Capítulo 1: Um Sopro de Pressa — A Mansão Negra
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
O perfume dos lihrios de ébano serena meu coração desde então; por muito quando as visões daqueles momentos perturbam a minha memória, recorro à essência vestal de suas pétalas lutuosas e vejo o pólen laranjim manchar-me o cimo de meu nariz. Colho-os sempre n’aurora e descanso seus caules n’água fria, adoçada com stevia; costumo escolher um cântaro de cerâmica... deixo-o ao lado de minha Vërmanen. E escrevo. Para tirar esses vis numes que murmuram presos em minh’alma... murmuram tal como lamuria o lôbrego jardim da Mansão Negra, onde vi, naquele primeiro dia, a sublimidade dos galhos das paineiras se esgueirando secos entre si, criando um emaranhado assombroso junto aos cedros mirrados pela seca do outono, entretanto, havia mais.
Enquanto sussurrava o inverno de Nottsoen, gemia a mastodôntica floresta de Amorttam onde os mognos, com suas folhas perenes, poderiam ressoar a verdejante esperança, porém, junto com outras espécies da mata, tudo apenas amedrontava. Em contraste com a morte das decíduas do jardim, a floresta de Amorttam era profunda e frondosa — e ainda é. Posso dizer que o mesmo acontece em todos os períodos sazonais, até quando, na primavera, os Ipês florescem e as orquídeas se multiplicam. Por infortúnio, ou não, estive aos pés de Amorttam, pela primeira vez, no fim do inverno, no mês da escuridão perpétua e, por fatídico destino, no mês das duas luas novas. O inverno d’este lugar traz a névoa que sempre se concentra e a molúria que se esparge mórbida e silente, como se domadas pela Mansão Negra.
A Mansão Negra fora erguida no ano cinquenta, por Damon Krvier, o Soberano do Império Krvieröm. Esta é a única relíquia que ele deixara nas terras de Sihren. Em algum momento, a Mansão tornou-se o Lar de uma família que, até então, eu compreendia como, tão somente, uma família peculiar: a Família Sttrattan. A razão — a que me fora explicada pelos conhecedores menos distantes da população local e, em especial, dos Sttrattan — pela qual decidiram por habitar a Mansão Negra, estava ligada intimamente à admiração de Dama Lilith Sttrattan pela arquitetura fascinante do local e pelo habitat que o envolvia. O Soberano do Império Sihren, Dom Soron Vonssihren, proibiu que a Mansão Negra fosse habitada por quaisquer pessoas desde que Damon Krvier deixara Sihren. Por razões obscuras, foi permitido que a Família Sttrattan tomasse posse do lugar.
O povo Sirehnian fomentava suas lendas; alastrava suas pressuposições — dentre elas havia uma que se destacava. Muitos acreditavam que a Dama Lilith Sttrattan tivera um envolvimento com o Soberano Damon Krvier e, sendo uma verdade incontestável a imortalidade dos Soberanos, Dom Vonssihren teria permitido que Lilith ficasse na Mansão Negra para impedir que o local se tornasse um umbral ou totem para Damon — dado que, supostamente, ele estaria envolvido com coisas ocultas. Lilith, por sua vez, em profunda mágoa por ter sido enganada por Krvier, teria jurado a Vonssihren que sua família manteria a Mansão Negra protegida da manipulação diabólica do Soberano inimigo. Sendo assim, teriam selado um acordo e, desde então, os Sttrattan mantiveram a jura primeva. Se isso é verdade, eu não sabia; o mistério era denso como a morte e eu sequer imaginava que os rumores terríficos eram, na verdade, brandos ao extremo se comparados àquilo que viria ao meu encontro durante minha estadia.
