Criaturas da Noite

MidjourneyAI

Em um mundo repleto de diferenças e subjetividades, nem todas as preferências são iguais. Para alguns, o despontar de um novo dia, com a estonteante beleza da aurora trazendo luz e cores, representa um leque de possibilidades e um novo amanhecer promissor. Contudo, para outras criaturas, a chegada da luz de um novo dia pode significar dor, sofrimento ou até mesmo o fim — mesmo para aqueles já mortos.

Ewerton, antes mesmo do alvoroço dos galináceos iniciar nos distantes quintais ao longo da estrada, já estava de pé, preparando seu café em uma improvisada fogueira sob um frondoso e florido Flamboyant. Enquanto a água aquecia lentamente — após ter feito sua higiene pessoal matinal —, ele observava ao longe o despertar de um novo dia. A beleza das cores do amanhecer era hipnotizante, com nuances de amarelo e vermelho se alternando em um espetáculo mágico, capaz de fazer qualquer um se perder em seus próprios pensamentos, esquecendo-se completamente do mundo ao redor. Foi assim, perdido em devaneios, que ele não percebeu a aproximação de uma bela jovem vestida de negro, como uma dama da noite, que se aproximava sorrateiramente até o outeiro onde ele se encontrava.

A jovem, caminhando trôpega, tentava se manter de pé, aparentando estar embriagada — o que poderia ser considerado normal, dadas as vestes festivas que usava e o forte perfume que exalava. No entanto, Ewerton logo percebeu que não se tratava de mera embriaguez. A jovem estava gravemente ferida, com um dardo — possivelmente lançado acidentalmente por algum caçador — cravado no lado direito de seu ventre, de onde escorria um líquido viscoso e enegrecido com um odor acre, que sob a luz do dia, seria facilmente identificado como sangue. No entanto, no crepúsculo do amanhecer, era difícil discernir sua natureza. De imediato, soube-se apenas que era um ferimento grave e que ela necessitava de ajuda.

Educado a sempre ajudar os mais fracos e a proteger os indefesos, Ewerton prontamente se lançou ao socorro da jovem, que mal conseguia se manter de pé. Ao abraçá-la, sentiu um estranho arrepio, pois ela estava tão fria quanto uma manhã chuvosa de novembro. Suas faces pálidas e cadavéricas não mostravam o rubor da vida, um sinal claro do ferimento e da contínua perda de sangue, pensou ele. Com cuidado, a deitou em seu próprio leito — uma cama improvisada com os apetrechos de sua montaria —, onde ele próprio havia passado a noite sob as estrelas. Ao examinar mais de perto, percebeu que o ferimento era mais grave do que parecia e que, sem ajuda, ela não sobreviveria por muito tempo.

Antes de retirar o dardo, decidiu que deveria cauterizar a ferida para tentar estancar o sangramento. Após aquecer a lâmina de sua faca no fogo, com cuidado e firmeza, removeu o dardo do ferimento com um único movimento. A retirada da seta fez com que o líquido enegrecido escorresse ainda mais. Enquanto preparava a faca para a cauterização, ele analisou o estranho dardo, artesanalmente talhado, com uma ponta de prata e uma pequena incrustação de uma cruz de malta ao longo de sua haste. Após esse breve inventário, cauterizou a ferida com a faca aquecida. A jovem, saindo de seu estado letárgico, emitiu um urro lancinante e, com uma força descomunal, lançou-se sobre ele, derrubando-o ao chão.

Sem esperar por uma reação daquele tipo, ele que estava desprevenido, caiu de costas e logo percebeu que ela estava sobre ele com suas finas e delicadas mãos — que naquele momento não tão delicadas — agarradas ao seu pescoço num movimento de estrangulamento. Contudo, antes que qualquer outra coisa pudesse ter acontecido, a jovem levantou sua face em sentido ao horizonte e os traços de uma séria preocupação alterou suas feições. Antes que Ewerton pudesse esboçar qualquer reação ou dizer uma única palavra sequer, sentiu uma forte pancada na fronte e suas vistas se escureceram por completo fazendo com que ele perdesse tanto o sentido do tempo, bem como de tudo ao seu redor por alguns momentos, só voltando a si quando recebera em sua face um jorro de água fria que um estranho cavaleiro lhe aplicara.

