Capítulo 2: Inquietação Profunda — A Mansão Negra
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Alguns dias e noites bastante invernais se seguiram até que fui levada à Mansão Negra e, às vinte horas, eu a vi. Imponente e obscura entre o denso arvoredo: a Mansão Negra. Passei o dia descansando em um chalé próximo e havia me impressionado com a imensidão verdinegra, dali já avistada, da floresta abissal; era de uma altura tenebrosa, ponderei como seria adentrar sua densidade e tive de fazê-lo logo depois, mesmo por um tanto simbólico, pois a mansão não ficava tão profunda no balcedo.
O cocheiro, criatura contadora de histórias, passara o dia revelando lendas locais, pois estava ocioso, porém, no caminho, ele incorporou um silêncio bizarro que eu não ousei questionar, pois que, de algum modo, eu compreendia a razão. A noite era lúgubre e insalubre; o poder da floresta Alpha Morttam — e agora não poderia chamá-la tão somente de Amorttam, pois era amedrontadora demais para ter seu nome amenizado, pois seu poder me submetia a um tremor contínuo — era coercitivo, olhá-la era amedrontador; decerto aquelas árvores alcançavam de 100 a 200 metros de altura tal como ouvi dizer por aqueles que outrora visitaram o local, tal como eu fazia naquele momento. E os sonidos, cânticos de criaturas jamais vistas, ecoavam vindos do arvoredo alto e sombrio. Tamanha era a flora perene que o ar úmido carregado sufocava em certo grau, era imponente, angustiava os pulmões. Era medonho e fascinante.
Compreendi, naquele átimo, a razão pela qual havia tantas lendas sobre aquela selva; assim como assimilei, perfeitamente, o motivo de Vonssihren proibir que pessoas explorem o local; deduzo que sua inimizade com Krvier tenha emergido daí, nos tempos ancestrais, quando a mansão fora erguida sem a concordância de Soron, adentro de Amorttam, sendo preciso derrubar algumas árvores. Soron Vonssihren sempre fora um profundo defensor da natureza e sua aguçada intuição o mantivera firme a respeito de qualquer sondagem, mínima que fosse, em quaisquer partes de Morttam. No entanto, o início dessa imponente floresta estava à minha frente; era como alcançar os pés de um titã. Era tão alta que, mesmo exausta de toda a longa viagem ininterrupta, despertei diante dela, com os olhos abertos ao máximo, para enxergar a sua silhueta negra com precisão.
Era noite, cabalística noite, e deixei o cocheiro, despedindo-me em silêncio; ele decerto estava amedrontado e eu ainda mais. A aura sombria acelerava o coração e caminhei, aflita e encantada, pela singela estrada que levava à Mansão. A cada passo, ouvia sons indescritíveis... pássaros, eu suponho... corujas? Lobos, talvez, ou uma das míticas criaturas dos contos de fadas. Grilos, cigarras, insetos e o vento que tornava aquela folhagem em uma colossal monstruosidade viva. E como era escuro! Minha candeia era um vagalume naquele labirinto índigo-anoitecido.
Se não bastasse a monumental natureza umbrífera, após uma caminhada de dez minutos, vi com uma perfeição fúnebre aquela arquitetura pontiaguda e negra, cintilante em seu negrume, pois tivera diversas partes esculpidas em obsidiana e, portanto, reluzia em um esplendor mórbido. O lugar era mesmo tenebroso; o que o amenizava eram as velas nas fenestras, pelo lado de dentro, gerando luz; embora no bruxulear das velas, tudo ao redor se tornasse sombras anormais, distorcidas, apressivas em um mistério aterrador. Nunca vi arquitetura como aquela; dizem que assim o é no império Krvieröm, mas, sinceramente, não tenho coragem alguma para deixar as terras de Sihren e enfrentar o gelo do Anti-Ártico, ainda mais após sentir a energia que emana daquela arquitetura.
Aprendi que o ceticismo pode ser um grande problema quando se pretende ir mais à fundo na existencialidade humana, então, nunca desconsiderei o que senti; diante da Mansão Negra, eu tive medo... e a atmosfera sepulcral do lugar era sinistra em um nível perturbador e, ao mesmo tempo, sutil. Havia também um odor... e compreendo que não seja possível acreditar... mas, vez ou outra, vinha-me o cheiro de sangue às narinas e, não, não era o meu sangue vertendo por razões fisiológicas; foi a primeira coisa que verifiquei quando o odor macabro se difundiu no primeiro momento.
