Capítulo 3: Insanidade do Desejo e a Loucura — A Mansão Negra

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Despertei assustada, sem razão, exceto por uma sensação de intenso temor. Sentei-me sobre a cama, respirando com dificuldade. As velas do castiçal único estavam apagadas e o breu era carregado, pesado. Como orientada, busquei por fósforos na mesa de cabeceira e os encontrei. Acendendo um, à princípio, para localizar o castiçal. A acústica daquele lugar era impressionante; nenhum som saía, nenhum som entrava. Fui à janela para abri-la, de modo a ouvir algo além do meu frenético coração. Era impossível, não me parecia ser feita para se abrir. Acendi as velas no castiçal sobre a cômoda e o que notei me assombrara de modo tétrico e tão repentino quanto meu despertar sôfrego, voltando a acelerar o meu órgão vital. Nenhuma das pessoas, naqueles retratos, possuía rosto. Suas faces estavam borradas. Aturdida, segurei uma das molduras após o fugaz afastamento impulsivo e instintivo; toquei a pintura. Parecia real. Estava seca. Com uma tênue camada de fino pó sobre sua textura. Antes que pudesse assimilar aquela bizarrice — e antes de me questionar se eu sonhava, tal como Morgion, ouvi batidas à porta e, célere, a encarei. 

Em uma lentidão espectral, coloquei o retrato sobre a cômoda e caminhei à porta, segurando o castiçal. Ao fitar meus olhos à maçaneta de ouro, ela apenas não existia. Toquei o cedro negro do umbral, busquei o que apenas nunca parecia ter existido. Ouvi mais duas batidas na porta. Um desespero mórbido emergiu no meu âmago; uma sensação claustrofóbica gritante conduzira todos os meus sentidos. A respiração, outrora ofegante, passou a ser a súplica de um horror silencioso e, ao mesmo tempo, gritante. Pus o castiçal em qualquer lugar, o qual nem vi onde, e, em desespero, bati contra a porta pedindo ajuda para sair, ainda que eu sentisse que nenhum som poderia atravessá-la. Meu pânico gerara um suor vívido pelo meu corpo e meus olhos lacrimejavam pela hediondez daquilo que eu me via imersa. Foram os minutos mais bárbaros de minha vida, pior do que tudo o que aquelas poucas horas já haviam me proporcionado. Abruto, a porta se abriu, empurrando com um abalo, meu corpo. Então vi a maçaneta em seu devido lugar e vi os olhos azuis-cinéreos de Ahzaez, segurando a maçaneta da porta, pelo lado de fora. Por um instante, eu apenas não compreendi nenhuma informação disponível à minha consciência. 

— O que houve, Saeeri? — Ele questionou, todavia, arfante e exaurida, eu não pude respondê-lo de imediato. Ele se recompôs, parecia ter forçado a abertura da porta e, decerto, ter ficado ansioso em relação ao meu bater pelo outro lado. Notei — a posteriori, quando a lembrança me veio — que fui chamada de Saeeri sem nenhum tipo de formalidade, algo difícil de acontecer com famílias como as de Sttrattan. Ahzaez aproximou-se um pouco mais e pude sentir seu calor. — Tu estás... — Ele fitou-me de cima a baixo. — O que houve? Precisas de algo? Saeeri? — Esforcei-me para respondê-lo, ponderei, n’um lampo de pensamentos, diversas palavras e as únicas que me saíram foram as mais evidentes. 

— Fiquei... presa... — Olhei para trás, de soslaio. Nenhum rosto estava apagado nos retratos. Observei a porta. A maçaneta intacta em seu áureo lume próprio. Que tipo de anomalia era aquilo? Sem nenhum histórico de delírio em todos os meus trinta anos de vida, deduzir que se tratava de alguma patologia mental, por quaisquer motivos, era ignorar a verdade. 

— Pegarei um copo d’água para que possas te acalmar... — Ahzaez dissera, voltando-se à porta, mas eu o segurei pelo braço, ainda domada pelo medo. Eu não queria ficar sozinha outra vez. Ele me olhou atento. Tocá-lo foi invasivo... e afrodíseo... como não deveria ser. Soltei-o diante de seus olhos, eram tão amedrontadores quanto todo o horror vivenciado. 