Tonto e meio atordoado com tudo o que havia ocorrido, ele logo quis saber o que se passava naquela atípica manhã. Primeiro, uma jovem ferida em busca de ajuda; em seguida, a pancada que recebera, levando-o a um nocaute; e agora, quatro estranhos cavaleiros vestidos de forma bastante peculiar se apresentavam. Vestidos de preto da cabeça aos pés, ostentavam um estranho símbolo de uma cruz de malta no peito — a mesma marca presente no dardo — e, além de tudo, comportavam-se de maneira ainda mais estranha. Assim que foi despertado pela água fria, de maneira bastante hostil, um dos cavaleiros, segurando seu queixo com a mão protegida por uma manopla de aço — com a força de uma tenaz — inspecionou seu pescoço de todos os lados em busca de algum ferimento. Como nenhum arranhão foi encontrado, esse mesmo cavaleiro, com um olhar penetrante e traços sombrios, quase sussurrando, mas com uma entonação de liderança, disse aos seus companheiros:

– Por sorte ou pela proteção divina, quem sabe, esse daqui escapou ileso. Para seu próprio bem, é melhor que não se lembre de nada!

Virando-se uma vez mais para Ewerton, que ainda estava sendo firmemente segurado pelo queixo, dissera-lhe com voz firme em tom de soberania:

– Durma rapaz! Tudo não passou de um terrível pesadelo…

E mais uma vez Ewerton caiu na escuridão…

Já passava das dez da manhã, quando ele despertou. Sua cabeça doía absurdamente, como se ele estivesse enfrentando a pior ressaca de sua vida. Contudo, não se lembrava de ter bebido uma única gota na noite anterior. Fato que circunstância desmentiam em absoluto, pois sua camisa estava com cheiro de álcool e havia gosto de bebida em sua boca. Ainda um pouco zonzo, sentado em seu improvisado leito, tentou recolocar as ideias no lugar. Bem devagar, seus pensamentos foram se estabilizando e sua memória fora clareando aos poucos. Ao se recordar por completo de tudo que havia ocorrido com ele ainda de madrugada, rapidamente se colocou de pé e olhou ao redor em busca de algo que corroborasse o que havia acontecido. Para sua surpresa, tudo dava indícios que ele havia bebido tudo que podia e, pelo efeito da embriaguez, certamente havia tido aquele estranho pesadelo.

Próximo ao leito em que passara a noite havia uma garrafa de bebida completamente vazia, a fogueira — que ele aquecera a faca — estava apagada de tempos, e até mesmo a chaleira que deveria estar no fogo com a água para o preparo do café jazia pendurada entre suas coisas num dos galhos do Flamboyant. Após fazer uma busca minuciosa pelo dardo que retirara da ferida da jovem ou algum vestígio de sangue ao redor de um amplo perímetro ao longo da sombra da árvore e não encontrando nada, como já havia dormido embriagado por muitas outras vezes e também tido sonhos estranhos nessas noites ébrias, se deu por convencido que tudo não passara do fruto de uma mente bastante fértil. Ainda de pé, com a cabeça latejando nas têmporas, ficou por um tempo parado, olhando ao longo da estrada que ele já deveria estar trilhando desde as primeiras horas da manhã, decidiu pela enésima vez que deveria dar um tempo com a bebida — sua única companheira de noites insones –.

Rapidamente acendeu a fogueira, e sem demora preparou um café que logo fora saboreado com seu desjejum, um satisfatório pedaço de broa, com um naco de carne salgada. Com suas forças restabelecidas, selou seu cavalo — que naquela manhã estava bastante arredio e parecendo assustado — e saiu estrada a fora rumo ao seu destino, — uma cidade na qual ele era esperado para acompanhar uma boiada que seria levada para outro estado. Ewerton era peão estradeiro e vivia de tocar boiada de um lugar a outro. Tropeiro era seu ofício e as estradas seu ganha pão. Em mais de quinze anos na profissão, já conhecera muitos lugares diferentes. Contudo, naquela estrada em que se encontrava naquele momento, era a primeira vez que viajava, naquele ermo caminho, tudo era desconhecido. Cada curva, regato ou ponte era algo novo para se conhecer.

O dia claro de sol forte e brisa fresca possibilitou que a marcha tivesse um resultado bastante satisfatório, uma vez que ele já havia se alimentado bem e não precisou fazer nenhuma parada mais longa, exceto uma vez ou outra para se aliviar. Numa cavalgada continua, conseguiu vencer mais de oito léguas de estrada. Por volta das quatro da tarde, decidiu que deveria buscar um local mais apropriado para pernoitar, pois, logo à frente, uma forte tempestade se anunciava no horizonte e, debaixo de uma árvore ao relento, não seria apropriado passar a noite.

