Capítulo 4: Apreensão Familiar — A Mansão Negra
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
A cristalina água corrente abluíra as provas de que aquilo não se tratou, tão somente, de uma manifestação do inconsciente. Tentei assimilar a loucura da situação, todavia, estava no horário demarcado por Ehllenor para que eu os encontrasse na sala de jantar, para iniciarmos o desjejum. Portanto, sedei meus pensamentos e indagações sombrias, fiz minhas higienes matinais e deixei meu aposento. Assim que visualizei o corredor, notei a porta da alcova de Ahzaez, ela estava entreaberta, tal como em meu sonho. Caminhei à esquerda, obrigatório para chegar ao meu destino; passei, portanto, pela porta e evitei, a todo o custo, fitá-la. Apressada e um tanto dispersa, acabei por colidir com Morgion pelos estranhos ângulos entre um recôndito e outro daquele lugar.
— Morgion! Perdoe-me. — Proferi, abaixando-me para ficar na sua altura. Ele sorriu, educado. Ehllenor estava logo atrás dele. — Como fora tua noite de sono, querido? — Indaguei-o.
— Nada bem... — Ele sussurrou, entristecido.
— Deixemos para falar disso após o desjejum, meu amor. — Orientou Ehllenor. Levantei-me e sorri para ela. Morgion abaixou sua cabeça, unindo suas pequenas mãos; ele não estava bem.
— Bom alvor, senhorita Saeeri. Espero que a primeira noite em nosso lar lhe tenha sido deleitável. — A seriedade de Ehllenor indicava-me que, na Mansão Negra, ninguém adormece em remanso.
— Sim, senhorita. Agradeço a hospitalidade inestimável. — Respondi-a mentindo, embora por razões de grande valor. Seguimos juntos à sala do desjejum.
Era um cômodo imponente. A mesa no centro era grande, para cerca de quinze pessoas. Esculpida em obsidiana, como imaginado para tudo o que existia ali, com castiçais e esguios vasos para orquídeas negras ao longo de seu comprimento. Ertthan nos acomodou e, em silêncio, aguardamos a chegada dos demais. Esperava conhecer toda a família Sttrattan naquela ocasião, contudo, em alguns minutos, Dama Lilith chegara, caminhando com cuidado sendo guiada pelo mordomo. Somente ela. Levantei-me em respeito à Anfitriã e porque assim o fez Ehllenor e Morgion. A mulher era, de fato, mãe de Ehllenor, pois, ambas eram semelhantes em demasia.
— Dama Heigger. — Dissera com a voz rouca e trêmula. Seu cumprimento fora apenas com uma singela reverência. Fiz o mesmo.
— É um prazer conhecê-la, Senhora Sttrattan. — Expressei. Sentamo-nos todos e, em seguida, Erttham iniciou a colocação dos pães, geleias, frutos e outras iguarias de Amorttam sobre a mesa. Isso indicou-me que ninguém mais viria para compartilhar o momento. — Vi muitos quadros de vossa família; indago-me onde todos estarão. — Proferi em curiosidade, no entanto, em busca de informações que esclarecem mais a vida do pequeno Morgion.
— Muitos dos meus filhos estão em Sihren para formarem uma educação completa na Universidade. Soron os acolheu com estima em seu Castelo. Outros rebentos deixaram a Mansão para que pudessem esculpir seus próprios lares; se não fosse Ehllenor e o meu adorável Morgion, estaria aqui apenas eu e Ahzaez.
— Acredito que Ahzaez seja seu filho mais próximo... — Comentei, mas, fui interrompida.
Proferir o seu nome resultou, por coincidência, em sua aparição pelos principais umbrais do cômodo. Pouco antes, Ertthan abrira todas as janelas, fazendo com que a luz e o ar gélido clareassem o local e desse-lhe vida, renovando a atmosfera. Ahzaez chegou aflito, embora conservasse um severo semblante que vi quando por ele fui recepcionada na noite anterior. Direcionou-se, em primeira instância, à Lilith. Reverenciou-a beijando-lhe a mão. Em seguida, beijou a fronte de Ehllenor e acariciou os cabelos de Morgion. Somente após tal cuidado e apreço com seus familiares, permitiu-se olhar em meus olhos; fitou-me e, por instantes inomináveis e céleres, nada fez além de observar meus olhos e meus lábios... seu olhar me desconcertou...