— Perdão... — Murmurei. Se já não era educado tocar alguém sem permissão, tocar aquele homem sem a devida autorização assemelhava-se ao crime mais cruel de toda a Sihren. — Estou... assustada... — Ahzaez aproximara-se da cômoda com os retratos, em silêncio; da última gaveta retirou uma toalha, estendendo-a a mim em seguida.  

— Use isto para... secar... tua tez... — Sua voz baixou a dois tons, fora quase sussurrada... — Mantenha a porta aberta, volto em breve. Com a porta aberta, ouvirei tua voz caso algo aconteça, basta chamar pelo meu nome. — Abraçada à toalha, apenas concordei com sua fala agravada pela densidade daquela Mansão; então o vi deixar o quarto. 

Como ordenado, sequei-me a pele úmida pelo temor; respirei profunda e intensamente. Prendi, com cuidado, meus cabelos que se soltaram diante meus bruscos movimentos contra o umbral. Segui ao espelho oval e ornamentado, ao lado direito da cama. Quis ver meu rosto, acalmando-me a sanidade. No entanto, não havia... reflexo... e fui tomada pelo mesmo impacto horrífico; tendo meu coração acelerado em aterrador ritmo. Cobri meu rosto com o a tolha, seu algodão negro soara-me acalentador. “Isso não pode ser real” — sussurrei, afoita, afogada em medo. 

— Dama Saeeri? — Ouvi. Seu tom inominável assustara-me, contudo, contive quaisquer impulsos, apenas o olhei com uma rapidez mórbida. Ahzaez segurava um copo d’água. Com sua presença, no entanto, ainda que macabra de sua maneira, senti-me mais segura para fitar o espelho. Lá estava meu rosto assustado, meus olhos abertos, a pupila dilatada, a pele ainda orvalhada pelo pavor. Respirei com a profundidade de um precipício, fui até Ahzaez e aceitei a água, tomando-a lentamente. Assentei-me no baú frente à cama, o qual era, também, um assento. Aguava meus lábios e entranhas enquanto secava minha tez. Ahzaez apenas olhava, em silêncio. 

— Peço perdão pelo constrangimento, Dom Sttrattan. — Pronunciei após conseguir me acalmar; não demorou muito, mas sob a presença daquele homem, assemelhou-se a uma eternidade. Sua imponência era pujante, ainda que, fora dela, o horror extravagante possuísse maior magnificência tenebrosa. — Agradeço por teu cuidado em acudir... acredito que estavas passando pelo corredor... — Queria saber o porquê ele batera em minha porta, no entanto, sua fúnebre composição aflorava minha dedicação à comunicação delicada. 

— Notei que este umbral pertencente ao teu aposento estava fechado e, portanto, vim alertar-te da importância de mantê-lo aberto em, ao mínimo, uma singela fresta. — Explicara. — Acredito que Ehllenor não tenha te informado a respeito. Como podes notar, todo este lugar foi construído para que o som não se propagasse. E as janelas não abrem à noite, por seu mecanismo próprio. Manter as portas abertas permite que possamos ouvir, caso algo aconteça. 

— Compreendo... Muitas coisas singulares acontecem na Mansão? — Questionei sem tato, confesso, àquela altura eu já não estava tão atenta. 

— Não, senhorita. Mas há Lilith cuja idade está avançada e Morgion que é apenas uma criança, ambos podem precisar de auxílio no calar da noite; estamos com colaboradores escassos. 

— Tu vagas à noite, cuidando deste afazer? — Olhei para seus olhos, à sombra própria do cômodo, eles pareciam escuros.  

— Não... — Respondera e silenciara por um momento. — Meu quarto está próximo do teu, neste corredor... há duas portas de distância. Por insônia, levantei-me para caminhar ao belvedere para respirar um ar puro e úmido. Sabendo que serias colocada neste aposento por Ehllenor, olhei em direção para certificar que a porta estaria entreaberta. — Elucidara. 