Não tinha seguido mais do que dois quilômetros, quando estando ele contornando uma curva bastante fechada após ter atravessado um belo regato de águas serenas e cristalinas, se deparou com um suntuoso casarão abandonado na beira da estrada. Era uma enorme construção em estilo colonial com traços de uma arquitetura bastante rebuscada. Suas feições — mesmo em ruínas, aparentando estar a bastante tempo abandonado — demonstravam que em seus tempos áureos havia sido um belo palacete. Talvez a residência de uma família muito importante, ou quem sabe uma pousada bastante movimentada na região. Porém, como tudo tem um fim, aquela bela casa estava encontrando o seu, nas garras do tempo, e se um dia fora habitada ou visitada por várias pessoas ilustres, naquele momento, certamente era moradia de várias criaturas que viviam nas sombras se escondendo na escuridão, e que naquela noite em particular, também lhe daria abrigo contra uma chuva que se anunciava de forma violenta e duradoura.

Muito cansado da viagem e das desventuras da noite anterior onde no mesmo sonho ele fora espancado duas vezes, Ewerton após apear e desarrear seu cavalo — deixando-o pastar livremente — decidiu adentrar o casarão e procurar uma forma de acender uma fogueira, tanto para lhe aquecer e espantar algum animal peçonhento bem como deixar o lugar mais iluminado. Por dentro o casarão não era de todo diferente ao seu externo. Tudo estava na mais completa ruína. O ambiente tinha um cheiro fétido de mofo e abandono. A poeira do tempo tomava conta do lugar. Havia alguns móveis abandonados, mas estavam velhos e comidos por traças, servindo apenas de suporte para as inúmeras teias de aranhas que infestavam o lugar. Temendo se deparar com alguma serpente ou algo do tipo, devido a escuridão interna que ocupava todos os cantos da casa, decidira ele, ficar no salão principal que contava com uma bela e grandiosa lareira. Rapidamente, utilizando-se de pedaços de alguns moveis velhos, logo conseguiu acender uma crepitante fogueira que trouxe luz e calor para aquele lúgubre ambiente.

Em um de seus embornais, ainda havia uma pequena garrafa com licor que ele logo abrira, emborcando alguns goles para acompanhar mais um pedaço de broa e alguns nacos de carne salgada, que naquela noite seria seu único jantar. Assim que terminou esse breve repasto, colocou mais alguns restos de cadeiras velhas no fogo e após de ter a certeza que num velho estofado de frente a lareira não havia nenhum animal peçonhento se escondendo em seu interior, se deitou e ficou ouvindo o crepitar das chamas na lareira e o ribombar dos trovões e da chuva que caia pesada no telhado, sem maiores preocupações, logo pegou no sono.

Acordou sobressaltado já tarde da noite com alguém lhe acariciando a face. Era uma bela donzela de olhos na cor de mel com longos cabelos ruivos na cor do entardecer. Ele jazia com a cabeça em seu colo e ela muito prestativamente lhe velava o sono. Num movimento rápido, se colocou de pé e logo percebeu que tudo ao seu redor havia mudado bruscamente. O casarão em ruínas cedera lugar a um suntuoso palacete cheio de luz e muito movimento, a mobília estava nova e brilhante, havia belíssimas cortinas nas janelas, o piso estava recoberto com finíssimos tapetes em alguns lugares. Havia inúmeras pessoas por todos os lados. Comendo, bebendo e se divertindo bastante como se uma animada festa estivesse ocorrendo ali naquela noite.

Belas e perfumadas mulheres de todas as idades, distintos cavalheiros com pose de serem homens bastante importantes se faziam presentes como convidados ilustres. Na lareira — que agora estava bela e limpa — ardia uma frondosa fogueira com toras de madeira perfumada dando ao local um agradável odor almiscarado. Num dos cantos do salão, um afinado piano alegrava o ambiente com notas musicais bastante animadas. Tudo era muito alegre e festivo como num sonho, até mesmo a chuva parecia ter dado uma trégua naquele momento. O barulho ao seu redor era de risos, animadas conversas e o harmonioso som do piano.

Um tanto embasbacado com tudo aquilo e ainda meio atordoado pelo sono, Ewerton foi conduzido até um recinto reservado. Lá, uma deslumbrante mulher, possivelmente na casa dos quarenta anos, conversava alegremente com um jovem ainda na flor da idade, que lhe fazia companhia. Esta mulher foi apresentada a ele como a Condessa do Araripe, viúva do nobre Conde do Araripe e proprietária daquela badalada pousada. Ela gerenciava o estabelecimento com a ajuda de suas três filhas e, naquela noite, seria sua anfitriã. A condessa era uma mulher de estatura alta, com longos cabelos cacheados tão negros quanto uma escura noite sem luar, que caíam em cascata pelas costas. Seus olhos brilhantes, da cor de esmeraldas, destacavam-se em seu rosto claro como a neve, e seus lábios na cor de carmim delineavam um sorriso que, embora inocente, denotava a seriedade e responsabilidade de quem governa um renomado estabelecimento e cuida de indefesas donzelas.