Bati com a aldrava após retomar meu fôlego. A porta abriu-se após poucos segundos, era ornamental, ostensiva; e além de complexos ornatos volutais em obsidiana, havia arabescos em ouro puro. Assim, um homem apareceu à minha frente enquanto o silêncio mórbido dos umbrais abrindo-se afligiam-me. Ele me olhou... intensamente... como a noite faria com a manhã, se a pudesse olhar... isso me estremeceu. Apresentei-me após ajustar a voz para não evidenciar meu tênue descontrole com todo aquele lugar. O homem tinha a beleza de um anjo caído, vestia-se como um Dom, todo em tons de preto, tinha olhos claros, azuis-cinéreos, suas roupas possuíam uma elegância surreal, a qual só vi no castelo de Vonssihren — o que reafirmava a ligação dos Sttrattan com os Soberanos. Ele era alto, forte como se podia notar. Olhou-me nos olhos, íntimo por um breve instante, em silêncio. Senti-me n’um ardor sombrio e por ele fui convidada a entrar a partir de um singelo sinal e uma reverência... ele não me tocou... e eu nunca esquecerei de seu olhar... o semblante do homem deixara-me realmente ébria, de modo diferente, mas tanto quanto aquela arquitetura e aquela mata espessa.
Não ouvi a ornamental porta se fechar, mas senti cessar a brisa gélida do arvoredo. Por dentro, a Mansão era ainda mais escura, luzidia pelos motivos já citados, e lauta. Um imenso lustre feérico de ouro, com velas negras, iluminava o salão de entrada, o qual era vazio de mobília, possuindo apenas uma belíssima alfombra jaqguar em preto e dourado e uma mesa de centro, em atro cedro — servindo para o apoio de dois cântaros de ouro e uma estátua de uma criatura horrenda, que eu diria ser uma gárgula, contudo, dentro de um cômodo? Não fazia sentido. Vi alguns pilares de sustentação da arquitetura; meia dúzia de portas ao derredor, duas grandiosas escadas para o andar superior. E mais portas.
— É um prazer conhecê-la, Dama Heigger. — Proferiu o homem, sua voz assemelhava-se ao vaporoso ar soturno daquela mansão e seu olhar me invadira mais ainda. Ele caminhava, eu o seguia. Antes que eu o questionasse sobre seu nome, fomos interrompidos pelo mordomo Ertthan que logo recolheu minhas malas, levando-as pela escada imponente. — Sou Ahzaez Sttrattan — Disse, próximo. Ahzaez era-me familiar. Seu rosto era esguio, contudo, seu porte era robusto; suas olheiras eram fundas, embora amainassem no tom de sua pele, como se realçassem sua beleza demoníaca. O que me incomodava era o olhar, a expressão de seu semblante, a qual já mencionei. — Ehllenor virá em breve. — Anunciou assim que adentramos aos umbrais de um dos aposentos. Vi uma lareira acesa, crepitava contra o silêncio; era uma sala confortável, diferente dos poucos outros lugares que andejei por ali. — Fique à vontade. — Ahzaez fechara a porta após se despedir; sorrira pela educação, no entanto, não pude fazer o mesmo, pois, o seu sorriso era ainda mais lutuoso do que sua face soturna; isso trouxera-me uma imediata turvação.
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Sozinha, observei o cômodo, mas sem objetivos; apenas olhei. De toda a mobília de igual luxo como o restante da Mansão, e entre todo o mobiliário escuro como a noite, um item em especial reluzira aos meus olhos e, dele, me aproximei. Era pequeno o suficiente para que eu pudesse segurá-lo, porém, grande o suficiente para que eu hesitasse em mantê-lo erguido com apenas uma de minhas mãos — embora fosse possível. Diferente do que vi, este objeto não era de ouro ou obsidiana; era de Sirenniha e pesava, o que me levou a crer que era pura. Tinha a forma de uma libélula, parecia haver algo em suas asas, lapidados como letras ancestrais de alguma linguagem antiga; Soron Vonssihren sempre apreciou o estudo da linguagem e escrita; porventura — deduzi — fosse um objeto dado por ele.