Não me parecia agradável adormecer sob o olhar de quaisquer pessoas daquele lugar; tendo a porta em fresta, refém da ausência de privacidade. E se, orientada devidamente, mantivesse os umbrais à disposição dos olhos azuis-gris daquele homem? Por quanto me observaria? “Vagante da noite lânguida” quiçá fosse o significado do nome “Ahzaez”. Esses pensamentos usurparam minha mente sem que eu os pudesse comedir, mesmo tendo sido salva por ele, a austeridade vívida de seus olhos mortos e de seu semblante obscuro não me permitiam confiar, com plenitude, em suas ações e intenções, principalmente. 

— É imprescindível minha partida agora, Dama. Devo dormir e creio que a senhorita também. — Suas palavras desafiaram o silêncio antecessor a elas. 

— Gostaria de conhecer o belvedere; é distante daqui? — Sondar o homem sobre um possível abrigo para a claustrofobia do local, soava-se pertinente. Ahzaez caminhou à porta. 

— Ordenarei que uma ama lhe guie até lá pela manhã, senhorita. — Proferira em tom soberbo. — Boa noite... — Com uma pequena saudação silente, Ahzaez deixou o cômodo, seguindo em direção ao seu quarto. 

~ ❦ ~ 

Eu tinha diversas indagações a esse ponto. Por que não travam as portas entreabertas? Ou as trocam por outras? Por que apenas não retiram as trancas? Por que não adicionam algum tipo de circuito interno de comunicação, tal como já vi na universidade de Sihren? Qual seria a razão para que as janelas fossem travadas no calar da noite? E como alguém pôde criar esse mecanismo? Os Sttrattan pareciam defender a Mansão Negra acima de tudo, acostumando-se ao que ela oferecia sem impor nenhuma condição. Além disso, o que vivenciei diante as anomalias do quarto, o sumir da maçaneta, as pinturas sem rostos, a ausência do meu reflexo. Tudo ali era um enigma exótico e amedrontador. Senti ser significativo conhecer com mais profundez os Sttrattan, pois que não poderia haver tamanho horror nos sonhos de uma criança que não estivesse, de alguma forma, manifestando-se em seu derredor, em sua família. Duvidei que um petiz como Morgion pudesse produzir um lago de sangue em seu inconsciente sem antes já ter visto muito sangue na obscuridade de seus vínculos reais. Levando em conta o odor emergido às minhas narinas horas antes, eu não poderia duvidar dessa hipótese. 

Como se não bastasse o atordoar tétrico que me cingia, adormecer naquele átimo resultou em pesadelos conturbados, dentre tais, lembro-me perfeitamente de um. Antes, todavia, de revelá-lo, é importante esclarecer que a cinesia do meu inconsciente é um tanto pusilânime, ou seja, pouco alcança a lembrança no despertar e, se o faz, é sempre confuso e irrelevante. Além disso, compreendemos os sonhos como manifestações do esquecimento — vivencias que foram abraçadas pelo oblívio, mas que nunca se perderam de nossas psiques. Quando nos lembramos delas, no entanto, a memória-de-oblívio já está refiltrada, isto é, mascarada para que seja possível alcançar a psique. Em outras palavras, o que sonhamos é um filtro da verdade de nossas lembranças ocultas. Então, com meus olhos selados pela modorra, posso jurar que aquilo que tomou conta de meu plano onírico não foi uma singela manifestação inconsciente e, do tanto que me recordo, a revelação sonial — pois que de “sonho” me recuso a chamar — parecera-me muito mais um pedaço de uma realidade multiforme e paralela àquela em que eu estava. 

