Nas Sombras da Inquietação do Ser: Hamlet e Kierkegaard

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia.” — Ato I, Cena V: Hamlet de William Shakespeare

A clássica citação já nos acende o sentimento profundamente existencial que permeia a obra-mestra do grandioso Shakespeare — embora, convenhamos, de obras-mestras ele tenha várias. Para além de príncipe da Dinamarca, Hamlet é um peregrino dos obscuros ornamentos de si mesmo, prisioneiro de um destino escrito nas brumas do sobrenatural, caminhando com a espada envenenada que separa o mundo dos vivos do chamado dos mortos. Sua história é a de um homem que busca vingança — e mais: a de uma alma que se debruça sobre o abismo da própria existência, tentando decifrar se ser é um dever… ou apenas uma condenação.

Assim como o Castelo Drácula, o reino de Elsinore¹ é feito de pedras úmidas, corredores múrmuros e medonhos segredos por trás de seus umbrais. Não há condições de medir os próprios suspiros diante da imensidão obscura de ambos os recônditos. Dentre os salões dourados e as criptas silentes, move-se Hamlet: um herdeiro de carne e melancolia, envolto à neblina cinérea de uma verdade que se recusa a ser revelada; uma dúvida, uma loucura e, acima de tudo, uma poética filosófica². Este é Hamlet. E se você ainda não leu a obra de Shakespeare que leva o nome do seu protagonista mais existencialmente visceral, você não está vivendo da melhor forma.

Nota paragrafal ¹

O Elsinore de Shakespeare foi inspirado no Castelo de Kronborg, em Helsingør, na Dinamarca, um dos mais importantes da Renascença e declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Ele já era associado a lendas e intrigas no tempo de Shakespeare (cf. UNESCO World Heritage Centre, Kronborg Castle).ik

A multiforme tragédia

Shakespeare escreveu Hamlet no final do século XVI, em um mundo onde as peças eram a essência da arte mais bruta, carregando consigo a literatura, a música, a interpretação, a dança e todas as demais artes que se pode imaginar. Não é muito diferente dos dias atuais — embora dramaturgos como Shakespeare, ouso dizer, já não sejam tão fáceis de encontrar no contemporâneo. Talvez porque Shakespeare, em sua época, era mistério — e só assim poderia ser, dadas as circunstâncias. Isso fazia dele um escritor cujas obras carregavam a mesma essência enigmática de seu autor.

Hoje, somos tudo, menos incógnita. Vê-se claramente as sombras dos modos-de-ser de cada indivíduo pelas redes sociais — ó que dádiva, que sulfúrico tormento³!

Nota paragrafal ³: A expressão “sulfúrico tormento” remete ao Ato I, Cena V, quando o fantasma do pai de Hamlet se despede: “Já está perto o momento em que é forçoso que de novo me entregue às labaredas sulfúreas do tormento.” A escolha dessas palavras é de uma qualidade literária rara — e isso me fascina de um jeito inenarrável! Aqui vemos cada termo carregado de peso imagético e sonoridade. Shakespeare descreve o sofrimento do além — o inferno? — e o veste com texturas sensoriais — fogo, enxofre, suplício — que só um escritor exímio, forjado nos tempos antigos, poderia conjugar com tamanha precisão e beleza mórbida. É evidência de sua veia gótica — antes mesmo do “gótico” ser concebido — e, sem dúvida, inspiração para toda e qualquer literatura posterior.

Hamlet foi uma obra embriagada em lendas anciãs, como a do príncipe Amleth, narrada por Saxo Grammaticus, e pode também ter se inspirado numa peça desaparecida, o Ur-Hamlet, que já trazia à cena o espectro exigindo vingança⁴. Essas peças perdidas, carregando reinos corrompidos e fantasmas clamando por justiça, fincaram raízes no coração de Hamlet — e nós vemos, até hoje, esse coração sangrar.

Nota paragrafal ⁴: O príncipe Amleth aparece nos Livros III e IV de Gesta Danorum, obra escrita no início do século XIII pelo historiador dinamarquês Saxo Grammaticus. O Ur-Hamlet, peça perdida mencionada por Thomas Nashe em 1589, é considerado por estudiosos uma possível fonte direta de Shakespeare, introduzindo o fantasma como catalisador da vingança (cf. Encyclopaedia Britannica, Sources of Hamlet; Gesta Danorum, Saxo Grammaticus, ed. 1514).

Mas Shakespeare expandiu o gênero da tragédia ao dar a seu protagonista não apenas um inimigo externo, mas, sobretudo, um labirinto interno de pensamentos, hesitações e reflexões. Por isso, a veia existencial pulsa durante toda a obra. Hamlet é um palco inteiro de paixão e ser; uma personificação do que há de mais humano em nós: pensar e sentir — isto é, ser.

Ser ou não ser: o abismo existencial

O monólogo mais famoso de Shakespeare não é um adorno; embora rebuscado — como toda obra escrita há éons — , ele é o nervo exposto da peça. Ele traz à tona o comportamento mais puro do ser: o questionamento. “Ser ou não ser?” Ah, sim… a tão antiga indagação, sempre viva, sempre pertinente.

