O Olho e a Consciência: Uma Leitura Fenomenológica de O Coração Delator, de Edgar Allan Poe
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Edgar Allan Poe não foi apenas o Mestre da Literatura Gótica; foi também, talvez sem intenção filosófica explícita, um desbravador abissal da alma humana. Em suas obras, nas entrelinhas e no subsolo de suas narrativas, pulsa um olhar que vasculha a consciência — como quem, com uma vela trêmula, desce às criptas do próprio ser. Poe não apenas construiu atmosferas de terror, ele investigou — com rara acuidade — os labirintos da percepção, os jogos da culpa e os delírios da introspecção. Sua escrita é, muitas vezes, o palco de uma fenomenologia instintiva: uma maneira de compreender o mundo não como ele é em si, mas como ele se dá à consciência angustiada, deformada, apaixonada ou adoecida. O horror em Poe não provém do exterior, mas emerge do íntimo: é o próprio sujeito, em sua experiência radical, que dá forma aos monstros. A realidade física apenas serve de espelho para os abismos internos — e é nesse ponto que sua literatura se cruza com os fundamentos da Fenomenologia e do Existencialismo.
Em “O Coração Delator”, publicado pela primeira vez em 1843, acompanhamos o relato em primeira pessoa de um narrador que insiste em provar sua sanidade enquanto descreve, com precisão crescente, os eventos que o levaram a cometer um assassinato. O velho com quem convive — e que não lhe fizera mal algum — desperta nele um ódio obsessivo motivado não por ações, mas por um aspecto físico: seu olho, que ele descreve como um “olho de abutre”, pálido, vítreo, insuportável. Incapaz de suportar esse olhar — ou o que acredita estar por trás dele — o narrador assassina o velho e esconde seu corpo sob o assoalho da casa. No entanto, ao ser interrogado pela polícia, começa a ouvir, ou crer que ouve, o som do coração da vítima ainda batendo sob o chão. A culpa o invade como uma tormenta interior e, em um clímax de agonia, ele confessa o crime, incapaz de suportar o peso de sua própria consciência.
Para Husserl, compreender o mundo não é tomá-lo como dado absoluto, mas como fenômeno: algo que aparece à consciência em sua intencionalidade. Ao propor a epoché — a suspensão do juízo natural — o filósofo convida a deixar de lado as certezas objetivas para investigar como as coisas são vividas. Em “O Coração Delator”, esse princípio se realiza literariamente: o narrador não vive em um mundo compartilhado, mas em um universo fenomenológico próprio, onde o olhar do velho é uma presença insuportável que ultrapassa a aparência física. O olho — vítreo, opaco, silencioso — não é apenas um órgão: é um fenômeno. Ele se impõe à consciência do narrador como uma entidade viva, quase metafísica. Sob a ótica husserliana, o conto de Poe é a narrativa de uma consciência em ruptura com o real, tomada por uma percepção deformada que se impõe como verdade absoluta. Não importa o que o velho é, mas o que aparece para aquele que o observa. O olho não vê: ele é o próprio ser do narrador sendo visto, dilacerado e condenado em sua interioridade.
Enquanto o narrador de O Coração Delator insiste que sua perturbação advém do olho do velho — acreditando que o horror reside no objeto exterior —, a fenomenologia de Husserl desestabiliza essa aparente separação. Husserl nos convida a perceber que não existe, em essência, uma cisão definitiva entre sujeito e objeto; o que há é a relação intencional — a consciência é sempre consciência de algo. O objeto não existe, portanto, isoladamente: ele é aquilo que se dá à consciência como fenômeno. O olho do velho, nesse sentido, não é simplesmente um órgão visual: ele é o sentido que emerge do encontro entre a percepção e a vivência do narrador. Ele se torna intolerável não por si, mas pelo modo como é intencionado, significando algo abissal à consciência que o observa.