As bizarrices da Mansão Negra começaram a ser compartilhadas pelas histórias narradas e escritas ao longo dos anos desde que, com a moradia habitada, pessoas passaram a visitar a residência, tais como jardineiros, professores de música e dança que davam aulas particulares para os filhos Sttrattan; vendedores, cuidadores, entre outros serviços contratados pela família. De vultos pelos corredores à sussurros mórbidos pelo jardim. A Mansão era, decerto, alvo de alguma força oculta e se eu não tivesse passado tantas noites em suas entranhas, continuaria cética a respeito das fábulas e, com toda a certeza, estas palavras não estariam sendo escritas agora.
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Há dez anos, em um dos mais mórbidos invernos que passei, fui chamada à Mansão Negra pela filha mais velha dos Sttrattan, senhorita Ehllenor. De acordo com o que conversáramos por cartas, Ehllenor temia que seu filho de nove anos, Morgion, estivesse passando por algum problema de caráter emocional ou mental, pois, a criança tinha grandiosas crises noturnas durante o sono e, por vezes, passava pela experiência de sonambulismo e agoníria ao mesmo tempo, o que em perigo o colocava quase todas as vezes. Compreendi sua aflição, em especial, n’uma das cartas que fora escrita e entregue uma semana antes de minha partida de Numnura para os limiares de Amorttam; nesta missiva — parte disponível na íntegra —, Ehllenor revelara uma coisa pertinente e bastante assombrosa.
Para Saeeri Heigger
De Ehllenor Strattan Vvelusch
20 de Selenoor, 349
Caríssima Saeeri, escrevo-te antes do previsto, pois, algo perturbador ocorrera na noite passada. Perdoa-me pelas alarmantes palavras que, com infortúnio, usarei neste soturno papel, pois, tamanha fora a minha aflição que não posso poupá-las para te descrever a verdade. Adianto, sobremaneira, que implorarei, em todas as linhas, que antecipes tua vinda à Amorttam para que possas, com o teu conhecimento sobre a psique humana, ajudar-me a guiar, da melhor forma, o meu pequeno Morgion. Por favor, minha querida, sabes o quanto sofre uma mãe cujo coração pertence a um Corvo-dos-mares; o pai do meu pequeno lume raramente está presente e isso decerto o afeta. Embora eu o compreenda em seu ofício para com o Soberano Vonssihren, dói-me que ele tenha que ficar distante por longos períodos, inda mais quando tudo parece sair do meu controle. Compreendo, igualmente, que deixar Numnura e viajar por inúmeros dias até Amorttam será sofrível, no entanto, disponibilizo a ti tudo o que é necessário. Inclusive, neste envelope estão três Siremihtas, isso deverá ser suficiente para que viajes com conforto e segurança.
Peço, com profunda súplica, que escrevas para mim antes de tua partida — a qual espero que seja emergente, ao tardar da manhã em que esta missiva te for entregue; deste modo, poderei monitorar o tempo da tua vinda e, reforço, que não te distraias pelo caminho; prometo proporcionar-te um retorno mais sereno após a tua estadia e, então, poderás usufruir das paisagens ao longo de Sihren e de todas as singelas províncias cuja cultura é única e as histórias surpreendem. Esclareço que tais Siremihtas antecipadas não estão vinculadas ao valor do teu ofício, são à parte, para que consideres a prioridade dos teus próximos dias de Nottsoen e não se demore para aprontar tuas malas. Perdoa-me o desespero e insistência, creio que, agora, seja de exímia importância lhe revelar o último ocorrido com Morgion, meu menino. Leia com atenção, caríssima; rogo-te.