— Li’ibelum... — Ouvi e, de súbito, quebrando o silêncio, assombrei-me olhando rapidamente em direção à voz feminina. Vi, com o coração frenético, uma mulher cuja aparência indicava que ela possuía uma idade semelhante à minha. Usava um belo vestido vitoriano, tal como o meu, no entanto, o seu era de um preto brilhante e tinha, sobre ele, um chambre de renda negrume e aveludada. Seus cabelos ondulados estavam soltos, mas algumas mechas curvas se prendiam para trás das orelhas. Seus olhos eram azuis-cinéreos e, nas trevas daquela sala, ficavam ainda mais claros. Seu rosto era gentil e expressava-se em uma fisionomia de apreensão. — Dada por Vonssihren. — Dissera. — Perdoa-me por assustá-la. Sou-me Ehllenor. — Ela estendeu-me sua mão para um cumprimento formal.
— As portas são bem silenciosas aqui. — Expressei, colocando a libélula de volta em seu devido recôndito. Ehllenor sorriu, no entanto, não parecia feliz.
— Sim... todas elas... é algo feito por... tu sabes quem. E se há alguém que sabe o motivo, este é, decerto, apenas ele. — Lamuriou, sentando-se em uma das poltronas próximas da lareira.
— O que é Li’ibelum? — Inquiri por uma curiosidade imaculada. A Dama pediu-me para levar o artefato até ela e, assim que lhe dei o objeto, sentei-me na poltrona ao lado.
— Soron é um verdadeiro Soberano, não é? — Dissera enquanto afagava o artefato, olhando-o atenta. — Revelei-o sobre os pesadelos de Morgion e, então, ele me enviou este artigo único, todo lapidado em Sirenniha. — Ehllenor colocou a libélula na mesa de canto que separava nossas poltronas. — Ele disse que ela acalmaria o sono do pequeno, no entanto, agora que tu estás aqui, creio que seja importante que vejas o que acontece com ele e saibas da seus pesadelos cruéis.
— Li’ibelum fora útil? — Questionei em busca de compreensão acerca de suas crenças. Ehllenor sorriu em uma tristeza fidagal. — Chegara hoje no entardecer... — Silenciamos. — Estás exausta, acredito, preferirás conhecer Morgion amanhã... — Afirmara. Entendi o seu desejo e a respondi como devia, mesmo estando, de fato, exausta.
— Estou pronta para conhecê-lo, senhorita Ehllenor. — Ela suspirou e tal suspiro fora, ao que me parecia, o máximo de gáudio que ela poderia sentir.
Fui levada por Ehllenor até o quarto do jovem Morgion, uma criança cuja face não deveria nutrir tamanha angústia; seus olhos eram como covas, sua tristura era uma morbidez vívida, como se houvesse a presença fúnebre do horror sobre seus ombros infantis. Ainda assim, abraçara-me com afável cortesia proferindo que eu o salvaria “dele”. Embora fosse já tarde da noite, notei que Ehllenor e Morgion estavam despertos e esperançosos; guardavam, dentro de seus peitos amedrontados, toda uma narrativa que se retinha principalmente em suas gargantas. Eu não poderia adormecer tranquila sabendo que, por mais uma lôbrega noite, eles teriam que guardar essa dor encarcerada nas entranhas. Então eu o questionei.
— Ele quem? — A fatídica pergunta. Buscarei transcrever a exata descrição da criança, com todo o lúdico pertencente à sua essência infantil e, em razão disto, o trecho de sua narrativa estará em itálico, para se destacar daquilo que redijo, intercalando com a minha análise entre os íntegros trechos.
Morgion descrevera uma criatura humanoide, com duas bocas e dentes afiados; de corpo retorcido e forte, “sua pele era como tendões com lacunas entre eles”; não tinha olhos e suas mãos eram coladas em seu corpo, retorciam-se junto; “correntes saíam de dentro de sua carne” fazendo um tinido espectral, “disforme e medonho”. Aparecera no sonho em que Morgion caminhava por Vonssihren, onde gostava de ir ao visitar a capital; o parque do lago onde um cisne o levava a passear. Então, “eu o avistei próximo das palmeiras que estavam maiores e, visivelmente, mortas... uma névoa cobria tudo... e ele se contorcia em minha direção... murmurava meu nome e eu sentia dor de medo”. A dor, ele contara, era real e intensa, o que tornara tudo mais horrível; em certo momento, um sonido execrável espargiu das bocas da criatura que, pouco a pouco, se aproximava do cisne qual Morgion estava; o animal não respondeu bem à aproximação e começou a se agitar, batendo suas asas nas águas “que se tornaram sangue negro”.