Husserl afirma que o fenômeno nunca se mostra sem sentido. E aqui reside o horror: o objeto, ao se apresentar à consciência, o faz sempre por meio de uma síntese de aspectos, e o narrador não é capaz de apreender essa totalidade. Ele fixa-se obsessivamente em uma parte — o olho —, incapaz de integrá-lo à plenitude do ser do velho, que permanece, para ele, um enigma angustiante. O olhar fragmentado gera uma verdade parcial, que se absolutiza e se impõe como delírio. O crime, então, não é resultado da realidade objetiva, mas da verdade fenomenológica que emerge da relação entre um sujeito transtornado e o fenômeno que ele recusa compreender em sua totalidade.
Podemos concluir que Poe, com sua pena encharcada de angústia e lucidez, esgarça as entranhas da existência humana ao nos confrontar com a dificuldade — ou talvez a impossibilidade — de uma verdadeira redução fenomenológica. Incapazes de suspender plenamente o mundo e suas significações, somos, em certo ponto, vítimas de uma relação consciencial intencional que se dá em síntese. Nessa síntese, ultrapassamos os dados imediatos e preenchemos os espaços do objeto — aquilo que nos é oculto — com nossas percepções, memórias, afetos e medos. Formamos, assim, uma unidade múltipla e mutável, que chamamos de identidade do objeto.
No caso do narrador de O Coração Delator, essa identidade não é construída sobre a totalidade do velho, mas sobre uma parte — o olho — elevado à condição de essência. Essa distorção não apenas revela a falência da percepção integral, mas a tragédia existencial de quem recusa o outro em sua plenitude. A consciência, ao significar o olho com horror, já não lida com o fenômeno em sua verdade, mas com o reflexo distorcido de si mesma. O mundo torna-se então insuportável não porque o é em si, mas porque se apresenta assim à consciência em colapso.
O desfecho do conto, em que o narrador ouve o som do coração ainda batendo sob o assoalho, não precisa ser lido como uma manifestação sobrenatural ou delírio puro, mas como a culminância fenomenológica de sua experiência de culpa. O que Husserl chama de visado — aquilo que é intencionado pela consciência — manifesta-se aqui como um som intolerável que não pertence ao mundo físico, mas ao campo da significação interna. O coração torna-se símbolo daquilo que não pode ser reduzido ou negado: o crime, o assassinato, o peso do ato. Pela associação intencional, a consciência organiza e sintetiza o ocorrido, fazendo com que o som seja não apenas lembrança, mas presença viva, concreta, irrefutável. A culpa, então, não é um sentimento abstrato: ela é ouvida, quase tocada, pois a consciência não consegue mais sustentar o abismo entre o que fez e o que significa. Confessar o crime, nesse sentido, é quase um gesto fenomenológico: a necessidade de alinhar o mundo vivido com a verdade do fenômeno. O coração que bate é a verdade que retorna, visada pela consciência como aquilo que não pode ser negado.
E, talvez, aqui esteja o ponto mais inquietante: seria esse afastamento da essência uma falha humana... ou a própria condição do fenômeno? Não seria a própria relação intencional — com todos os seus enganos, excessos e projeções — a expressão mais pura de nossa maneira de existir no mundo? Poe não responde. Mas nos obriga a questionar — e isso basta.
REFERÊNCIAS
SILVA, Maria de Lourdes. A intencionalidade da consciência em Husserl. Revista de Filosofia Argumentos, Ano 1, N°.1, 2009.
GALEFFI, Dante Augusto. O que é isto — a fenomenologia de Husserl? Ideação, Feira de Santana, n. 5, p. 13-36, jan./jun. 2000.
PERNA, Cristina; LAITANO, Paloma. O clássico Edgar Allan Poe. Letras de hoje, v. 44, n. 2, 2009.

Sahra Melihssa
Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. No túmulo da sua literatura gótica, a autora entrelaça o terror, horror e mistério com a beleza mélea, o fantástico e o botânico, como em uma valsa mórbida… » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
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