Estávamos adormecidos, beirava à hora lôbrega, como o costume que tu bem conheces em razão de minhas cartas anteriores; estava frio como um manto de morte quando despertei assustada, ouvindo Morgion lamuriar em sua cama. Fiz o que a senhorita recomendara, não o acordei para que o episódio não o causasse traumas e sofrimento; todavia, eu o via, ó sim, sua expressão era extremamente assustadora, senhorita; era um rosto que, ouso escrever-te, não era o de meu pequeno. Sorria um sorriso glacial e oblíquo, seus olhos abertos e arregalados evidenciavam suas retinas que tremiam e vageavam como se acompanhassem cenas assustadoras; nunca ouvi falar sobre ser isso possível; por vezes sumiam, mantendo apenas a esclera nívea e horrenda. Sua tez empalidecida assimilava-se quase hialina, além de úmida de um suor gélido inenarrável. Ele lamuriava dezenas de frases mórbidas e, quando o toquei em sua fronte, com um pano aquecido, pois temi que se tratasse de estado febril, ele se assentou à cama quieto — pensei que se levantaria para caminhar à esmo, como nos dias antecessores, porém, movimentou-se estranhamente, olhando-me com suas escleras... quão atro, minha querida... arrepiei-me de imediato e o ouvi sussurrar o inaudível quando, súbito como um relâmpago, ele me atacou, n’uma inominável rapidez, na tentativa de morder-me o pescoço.
Saeeri, não sei como proferir o verdadeiro medo que senti... decerto sabes das lendas percorridas pelos quatro quantos de Sihren a respeito desta Mansão; não creio que seja real, no entanto, desde que nos hospedamos aqui para que a solidão de meu amado Atos não nos impactasse em demasia, Morgion tem vivenciado o mais horrífico e não vejo saída que não seja rogar às quaisquer boas entidades sobre-humanas, para que possam purificar este mausoléu. Não me recordo de vivenciar tamanhos horrores quando cá vivi na tenra infância, por mais escuros que fossem esses corredores; e agora vejo todos os mais terríficos horrores amargurarem a infância de meu menino. Sua feição diabólica não deixa minha mente e, agora, eu é que sofro dos pesadelos mais ensandecidos. Tive de fazer algo por Morgion naquele momento, compreende? Mesmo debaixo de um medo abíssico, segurei os ombros do petiz e o chacoalhei bradando seu nome a ponto de ecoar por toda a Mansão pelas portas entreabertas. Mamãe despertara, todavia, ao chegar ao aposento em que estávamos, com seu singelo castiçal, Morgion já havia saído do transe e chorava de soluçar, pobre pequeno, tão puro, tão atormentado em pânico.
Ehllenor descrevera um estado de sono profundo, onde os olhos movimentam-se de acordo com os sonhos e o corpo é canalizado para o torpor muscular. Algo comum nos estudos soniais e neurológicos; entretanto, era evidente o distúrbio e assombrosas as descrições acerca da face da criança; pude supor ser um sonambulismo catatônico ou, porventura, a patologia da condição patológica. Professor Nehri nomeara, a posteriori, o episódio de “agoníria túrbida com prosopagnosia estúrdia” quando lhe contei a respeito do caso em uma troca de missivas.
Não possuindo acesso ao paciente, era inviável dar diagnósticos, no entanto, indiscutível deduzir algumas possibilidades. Diante à missiva escrita por Ehllenor, lembrei-me de Maelli Vonssihren, nossa Mestra nos estudos psíquicos, suas palavras imersas por uma sabedoria única diziam: “A respeito da mente, toda a dedução é uma verdade em algum grau e todo o estudo é apenas um início, seja hoje ou daqui a milhões de anos”. Explorar a mente requer lucidez e um pouco de loucura. Evidente que preparei minha partida no mesmo dia, escrevi-a como solicitado e vi-me no primeiro trem para Amorttam antes do anoitecer.

Doutora Saeeri Heigger é convocada para investigar os sonhos aterradores de uma criança de nove anos. Entretanto, o menino pertence à família Sttrattan e reside na Mansão Negra. Convencida de que se trata de apenas mais um caso clínico, Saeeri aceita a proposta, mas, parece que o que dizem sobre os Sttrattan é pior do que ela imaginava e os horrores oníricos vão além da mente de seu pequeno paciente. » Leia todos os capítulos.

Sahra Melihssa
Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. No túmulo da sua literatura gótica, a autora entrelaça o terror, horror e mistério com a beleza mélea, o fantástico e o botânico, como em uma valsa mórbida… » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
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