A Lenda de Ohropo e Sepulcro
Imagem criada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula, com Midjourney
Ohropo desperta ao entardecer e enquanto seus olhos se tumulam no precipício, um corvo de olhos pútridos crocita infeliz; a alma de Ohropo, em partes, obliterada, retorna ao seu corpo sob um manto negro e pesado — vertendo abismo. Deste modo, quando Ohropo olha em direção ao som violento, a noite está ofuscada e, murmurando, ela ascende em seu coração um temor inominável que, de súbito, outorga-lhe nítidas memórias hediondas. Instável, caminha pelas sombras, e lamuria. Compreende que seu destino inconcusso, na tarefa imorredoura de irrigar o mundo humano com seu aspecto soturno, é o sentido primevo da sua criação — e desta fatalidade ele não pode esgueirar-se, mesmo que resida, no seu mais íntimo ser, um pequeno esplendor de desejo cuja emersão advém em uma indagação longínqua, uma dúvida ínfima, um tão-somente “por quê?”.
— Qual horizonte teus pronos olhos à maldição perscrutam? — A voz que indaga possui um sibilo indistinto, de entonação lôbrega como o canto gregoriano. É Sepulcro. Ohropo volta-se devagar a Sepulcro que se orvalha na cinesia do frígido vento crepuscular; é bela como anjos lapidados pelas covas que a compõe. Ohropo nunca vira Sepulcro.
— Quem és tu? — Sonda Ohropo cuja voz é franzina em angústia.
— “Quem sois?” é o que consultas, pois que não me restrinjo a uma. — Responde Sepulcro, altiva.
Há custosa aflição à fronte de Ohropo cuja verve falecera no primeiro despertar ao entardecer, quando em seu cerne ainda habitava a si mesmo e quando suas mãos eram retratos pulcros de desgraça e sangue. Naqueles tempos, Ohropo vociferava, plangia, e nada mais.
— Vejo... És as mortes todas... — conclui, pelo que vê, através de seus olhos ainda semicerrados em ranzinza tragédia.
— Ora, que proseio contigo do além? Nada disso. Estou à vida como tu estás ao teu caminho, sempre fiel — ufana Sepulcro, elegantemente.
— Sempre fiel... — Ohropo repete, pois está confuso, algo no âmago da sua tétrica constituição oscila.
— Leva-me contigo, — implora Sepulcro — posso deixar menear teu fardo no interior de meu cálice que há de envolvê-lo em sua seiva sepulcral.
— Não posso... — Ohropo responde e suspira — Este fardo é horrendo, há de desolar todo o vosso encanto.
— Há nada que me ascenda o temor — teima Sepulcro.
— Impossível... — insiste Ohropo — Pavores são o soprar da aragem fria, e são o agora, o amanhã, o tudo o que é e há de ser.
Sepulcro sorri em revide.
Sua beleza revela uma reminiscência a Ohropo, símil ao que o oscila no cerne, o esplendor lúgubre de seu outrora tão cruel. A lágrima que vertera pela última vez há tanto tempo, renasce tímida, intolerável. Contudo um som execrável impede o alívio etéreo do broto da emoção, é a estrondosa sonância da foice de Exício. O corpo esquálido de Ohropo se consome ao desespero lutuoso, sua sentença ressurge do abismo entre ele e a inalcançável Sepulcro que, naquele átimo de tempo, fechou seus olhos santos e ideou um enlevo ao lado de Ohropo.
— Sepulcro! — Ouvem ambos, e tremulam, a voz é grave e trevosa, Exício a chama, feroz e austero; por isso Sepulcro vai ao seu encontro, pois a ele pertence, então desvanece. Ohropo senta-se sob a sua perdurável dor em solitude, frente d’onde outrora vira Sepulcro; e, sob um semblante medonho, ele espera até poder vê-la outra vez.