— Senhorita... — Proferiu em um tom diferente do qual o fez com sua família, o que me soara algo esperado e comum. Não se aproximou de mim e logo sentou-se. — Peço-lhes perdão pelo meu atraso. — Dissera.
— Não te preocupes, creio saber as razões. — Respondera Lilith, olhando para Ahzaez. — Aqui, senhorita Heigger, as noites podem ser um tanto perturbadoras. E, sobre sua indagação, creio ter o dever de esclarecer que Ahzaez é meu irmão, não meu filho.
Fiquei embasbacada com aquela informação, evitei, todavia, de expressar o assombro instantâneo. Ahzaez era jovem, decerto possuía pouco mais que eu em estado de vida. Lilith era bem mais velha, notava-se à olho nu.
— Dialogavam sobre mim antes à minha chegada. — Considerou-me culpada através da ímpar maneira com que se atentou a mim ao dizer aquelas palavras.
— Eu... — Hesitei — Eu estava inferindo seres tu o filho mais próximo da senhora Sttrattan, não... não imaginei que serias irmão da anfitriã. — Explicá-lo não deveria ser uma obrigação, todavia, a julgar pelo seu olhar, cri ser necessário. Uma efêmera quietude espargiu.
— Ahzaez fora um bebê indheren, Senhorita Heigger. — A explanação de Lilith confirmara que meu esforço, para não transmitir minha surpresa a respeito do assunto, não fora suficiente; e que, estranhamente, esqueci-me do método indheren de fecundação. Demonstrei minha compreensão e apenas me calei; tive a sensação de estar incomodando-os com minhas tolas palavras, embora fosse parte de meu ofício a indagação contínua.
— Saee... — Ahzaz hesitou — Dama Heigger pareceu-me interessada na arquitetura da mansão, em especiais os umbrais silentes. — Ahzaez dissera, sem olhar para mim ou para qualquer outra pessoa. Quase perdera a formalidade comigo, mais uma vez.
— Ó, sim... as portas... Espero que tenhas sido informada da importância crucial de mantê-las entreabertas. — Ressaltara a matriarca. Ehllenor demonstrou receio e imediatamente olhou para mim e, em seguida, para Ahzaez.
— Eu a orientei, Lilith. — Disse Ahzaez. Ehllenor sentiu alívio e ele olhou para mim.
— Ótimo. Tu sabes que a Mansão Negra pertencera a Krvier... — Lilith oscilou ao proferir o nome do Soberano e, sinceramente, o nome foi o que mais ecoou pelo ambiente e isso foi de uma estranheza pavorosa. — Não sabemos as razões pelas quais ele construíra este lugar, mas após tantos anos vivendo no “envoltório de obsidiana”, percebo que ele não tinha boas intenções ao erguê-lo. Tudo aqui é silencioso e o som pouco se propaga. Tivemos infortúnios que não serão esquecidos, tudo em razão da Mansão Negra. O que possui de extraordinária beleza, possui de segredos e, alguns deles, decerto são perigosos.
— Pensaste em deixar a mansão em algum momento, senhora Sttrattan? — Questionei, retomando meus motivos para estar ali.
— Não o farei. Ainda que me sustente em sua solidão perpétua. Eu pertenço a este lugar.
— Ninguém pertence à Mansão Negra, Lilith;. O “algo” que a pertence deveria sucumbir junto a ela. Mais perverso que aquele que a construiu, é aquele que a mantém erguida. — Interrompeu Ahzaez. Ele demonstrou uma nervosia tênue, algo que parecia guardar em seu âmago, talvez, por ter sua família na Mansão, passando pelo que passam; ou, pelo que ele passa, se o pesadelo de outrora possuir fragmentos da realidade. E lembrei-me do quanto parecera real e do sangue em meus dedos.
— Nunca disseras tamanha afronta frente a outras visitas... parece-me à vontade com Dama Heigger. — Lilith fitou-me, parecia insinuar algo. Ahzaez olhou para Lilith.
— Não é ofício de Dama Heigger o aconselhamento psíquico de Morgion?
— De Morgion sim, Ahzaez, não de ti.
— A menos que Morgion viva sozinho, Lilith, receio que seja ofício de Saeeri investigar toda a família que o circunda. — Havia furor no olhar de Ahzaez e o mesmo no de Lilith. Eles se encaravam.
— A senhorita Heigger realizará o atendimento de todos nós, assim acordamos. — Ehllenor interrompeu-os, pois que a singela conversa se agravava, suficientemente significativa para que eu pudesse entender a dinâmica da família — ou começar a entendê-la. A voz de Ehllenor quebrantou a faísca do ódio, pois os irmãos deixaram de se olhar. Lilith concentrara-se em seu chá e, Ahzaez, em mim.