Iniciou-se com a cena do meu aposento, na Mansão Negra. Eu via Ahzaez deixar o quarto tal como já descrito; com a porta aberta, seus passos foram se distanciando pelo corredor. Todavia, ao contrário do que de fato fiz, — creio eu ter feito, mas, durante o sonho, a lucidez das imagens era tão vívida que jurei ter voltado ao passado e refeito tudo o que ocorrera a partir dali — na agoníria levantei-me em quietude, olhei pelo corredor e vi Ahzaez adentrar seu aposento. A fresta de sua porta reluzia um trêmulo e quente lume vindo das velas quais ele, eu assimilei, acendera no cômodo. Caminhei descalça, sentido aos seus umbrais e, ao chegar, fitei de soslaio a fissura e o observei despir-se de suas roupas negras, devagar. Em seu dorso sangrava um grande símbolo similar a um “Y”, como se tivesse sido rasgado em sua pele. Seu corpo era como uma estátua de mármore, esculpida em perfeição e força; seu aroma viril conduzira meu olfato com suavidade concupiscente, de modo que fiquei ainda mais concentrada àquela fresta, como se estivesse obcecada em lascívia. Em contrapartida, o odor de sangue anojava, aturdindo a mente. Assim vi que sua mão esquerda, segurando um conta-gotas, lhe vertia nas costas um tipo de líquido retirado de um frasco de vidro. Ahzaez pingava a solução na base de seus ombros e nuca, e ela escorria para a ferida. Sua ofegante respiração denunciava a dor. 

Eu não podia parar de observá-lo. Relutava com a vontade obscura de invadir seu íntimo momento, todavia, igualmente era abraçada por um medo e uma curiosidade excitante, desenfreadas sensações que me mantinham submissa àquela tênue fresta. Então, Ahzaez virou-se. Olhando diretamente em meus olhos. Em assombro, afastei-me da porta, contudo, não evadi. Logo a notei abrir-se e a sombra do corpo de Ahzaez fez-se pelo assoalho iluminado apenas pelas velas. Quando ele surgiu entre sombras e cálidos lumes, vi a perfeição de seu torso e, nele, outra grande ferida similar a um sigilo antigo, talvez uma mescla de Ankh e o símbolo invertido da Ascendência. Sua tez suava como outrora a minha suou, ou melhor, como na realidade suou em completo espanto pelas anomalias. Diferente de mim, naquele perverso sonho lúcido, Ahzaez não expressava nenhum temor, nenhuma emoção. Portanto, era mesmo ele. Sempre incólume. 

— Precisas de algo, Dama Saeeri? — Dissera, austero. Eu estava arfante, como se acometida por uma súbita falta de ar. Eu o temia e era-me difícil não observar sua ferida sangrenta, sua tez úmida, as sombras sobre toda a cena mórbida. Meu corpo não respondia à minha intenção de movimento, minha voz não espargia pelo silêncio. — Saeeri? — Murmurou, aproximando-se de mim. 

— O que... houve? — Sussurrei, preocupada com a ferida, quando ele estava próximo. Senti-me impulsionada a tocar aquele símbolo, porém, tive o despertar da consciência e notei que estava sonhando; evitei minhas ações e falas, tentando modificá-las; como se eu guiasse minha própria mente, empenhando-me em convencer-me de agir diferente daquilo. Era em vão. Ahzaez olhou para meus lábios e tocou, levemente, meu braço, levando meus dedos à lesão de seu torso. Toquei-o com gentileza e Ahzaez, em grave gemido, expressou a dor horrífica que sentia, embora se contivesse em demonstrar. Meus dedos umidificaram-se pelo sangue e não me demorei tocando-o, evidentemente; era aflitivo vê-lo sofrer daquela forma. — Por que...? — Soprei somente a ele e seus olhos se aprofundaram nos meus. Seu semblante tornou-se sombrio e triste. Despertei de súbito neste átimo. Outra vez assustada, com o coração frenético. Era manhã, o alvor despontava sutil, sua luz traspassava a janela ornamental; não demorei a notar que havia vívido sangue em meus dedos. 

A Mansão Negra
Doutora Saeeri Heigger é convocada para investigar os sonhos aterradores de uma criança de nove anos. Entretanto, o menino pertence à família Sttrattan e reside na Mansão Negra. Convencida de que se trata de apenas mais um caso clínico, Saeeri aceita a proposta, mas, parece que o que dizem sobre os Sttrattan é pior do que ela imaginava e os horrores oníricos vão além da mente de seu pequeno paciente. » Leia todos os capítulos.

Escrito por:
Sahra Melihssa

Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. No túmulo da sua literatura gótica, a autora entrelaça o terror, horror e mistério com a beleza mélea, o fantástico e o botânico, como em uma valsa mórbida… » leia mais
16ª Edição: Soramithia - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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