Assim que o distinto cavaleiro lhe foi apresentado, a condessa, que naquela noite trajava um longo vestido de veludo na cor verde como seus olhos, levantou-se e, após uma delicada reverência, ofereceu-lhe uma de suas mãos para que Ewerton a beijasse. Ao aproximar seu rosto da mão da condessa, ele pôde sentir o mesmo perfume que emanava da jovem ferida a quem ele havia prestado socorro — era o mesmo aroma de frescas flores de jasmim. Já bastante desconfiado de tudo aquilo, Ewerton se colocou ainda mais na defensiva, mas deixou que os eventos se desenrolassem para ver onde tudo aquilo iria culminar. A condessa então lhe ofereceu uma bebida, servida por outra de suas filhas — tão bela quanto a primeira –, uma jovem loira de olhos azuis como o céu em uma manhã de primavera. Com a bebida em mãos, mas ainda sem experimentá-la, ele refletiu por um instante, questionando-se se tudo aquilo não seria apenas mais um sonho. Para ter certeza dessa vez, e sem ser notado, para não parecer um lunático diante de tão belas mulheres, decidiu morder o lábio, de modo que a dor pudesse esclarecer suas dúvidas.

Talvez tenha sido esse seu maior erro, pois a mordida foi mais forte do que pretendia, resultando em um fino fio de sangue brotando de seus lábios. Esse brilhante fio escarlate se tornou sua perdição, pois, antes mesmo que pudesse reagir, logo se viu preso por braços que mais pareciam duas tenazes, enquanto a condessa se lançava sobre ele, abraçando-o como uma serpente. A bela face da condessa transformou-se em algo assustador e animalesco; os belos olhos, que antes eram de um verde estonteante, agora tinham a cor rubra do fogo mais ardente; seus dentes, longos e afiados, estavam prestes a banquetearem-se de sua carne. Ele já sentia o morno bafejar de sua boca em seu pescoço e uma língua pegajosa roçando sua pele como se estivesse saboreando-o. Ele tentou se libertar de todas as formas e, percebendo que era inútil se debater, fez a única coisa possível. Juntou o que restava de suas forças e, num átimo de desespero, soltou um grito tão alto e vigoroso que teve a certeza de que aquele ensurdecedor barulho despertaria qualquer coisa ao seu redor.

Por sorte ou mero acaso, seu grito de desespero lhe foi bastante promissor, pois quando imaginou que aquele seria o seu fim, ouviu uma voz doce próximo a ele, intercedendo a seu favor.

— Mãe! Solte-o! Tenho uma dívida de honra com esse cavalheiro! Foi ele, que ainda hoje pela manhã, veio em meu socorro. Se não fosse por ele, certamente os Cruzados teriam me capturado e talvez eu nem estivesse mais por aqui. Ele é digno de todo nosso respeito e proteção.

O abraço de morte que a condessa lhe aplicava se tornou num abraço de afeto e sincero agradecimento. As feições da condessa retornaram ao que era antes e ela mais uma vez estava encantadoramente bela outra vez. Ainda segurando Ewerton pela face, — que ainda tomado de pavor, sentia-se meio hipnotizado e sem reação — lhe beijou a testa e após deixar uma marca em sua face com uma de suas afiadas unhas, disse-lhe de forma muito afetuosa e maternal:

— Nada, nem ninguém em meus domínios tocara num único fio de cabelo seu! Nenhuma criatura da noite atentará contra sua integridade. De hoje em diante você será meu protegido!

A mesma jovem que ele ajudara pela manhã, agora tão bela quanto sua mãe — uma vez que as duas eram muito parecidas — também lhe dera um afetuoso abraço de agradecimento e logo após, soprou em sua face um pó esbranquiçado que mais uma vez o lançara no véu da escuridão. Ewerton acordara já bem tarde na manhã seguinte, com uma terrível dor de cabeça, — como na manhã anterior — ainda estava deitado no velho sofá de fronte a lareira que agora jazia apagada e mais uma vez fria e sem vida. Tudo no casarão estava igual ao momento em que ele ali adentrara; ruínas, abandono e sujeira por todos os lados. Mais que depressa, ajuntou suas coisas e logo deixou aquele assombroso ambiente. Já pelo lado de fora, na segurança da luz do sol, que naquela manhã brilhava radiante fez mais inventário de todos os acontecimentos e mais uma vez se fez convencer que tivera outro pesadelo horripilante. Seu cavalo, fora logo selado e mesmo sem preparar seu café, decidiu seguir viagem se afastando rapidamente daquele lugar.

Sobre sua sela, já a trote rápido, pegou um naco de carne para o desjejum, mas não conseguiu comê-lo devido ao sal que ofendia a ferida que ele tinha no lábio inferior…

Texto publicado na 3ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datada de março de 2024. → Ler edição completa

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