Mas, afinal, o que é ser? A questão do ser sempre volta, como um eco inevitável. Desta vez, porém, não vamos seguir os caminhos de Heidegger — ainda que o paralelo fosse sedutor — , mas nos voltaremos a um outro olhar: o de Kierkegaard.

A pergunta sobre a vida ou a morte é um sussurro de sentido cujo peso é insuportável para a razão e demasiado profundo para o cerne. Hamlet é o homem que pensa demais e, por isso, age de menos — mas não é a ação, sempre, uma consequência secundária? Ou vem do pensamento ou vem da impulsividade da emoção.

Sua hesitação diante do que lhe é incumbido — a vingança — é também um ato de resistência: adiar a ação é prolongar-se no peso do que lhe antecede. O pensamento é o último bastião antes de se lançar ao vazio da consequência, consequência que emerge no instante posterior ao ato e, por vezes, se transforma em fantasma psíquico — muito mais terrível do que a aparição translúcida de um pai morto.

A pergunta “ser ou não ser” sintetiza o dilema existencial, e vamos agora, brevemente, à visão de Kierkegaard, para compreender como Hamlet encarna, em seu silêncio e dúvida, a própria condição humana diante da liberdade e da escolha.

Mas por que Kierkegaard? Gosto de pensá-lo como um poeta do pensamento e da existência humana, muito mais do que um filósofo no sentido estrito. E nada mais justo que aproximar dois poetas — um das palavras, outro das ideias. Kierkegaard escreveu extensamente sobre a existência, e seu vínculo religioso não pode ser ignorado. Pelo contrário: é justamente ele que sustenta o núcleo de sua obra, pois é nele que o filósofo-poeta vê o valor inestimável da subjetividade e do “diálogo íntimo e profundo do eu consigo mesmo” (SILVA, 2013).

Para Kierkegaard, a inquietação é a postura mais humana diante da vida. Os paradoxos que dela emergem são parte essencial dessa jornada subjetiva. Hamlet carrega essa inquietação do início ao fim: pensa até o limite da exaustão, sente até o esgotamento da alma. Para Kierkegaard, o subjetivo é o espaço onde o indivíduo, em seu eterno devir, mergulha na própria construção singular — e a subjetividade de Hamlet é um exemplo quase absoluto dessa condição (com exceção, talvez, da ausência de um direcionamento cristão, que orienta todo o pensamento kierkegaardiano).

A resposta para o “ser” em Kierkegaard é Cristo. A resposta para o “ser” em Hamlet não existe. Hamlet não encontra o “salto”, não decide; vive e morre no limiar, na vertigem⁵, prisioneiro do paradoxo entre vida e morte. Questiona o que há depois da morte, pesa a decisão de tirar a própria vida ou a de outrem, e experimenta a existência como inquietação pura. Em Kierkegaard, essa inquietação é necessária para que o indivíduo se aproxime da verdade; em Hamlet, ela é o destino — e a condenação.

Nota paragrafal⁵: Kierkegaard descreve a angústia como “freedom’s actuality as the possibility of possibility” — uma vertigem existencial que emerge do reconhecimento da infinidade de escolhas e da responsabilidade inalienável por cada uma delas (cf. Kierkegaard, O Conceito de Angústia, trad. brasileira, 2010; Wikipedia, The Concept of Anxiety). Isso é expressamente o que acontece com Hamlet.

Agora, intercalando as visões, acredito que o pensamento kierkegaardiano, ao tomar a verdade como Cristo, é valioso em muitos aspectos. Muitos dão o chamado “salto de fé” a partir da angústia que vivenciam, encontrando em Cristo não apenas consolo, mas direção. Cristo, por sua vez, trouxe à terra ensinamentos que hoje — e sempre — deveriam servir à lapidação da moral humana, tornando-a mais admirável.

Entretanto, as divergências da religião (e não de Cristo) muitas vezes condenam o ser humano à razão pura, desvinculando-o do essencial subjetivo e impedindo-o de se imergir plenamente nos aspectos de sua inquietação. Isso pode resultar numa fuga da autêntica essência ou no sufocamento dela, gerando ainda mais angústia — como nos pensamentos suicidas de Hamlet — ou criando uma “imunidade” emocional.

Eu, por fim, me inclino à compreensão de Kierkegaard, com uma única diferença: para mim, é preciso o “salto-poético” — voltar-se à verdade da poesia, a única capaz de abarcar subjetividade plena, autoconhecimento, emoção e razão — sem o peso religioso. É nesse retorno que nos aproximamos do que é mais valioso: a dádiva do existir.

De certa forma, também encontramos algo disso em Hamlet, em trechos de seu intenso, trágico e violento amor por Ofélia, por exemplo. Entretanto, a poesia que residia no peito do príncipe jamais encontrou a voz precisa em seu ser; tornou-se, portanto, a racionalidade e a loucura o seu desígnio. Nem o “salto de fé” nem o “salto-poético” aconteceram — nada salvou Hamlet de si mesmo.

Referências

Revisão de Sahra Melihssa

Escrito por:
Sahra Melihssa

Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. No túmulo da sua literatura gótica, a autora entrelaça o terror, horror e mistério com a beleza mélea, o fantástico e o botânico, como em uma valsa mórbida… » leia mais
18ª Edição: Theattro - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 18ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de agosto de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa

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