Sob a Luz da Chama Purpúrea
Diário de Nauärah, não datado
Nenhuma voz, nenhum som garganta afora. Percebo apenas um lumiar em tom violáceo no salão onde eu me encontro e essa tonalidade transmite-me algo importante que eu tinha aprendido em minha aldeia: a cromoterapia, o poder das cores. Ver a cor violeta é sempre uma dádiva. Além do mais, lembro da violeta, a flor que tantas mulheres da nossa aldeia admiram.
Começo a pensar se foi boa a ideia de me aproximar deste castelo. Em meio a pensamentos distraídos e neste grande salão frio, noto, ao longe, uma silhueta. Cabelos negros e presos, com mechas soltas. Vestes levemente vitorianas com traços góticos. Bem… é uma dama, certamente, mas a sua energia etérea — que posso sentir daqui da outra extremidade, me faz engolir medrosamente menos de um mililitro de saliva, principalmente, quando percebo que ela não se move e parece tomar notas em uma espécie de papiro.
Antes mesmo que ela pusesse seus supostos serviçais para me colocarem para correr, penso em me apresentar, humildemente, porque está clarividente que ela reside por aqui ou é a esposa do Drácula. Ou, até mesmo, é o próprio Drácula em uma figura feminina.
Entre a iluminação violácea, não percebo que a criatura de pele translúcida já está perto de mim. Tão entretida com a beleza deste local, não a notei em seus movimentos. Mas a olho, fixa e medrosamente. A sua pele translúcida, quase, me amedronta. Se ela se atrever a me tratar de maneira rude, os meus arcos já estão na posição correta e as minhas flechas se armariam em segundos. Mas são apenas pensamentos de medo pelo que passei com alguns homens de pele caucasiana. Com essa criatura não consigo ser tão ruim. É como se eu buscasse nela força e cumplicidade para apaziguar os meus traumas.
Eu estou acostumada com animais da mata, a lutar, como uma boa arqueira. Para mim, é natural. Mas aqui eu teria que abaixar a minha guarda de indígena rude, pelo menos, enquanto necessito. Aqui há humanos, mais do que isso — seres híbridos, quase, até vampiros, eu tenho certeza. Mas se eu não pareço tão rude quanto demonstro, possivelmente ninguém também será, dos que residem por aqui. Certamente, se eu impuser limites aos hóspedes seria apenas uma maneira de preservar a minha segurança.
Com certeza, as minhas armas a assustaram. Paro de pensar demais e tento abaixar os arcos e flechas, abaixando, também, a minha cabeça e fazendo um gesto que aprendi com o meu pai, que aprendeu com o meu avô pajé: fechar o punho e o colocar sobre a testa, em sinal de rendição. O faço.
— Sou da família “Tupiniquim” — profiro, quase me sentindo uma tola. Mas a minha força interior me ergue e continuo. — Uma aldeia antiga da região do pantanal do Amazonas, no Brasil. Sou filha de Uyara e Nanquim. E o meu nome é Nauärah.
Eu não faço ideia se ela compreende um terço sobre o que eu digo. Confesso que nossos nomes são específicos e quase incompreensíveis.
— Tenho muito conhecimento em caça, pesca, armas de arco, flecha e construções de madeira maciça. Conheço sobre as matas, ervas medicinais… Meus avós são curandeiros. Derroto qualquer animal, se necessário. Posso ser útil e a minha intenção aqui é a mais serena, senhora. Eu vim apenas colaborar, estudar. Por onde passo, eu sou assim. Foi o que minha aldeia me ensinou. — Solto o ar de cansaço. Aquele ar gélido estava adentrando a minha boca e nariz. Acostumada com o clima quente, já posso saber que eu teria que me acostumar por aqui ou mudar totalmente as minhas vestes. Uma capa longa na cor de terra não iria me proteger. — Se eu puder ficar, posso mostrar o dom da força que carrego dentro de mim, caso o Castelo precise e vocês serão ainda mais fortes.
Ouso e a olho, aguardando, temerosa, a sua aprovação, enquanto as luzes violetas parecem se direcionarem ao meu rosto, como se fossem as luzes, servas desta mulher.
