As Figuras Macabras do Wonder Teatro

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

O Wonder Teatro era um mausoléu vivo. Suas paredes desmoronadas e sujas de poeira eram como pele envelhecida, rachada e morta, cobertas por sombras que dançavam à luz bruxuleante dos poucos holofotes acesos. O ar era denso, impregnado de um cheiro ácido de mofo e tempo apodrecido. Mesmo antes de atravessar as portas, sentia a opressão deste lugar, como se o próprio edifício sussurrasse segredos sombrios, desejando me engolir. 

Quando entrei, o silêncio se estendeu sobre mim como um manto pesado. Havia outros, sim, esperando suas audições, mas nenhum deles parecia realmente presente. Eles estavam ali, sentados nas poltronas desgastadas, mas seus olhares estavam fixos no vazio, nas sombras nascidas entre os feixes de luz do palco. 

Enquanto esperávamos, algo estava errado. Uma sensação de desconforto percorreu minha espinha, e eu senti, lá no fundo, que não deveria estar ali. Mas o desejo de ser escolhida, de provar meu valor, me segurou firme. Foi quando o vi pela primeira vez: um homem estranho e sombrio, figura pesada, vestido com um terno desbotado e remendado. Seu rosto estava pintado de branco, o sorriso congelado e terrível, esticado de uma orelha à outra como se fosse cortado a faca. Seus olhos, negros como breu, estavam vazios. Ele estava ao fundo, imóvel como uma estátua de mármore, mas parecia um mímico. 

Eu tentei desviar o olhar, mas era como se ele tivesse me enfeitiçado. Seus olhos, mortos e profundos, cravavam-se nos meus, e por um momento, tive a impressão de que ele estava dentro da minha cabeça ou torci para isso. 

— Você está bem? — A voz de uma mulher participante quebrou o transe. 

Eu olhei para o lado, forçando um sorriso tenso para a atriz ao meu lado, que parecia preocupada. Seus olhos, no entanto, estavam estranhamente distantes, quase como se ela falasse de forma automática. 

— Sim... acho que sim. Você viu o... — Olhei de volta, mas o tal mímico havia desaparecido. Aquele palco, que antes parecia vazio, agora estava apenas mais sombrio. 

— O quê? — Ela me olhou, franzindo a testa. 

Eu balancei a cabeça, tentando afastar a sensação de estar sendo vigiada. 

— Nada. 

Mas não era "nada". A partir daquele momento, o teatro se fechou ao meu redor, o ar parecia mais grosso, sufocante, cada respiração me prendia mais àquele lugar. E os outros... eles pareciam diferentes. Enquanto os chamavam um a um para o palco, a cada retorno, seus semblantes mudavam, como se algo neles estivesse sendo lentamente arrancado, inclusive aconteceu com aquela atriz que se aproximou. Suas vozes ficavam apagadas, seus olhares mortos, como se tivessem sido tocados pelo mesmo mal que eu sentia rastejar por dentro de mim. 

Finalmente, chegou a minha vez. 

Subi ao palco com os músculos tensos, as luzes ofuscantes piscando fracamente, como se estivessem prestes a se apagar para sempre. Quando comecei a recitar meu texto, algo na sala mudou. A atmosfera tornou-se sufocante, e senti que não estava mais sozinha no palco. 

Eu estava sendo observada. Não somente observada — imitada. 

Olhei para o lado e o vi. O mímico. Estava a poucos metros de mim, cada gesto meu era replicado com uma precisão perturbadora. Seus movimentos eram os meus, mas de alguma forma distorcidos, como se ele estivesse me zombando, exagerando cada curva dos meus braços, cada inclinação da minha cabeça. Seu sorriso era maior, grotesco, quase um grito mudo preso entre seus lábios pintados. 

— Pare com isso! — Gritei, mas minha voz saiu fraca, como se o teatro estivesse absorvendo o som. 