Explorando com indagações cuidadosas, descobri que Morgion não era uma criança cujos pais liam histórias de terror — embora a Mansão Negra soasse-me como um horror por si só; tampouco ouvira algo, nos últimos tempos, a respeito de criaturas grotescas. Preocupei-me mais com o lago de sangue negro, ainda que a criatura fosse descrita como “perturbadora e ameaçadora, sendo que a cada vez que se aproximava de mim, meu coração acelerava e eu sentia que poderia morrer”. N'um dos sonhos anteriores, o primeiro qual resultou na carta de Ehllenor, o menino fora acometido por uma paralisia de agoníria, isto é, sonhou que havia acordado, levantou-se de sua cama e caminhou à antessala até ser surpreendido pelo mesmo ser feito de tensões e pele putrefata, no final do saguão, movimentando-se lentamente, contorcendo-se e grunhindo enquanto se aproximava do petiz que estremecia de medo — uma vez que a criatura era muito alta, fétida e carregava essas correntes que ecoavam um sonido metálico fantasmagórico. O menino despertou ensanguentado, tivera seus dois pulsos mordidos pela criatura, embora, na realidade, estivesse preso a espinhos n’um arbusto do jardim. Nunca ouvi um relato de sonho tão lúcido e esmiuçado. Morgion ficou preso, não conseguia se mover conforme a entidade o devorava. Ele viu de perto “o sangue e minha pele dilacerando nas presas da coisa inumana”. Então, desperto aos gritos de sua mãe, o menino saiu do transe no exato instante em que a coisa devorou as mãos do garoto. “Eu... senti a dor, senhorita” — murmurara com pesar.
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Deixamo-lo no quarto logo após alguns diálogos, senti que a atmosfera densificada em razão das descrições tão vívidas e, para não incentivar ainda mais a sua mente infantil, pedi para que descansasse. Ehllenor ordenou que uma de suas amas acompanhasse o garoto por um tempo, para que ela pudesse me levar até meus aposentos. Enquanto caminhávamos, notei diversos quadros nas paredes do passadiço principal, o mesmo qual Morgion vira a criatura pela primeira vez. Era uma passagem mais estreita do que costumam ser e as dezenas de molduras possuíam pinturas do que deduzi serem a linhagem Sttrattam. Indaguei Ehllenor sobre a imagem que possuía uma mulher, símil a ela, porém muito mais jovem. A resposta fora previsível. Tratava-se de Lilith Sttrattan em seus dezoito anos de idade. Minha questão adviera por um motivo. A partir de Lilith, todas as gerações seguintes eram retratas usando roupas negras, tal como Ehllenor, Morgion e Ahzaez usavam. Esclarecera-me Ehllenor que todos os retratos estavam em ordem geracional. Uma coisa peculiar que também pude notar: algumas pessoas tinham olhos estranhos, com olhar vago, e rostos cheios, como se inchados.
— Noto a mudança da cor... dos tecidos... — Proferi com a intenção de sondar um pouco mais a história da família. Ehllenor ficara em silêncio.
Chegamos ao quarto, fui orientada sobre os horários e instruída a acordar para o desjejum pontualmente, para que eu pudesse conhecer Dama Lilith cuja rotina era bastante severa. Compreendi todas as circunstâncias e adentrei ao meu cômodo, vedando-me para o lado de dentro. O silêncio absurdo da porta era agoniante. No entanto, o quarto possuía sua dose de conforto, ainda que escuro e negro; tudo era envolto por uma riqueza única. Havia alguns retratos sobre a cômoda onde resguardei meus pertences, observei alguns dos rostos. Vi um vaso com uma espécie de planta cujas folhas eram no mesmo tom de tudo o que ali residia. À janela, a expansão terrífica de Amorttam e a lua minguante que logo daria lugar à escuridão perpétua do universo. Despi-me e escolhi um damanoute branco, confesso que com o propósito, ao menos para efeito emocional e mental, de não me sentir pertencente àquele lugar. Assim, adormeci, entre o veludo negro e com a exaustão que, naquele instante, era ainda mais violenta.

Doutora Saeeri Heigger é convocada para investigar os sonhos aterradores de uma criança de nove anos. Entretanto, o menino pertence à família Sttrattan e reside na Mansão Negra. Convencida de que se trata de apenas mais um caso clínico, Saeeri aceita a proposta, mas, parece que o que dizem sobre os Sttrattan é pior do que ela imaginava e os horrores oníricos vão além da mente de seu pequeno paciente. » Leia todos os capítulos.

Sahra Melihssa
Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. No túmulo da sua literatura gótica, a autora entrelaça o terror, horror e mistério com a beleza mélea, o fantástico e o botânico, como em uma valsa mórbida… » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
A cristalina água corrente abluíra as provas de que aquilo não se tratou, tão somente, de uma…