Quase tremo, mas profiro em tom profícuo, para que ela me ouça, ainda que ela não entenda a minha linguagem — qual idioma ela fala? Qual? Pergunto-me, inutilmente. O meu nervosismo é visível e os meus apetrechos parecem tremer com algum movimento que faço. Mas sorrio leve para ela, pois fui sincera e genuína.
Trecho do Memórum de Olga Nivïtzz, página 299, ano desconhecido
— Frígidas são as alcovas e cômodos d’este sombrio lugar, caríssima senhorita. — Proferi em plácida voz, pois, o medo que emanava de sua energia evidenciava seu desconhecimento sobre o Oculto, ao menos, no que se refere à Magia de Sangue e, portanto, não pretendia alimentar seu temor. Reconheci-a como uma conviva, ela decerto ouvira o chamado do Portal e viera, portanto, é inestimável o seu bem-estar durante a estadia.
O eterno inverno úmido que reside no Castelo poderia matá-la, suas vestimentas eram propícias apenas para localizações tropicais. “De qual século tal peculiar dama deve advir?” pensei. Não reconheci sua nacionalidade proferida, ainda não sou capaz de dominar o universo em sua multiforme veracidade.
— Permita-me vestir-te com esta peça — indaguei-a, seu semblante expressava suspeita, retirei com delicadeza meu sobretudo e a sorri para pacificá-la o quanto me fosse possível. — Basta que retires as tuas armas de teu dorso. Estás segura comigo. — Afirmei.
Nauärah… interessante. Seu nome possui uma sonoridade bastante sui generis, no entanto, há resquícios reais da influência, ao que me soa, da língua da Magia; alehanuhra eriihs, eu diria. O idioma Mágico emergiu no vínculo entre todas as mais valiosas línguas da existência humana.
Ao oferecer-lhe minhas vestes, senti o frio ultrapassar o tecido de meu vestido; há éons que não me arrepio de tal forma com essa aragem de íntima gelidez. De fato, minha intuição consegue se estimular facilmente, a mera tez absorve inúmeros sinais. Desde que abri o Portal para trazer novos residentes a esse valioso receptáculo, meus pressentimentos estão assim, à flor da pele.
Diário de Nauärah, não datado
Zelo, presteza, excelência. Essas três palavras definem tal criatura feminil. Ainda me sinto confusa sobre seu nome e quem é, de fato. Por outro lado, sinto-me segura, realmente, como ela assegurou-me.
Ela veste-me com uma roupa ainda mais felpuda e calorosa do que o meu sobretudo. O roupão protetor é violáceo, quase negro. Eu não mudarei a minha essência e a qualquer momento que eu retirar esta capa, a minha identidade se revelará. Por outro lado, bom utilizar outras vestes que não deixem absolutamente nenhuma extensão da minha pele se revelar.
Apenas a olho, como quem acredita que ela não me importunaria. Não consigo proferir uma palavra. Ninguém me toca, ninguém nunca me tocou, exceto quando no terrível acontecimento. Não permito que ninguém se aproxime, mas, por um acaso, ela é uma dama. E não a proíbo que o faça.
— A vossa pessoa faz-me lembrar dos meus líderes. Minhas felicitações por isso. Não confio em ninguém, senhorita, entretanto, quiçá, haja uma primeira vez para que isso aconteça. — Sorrio, apenas com os meus lábios, mas consigo sorrir.
Olho os meus apetrechos pelo chão púrpuro, ainda assim, suave. Ninguém ousaria mexê-los. Talvez a minha sutil aspereza seja apenas uma capa, assim como esta. Esta capa tem uma energia intensa, mas propícia. Aprendi a silenciar e identificar as energias advindas de lugares inimagináveis. E isto aqui é poderoso, constato.
Trecho do Memórum de Olga Nivïtzz, página 299, ano desconhecido
— Sinto-me honrada em evocar tais valiosas memórias em ti — respondi afastando-me ligeiramente. — Fique à vontade n’este Castelo, há outros residentes que poderás conhecer. Eu sou Olga, meus cumprimentos. — Curvei-me de modo suave. Faz tanto tempo que estou imersa n’esta atemporalidade… já não sei se possuo a educação de minha infância, aquela que eu tinha quando eu era ainda uma humana a viver como qualquer outra; já não sei se estou em demasia ultrapassada, dado que hoje — seja o que for que o “hoje” signifique — há mais futuro do que passado.