— Phamen, a principal ama responsável por Morgion, tem sofrido com algia profunda nas têmporas, sintomático de desordem, pois sua fisiologia não apresenta alterações incomuns. — Disse Ahzaez.
— Ora, Phamen! — Exclamou Lilith, em tom menoscabo. — Uma mulher Ventral consumida por infertilidade e que agora sofre por não poder ter mais uma criatura Ventral para morrer cedo. Isso a perturba, por isso sente dores psíquicas. — Lilith foi fulminada pelas íris de Ahzaez.
— Não diga isso, mamãe; Phamen é docílima e somente cabe a ela revelar suas angústias à doutora, quando for o momento adequado. — Ehllenor parecia sentida pelas palavras de sua mãe.
— Estou apenas sendo objetiva; a doutora não deveria perder seu tempo com os Ventrais da casa; eles escolheram a vida que possuem. Que arquem com as consequências! — A frieza, um profundo descaso, advinha da alma daquela mulher; não ousei revelar ser, pois, uma Ventral e, embora fosse profissional o suficiente para separar as coisas, doeu-me ouvi-la dizer o que dissera, pois sei das razões de meus pais e sei que nasci como sou porque foi preciso.
— Mamãe, por favor...
— Reserva tua energia, Ehllenor; Lilith não tem sensibilidade para lidar com a multiformidade da vida.
— E tens tu? Vives sob meu teto, Ahzaez; usufruis de minha fortuna para se ceifar ao bel prazer do láudano. Sejamos sinceros... — O silêncio e os olhares entre irmãos cultivavam uma cólera inominável. — Se não fosse o método indheren, tu estarias morto.
— Ahzaez é a razão pela qual não sucumbi à loucura nesse lugar... — Ehllenor se direcionava à Lilith e, logo em seguida, olhou para mim. — É um homem bom e protetor, tem cuidado de Morgion como um pai. Ele está atento às portas, aos sons, a nós.
— Se há desagrado em ti, por que continuar aqui? Fomentas a dor porque queres, tal como um Ventral o faz. — Lilith desdenhara. Sua filha respirou fundo.
— Tens razão, mamãe; talvez eu devesse ir.
— E vai. — Afirmara Ahzaez. — Assim que o tratamento com a doutora se findar, Ehllenor e Morgion irão para Sihren, já acordei com Soron. — Revelara. Um brilho nos olhos de Ehllenor emergiu, porém, uma preocupação em seu semblante era inequívoca. Lilith, por sua vez, parecia incólume. O silêncio que pairou a posteriori, teve de ser destruído por mim, pois, notei que a dor e a mágoa eram fortes razões para que algo prejudicasse minha estadia e, àquele ponto, comecei a temer pelo menino.
— É importante que minha estadia seja proveitosa a todos que aqui residem, inclusive os funcionários e em especial os membros da família Sttrattan. — Respirei fundo. — E, bem, o café estava de uma amargura aprazível, agradeço senhora Lilith. Agora já estou à disposição para atender o pequeno Morgion. — Olhei para o petiz. — Sei que tens muito a me contar, certo? — Disse de maneira lúdica, tentando agradá-lo. Ele movimentou sua cabeça, confirmando minha questão.
— Vamos, então, estamos prontos. Por aqui, doutora Heigger. — Dissera Ehllenor. Levantei-me, pedimos licença, saímos. Lilith e Ahzaez permaneceram à mesa. Perguntei-me o que conversariam a sós, mas suspeitei que prefeririam o angustiante silêncio.

Doutora Saeeri Heigger é convocada para investigar os sonhos aterradores de uma criança de nove anos. Entretanto, o menino pertence à família Sttrattan e reside na Mansão Negra. Convencida de que se trata de apenas mais um caso clínico, Saeeri aceita a proposta, mas, parece que o que dizem sobre os Sttrattan é pior do que ela imaginava e os horrores oníricos vão além da mente de seu pequeno paciente. » Leia todos os capítulos.

Sahra Melihssa
Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. No túmulo da sua literatura gótica, a autora entrelaça o terror, horror e mistério com a beleza mélea, o fantástico e o botânico, como em uma valsa mórbida… » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
Nesta edição, tenho o prazer de apresentar uma seleção de quatro poemas de Wallace Azambuja, um poeta cuja versatilidade transcende…