vida ou beleza.
As pessoas começaram a aceitar suas condições e a compreender que essa maligna condição jamais alcançaria cura ou paz, e que a elite não permitiria exterminar todo o seu povo. Ou seriam eles capazes de tal extermínio?
Crianças com rostos queimados, sorrisos deformados, olhos com bolhas constantes, nódulos, entre outros...
Há formação constante de bolhas sob a pele quando ocorre infecção causada por bactérias em um ou mais folículos pilosos.
Os furúnculos começam como nódulos vermelhos e sensíveis. Eles se enchem de pus, crescem, se rompem e drenam. Um carbúnculo é um agrupamento de furúnculos.
Compressas quentes podem ajudar o furúnculo a amadurecer e drenar. Algumas pessoas se reuniam em centros na tentativa de tratamento, unindo-se, mas geralmente era em vão, pois todos eram contaminados, e a higiene raramente estava adequada para se viver.
Furúnculos grandes e carbúnculos precisavam de atendimento médico, que jamais ocorria, pois não havia o suficiente para toda a população.
Enquanto a elite mantinha sua aparência jovial, saudável, completamente imune e blindada, apenas observava o circo de horrores que acontecia. Devido a tal egoísmo, desprezo e verdadeiro abandono das condições de vida, nada mudava.
Quando a situação já parecia insustentável, mais um grave evento ocorreu: as máquinas também começaram a apresentar sintomas anômalos, como fungos crescendo em suas carcaças e raízes no lugar dos implantes de metal, entre outras variações.
Um dos cientistas de Ruber, chamado Dr. Kafra, um protótipo de autômato, descobriu, ao hackear sua própria memória, algumas informações comprometedoras que poderiam sentenciar sua vida e a de sua família.
Kafra descobriu que novos experimentos estavam sendo desenvolvidos nos laboratórios da elite e que algumas pessoas estavam respondendo à radiação desses experimentos. Estavam tornando-se insetos enormes, e muitas desenvolveram também uma intensa lepra, além de esquizofrenia e alucinações constantes, e membros amputados. Na verdade, o novo “Projeto Purificação”, que inicialmente seria para deslocar os casos mais graves para uma ala isolada, era, na realidade, uma expiação para isolar aqueles mais propensos a ameaçar esses testes e comprometer a saúde dos envolvidos... Nesse momento, um alarme disparou no circuito cerebral do autômato que reproduzia esses arquivos para Kafra, enviando um sinal para a central da elite, chamada “Matrix Hall”, e se autodestruindo alguns segundos depois.
Kafra imediatamente entrou em pânico.
Ele se virou, vendo seu reflexo deformado em um móvel de alumínio corroído, assim como seu corpo, seu semblante, seu pescoço — uma monstruosidade — e, mesmo assim, seus olhos se encheram de lágrimas.
Seu filho, Liam, de dezessete anos, o chamou.
O rapaz era pintor e sempre escondera suas pinturas do sistema.
Incontáveis quadros, criados a partir de misturas que ele encontrava nas sucatas e contrabandeando peças para conseguir tintas suficientes para seus trabalhos, refletiam a realidade da vida monstruosa que levavam.
Naquele instante, bateram à porta de metal da cápsula onde moravam.
“Abram imediatamente esta cápsula. Aqui quem fala é a guarda autômata a serviço da elite Matriz...”
Mais alguns segundos se passaram, e Kafra tentou explicar a Liam que ele precisava fugir... Liam ficou confuso, sem entender nada, e questionou. Mas Kafra, transtornado e transpirando frio, disse que não havia tempo e que ele precisava fugir imediatamente.
“Como vou deixar você e mamãe, papai?”
“Abra! Imediatamente...”
A esposa de Kafra e mãe de Liam abriu a cápsula.
“Não, Matra...”
“Do que se trata, oficiais?”
“Senhora, recebemos uma denúncia anônima de que seu filho está criando arte proibida pela lei do Estado, e devemos confiscar e levar ele e seu marido à custódia marcial.”
“Isso é um absurdo!” ela retrucou.
“O absurdo faz parte de nossa agenda, minha senhora.”
“NÃO!” Kafra gritou.
“Eu sei que não é por isso que estão aqui...”
Os olhos metálicos, mortais, vermelhos dos autômatos imediatamente se voltaram para Kafra.
Um dos autômatos apontou uma pistola elétrica para a esposa de Kafra e disparou bem no meio de seu peito, estourando e lavando todo o recinto com sangue, jogando-a contra a parede no mesmo instante.
Liam observou aquilo horrorizado.
“Mamãe...”
“CORRE, LIAM, FUJA!” gritou Kafra, seu pai, antes de também receber um tiro pelas costas, que atravessou seu peito, cuspindo sangue...
O garoto pulou pela janela, subiu em sua motocicleta flutuante e disparou em direção ao subterrâneo da cidade, em busca da única fuga possível daquele inferno...
Quando adentrou os esgotos subterrâneos da metrópole, parou por um momento para descansar. Olhou-se no reflexo daquela água imunda, toda aquela podridão. O garoto possuía cabelos loiros curtos, e metade de seu rosto era deformado, com veias enormes; um de seus braços era uma grotesca garra, que inchava quando ele ficava nervoso, causando-lhe uma dor descomunal. Além disso, ele sempre tinha alucinações quase todas as noites...
Será que Liam conseguiria escapar?
Liam vestia uma calça preta de borracha, botas de couro e um colete. Seu peito estava nu, exposto devido às variações de seu corpo, que sempre rasgavam as camisetas quando seu braço inchava, assim como seu coração...
Dentro do bolso da calça, ele encontrou uma carta de seu pai, que dizia:
“Liam, se está lendo isto, seu pai e sua mãe foram mais uma das vítimas de nossa sociedade. Fuja. Siga para Necropolis; lá existe um indígena capaz de ajudar. Ele foi um grande amigo de seu pai. Eles sofrem como nós, filho. Lá, toda a população se transformou em escravos esqueléticos, controlados pelo necromante líder, devorador de carne humana. Encontre meu amigo, e ele o auxiliará. Pergunte a ele sobre a relíquia encontrada no fundo do oceano Ártico e a chave encontrada nos confins da pirâmide subterrânea de gelo. Elas são a conexão para impedir que o governo Matriz continue sem sofrer com os próprios sentimentos. Essas duas substâncias precisam ser destruídas. O autômato que hackeei continha essas informações. Ele pode ajudá-lo. Adeus, filho. Boa sorte.” — Kafra
Através de uma janela subterrânea, Liam observava uma árvore apodrecida tentando sobreviver, com uma única folha no galho...
Você está lendo um texto de um Autor Visitante do Castelo Drácula. Algumas edições do projeto podem permitir que autores visitantes escrevam e participem sem que seja preciso que tenham contrato assinado com o Castelo Drácula. Autores visitante não têm perfis fixos. Ao abrirmos nossos terríficos umbrais para visitantes, esperamos que eles possam vivenciar um pouco do trabalho editorial e da profunda dedicação da equipe do Castelo Drácula.