— Não necessitarás de armas por aqui, não há inimigos que sofrerão com elas ou que sangrarão com o fincar das afiadas lanças. O mal que faz lar n’esta lacuna em que estamos, entre o tempo e o espaço, apenas jaz por meio de nossa única e verdadeira arma… a mente… — Aproximei-me da lareira, o lume que permeava a sala estava em um tom violeta muito mais profundo, sentia energizar meu ser. Nauärah em silêncio, é uma inteligente mulher — sei disso, pois noto pelas suas falas e referências. Sua mudez expressa muito da sua introspecção preciosa, a qual sempre darei grande valor. Sinto que há uma ligação dela com outros residentes, não compreendo se esta intuição advém do plano corpóreo, pois, ela emana uma espiritualidade incomum.
— Se me permites, preciso descansar um pouco, mas sempre que precisares de mim, vá ao último cômodo do corredor maior ao norte do Castelo, este é meu aposento; seus umbrais possuem um tom avermelhado e ornamentos específicos, como sigilos de uma antiga doutrina. Tu o reconhecerás, sem dúvida. — Despedi-me, ela gesticulou uma saudação. Seu olhar era de compreensão enquanto minha exaustão parecia ainda maior do que antes. Afastei-me devagar à saída que levava ao caminho de meu quarto, tudo estava frígido como se eu estivesse lá fora, na neve. Pouco antes de chegar aqui, assim, tão perto de abrir a porta e começar a escrever, senti uma mórbida e silente solidão que apertou meu peito em amargura — e que está ainda, insistente, perdurante enquanto observo a noite pelos vitrais e continuo recordando de todos aqueles que já deveriam ter se tornado reminiscências exíguas.
Diário de Nauärah, não datado
Vejo Olga sumir em um dos corredores. Decerto, ela pensaria que sou observadora demais por segui-la com o olhar até ver sumir a sua silhueta.
Por eu estar sozinha agora e não ter visto nenhum outro hóspede, eu sigo para um dos quartos e enquanto adentro-o, percebo tons violetas nas paredes do imponente castelo. Me vejo envolta por uma atmosfera de mistério e encanto. Retiro a capa colocada em mim por Olga e a guardo cuidadosamente. O meu corpo adornado por peças ancestrais se casa com os reflexos púrpuros das paredes com tapeçarias tecidas em tons violáceos. Isso cria um ambiente acolhedor e ao mesmo tempo enigmático.
Caminho silenciosamente em direção à janela alta, observando flores roxas no jardim. A lua, quase no mesmo tom, as lumia e as cortinas suaves parecem dançar a dança da noite sombria.
Uma luz violeta suave é lançada sobre os móveis de madeira escura que há neste quarto onde estou. Há também uma lareira, uma cadeira estofada e um umbrífero, mas caloroso dossel, que me convidava a descansar, enquanto ao redor, estão os meus artefatos indígenas cuidadosamente dispostos ao chão, sobre o tapete roxo. É coisa de Olga, penso... ela parece caprichosa no que diz respeito a ambientes.
Olho-me no espelho e penso em uma maneira de comunicar à minha aldeia a minha chegada. As minhas vestes trazem à tona lembranças da minha terra natal.
Viro-me e a cama majestosa, adornada com lençóis de seda violeta, parece convidar-me a mergulhar em sonhos profundos e reconfortantes. Por um momento, eu fecho os meus olhos, sentindo-me em casa mesmo em meio à grandiosidade e o desconhecido, ainda, deste castelo. Sei que aqui estou segura, não importa o hóspede que venha a chegar.
Confiro a tranca da porta — ainda temerosa, e suspiro aliviada. Ninguém me faria mal aqui. E se fizesse, certamente eu saberia a quem recorrer.
Exploro o banheiro e o som da minha respiração ecoa aqui. Respiro fundo e sorrio pela segunda vez neste lugar. A banheira em mármore lilás me encanta. E todo o ambiente está bem organizado e disposto.
Já refrescada e pronta para o sono, deito-me e me aqueço demasiadamente. E sei que o meu sono me levaria a lugares inimagináveis antes mesmo do amanhecer.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…