Ele não parou. Ao contrário, continuou imitando até o meu grito. Ele abriu a boca, como se estivesse gritando também, mas sem som. O eco silencioso da zombaria perfurou meus ouvidos como inúmeras facas invisíveis. Aterrorizada, corri meus olhos pelo teatro, buscando uma saída, mas as portas estavam fechadas, e os outros atores… desapareceram, mas eles não estavam desaparecidos, exatamente. Eu sabia que não. 

Quando meus olhos percorreram as fileiras de poltronas, percebi com horror que havia mais deles. Não apenas um, mas vários mímicos, todos agora levantados, saindo das sombras. Eles estavam lá o tempo todo, disfarçados. Cada um imitava um gesto meu, uma expressão. Seus corpos rígidos se moviam como bonecos quebrados. 

— Isso não pode estar acontecendo... — Murmurei, sentindo meu corpo tremer. 

Olhei ao redor e vi um espelho no fundo do palco. Me aproximei, desesperada por qualquer conexão com a realidade, mas o reflexo que vi não era o meu. No vidro sujo e empoeirado, meu rosto estava pálido, com olhos vazios e um sorriso horrendo — eu estava me tornando um deles. 

— Não… não… — Comecei a andar de costas, querendo fugir do espelho, mas o mímico estava logo atrás de mim. Quando virei, ele estava tão perto que senti o frio de sua presença. Ele estendeu a mão em um movimento lento, zombando do meu medo. 

— Quer ser uma de nós? — Ele sussurrou, mas era minha voz que eu ouvia. Ele estava falando com a minha própria voz, imitando minha entonação, cada sílaba. — Nós todos somos artistas aqui. — Ele riu em tom baixo, um riso infantil, mas que reverberava com crueldade. 

Os outros mímicos se aproximaram, cercando-me lentamente, causando-me um desespero terrífico. Seus sorrisos inexpressivos me cercavam como uma teia. Meus gestos se tornaram automáticos, meus pés imitaram seus passos, e eu já não sabia mais o que era eu e o que era eles. O teatro parecia pulsar, respirar comigo, como se eu fosse parte dele, fundida à sua escuridão. 

— Não há saída. — Disse a minha própria voz, ecoando por entre os corpos pálidos dos mímicos que se contorciam ao meu redor. — Você é uma de nós agora. 

Corri, desesperada, para as portas trancadas. Meus dedos arranharam a madeira, tentando encontrar uma saída, mas era inútil. As risadas aumentaram, ecoando por todo o salão, zombando da minha luta. E, então, eu vi: a chave, brilhando no meio da escuridão, bem no centro do palco. 

Eu sabia que nunca conseguiria alcançá-la. 

Quando me virei, o mímico original estava lá, os mesmos olhos negros e sem alma, o mesmo sorriso devorando seu próprio rosto. Ele estendeu a mão e, antes que eu pudesse reagir, tudo ficou escuro no ambiente. 

Agora, não sou mais eu; sou um reflexo no espelho e, terrivelmente, sou um dos mímicos. Espero a próxima audição de atores neste sombrio lugar. Talvez eu me veja entrar pela mesma porta por onde adentrei. Queria que isso fosse um sonho e que eu pudesse acordar, mesmo que, ao abrir os meus olhos, visse a figura mímica a me observar em meu despertar, sozinha ou acompanhada de outros como ela.

Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo

 
 

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Glícia Nathállia Campos

Nascida em um outono, na capital da Bahia, cresci em uma família que me proporcionou muito incentivo ao estudo e à cultura de qualidade. É por isso que sou uma pessoa que ama a leitura, o conhecimento, a escrita e outras áreas artísticas. Minha paixão pela arte faz aprofundar-me nela. Enfim, sou alguém com uma sensibilidade aflorada; aprendi a lidar com situações com muita humanidade, senso e responsabilidade. Sou livre de convenções e de preconceitos.

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