Anelly
Nasci em um vilarejo onde todos se conheciam. Eu era constantemente vigiada. Apenas entre as mais altas árvores da floresta me sentia livre.
Minhas escapadelas eram perdoadas se voltasse a tempo para a ceia. E assim eu fazia. Mas a lua era minha paixão, por vezes me via inebriada por seu brilho sem igual e foi em uma dessas vezes que tudo mudou.
— O que faz uma jovem tão bela aqui sozinha? — Fui desperta de meu transe de sobressalto.
— Não se levante. — O intruso sentou-se na raiz exposta a meu lado e perguntou meu nome.
— Anelly. — Respondi.
— Graciosa, sim. Definitivamente seu nome.
— Grata pela gentileza. — Sorri envergonhada. — Você não me parece ter tanta idade, mas fala como meu avô.
— Garanto que já vivi muito mais do que ele…
— Não mesmo! — Disse prontamente.
Dei uma boa olhada para ele, iluminado quase que fantasmagoricamente pelo luar. Era elegante, tinha uma cartola não muito alta na cabeça e aparentava não ser muito maduro, embora seus modos dissessem o contrário. Lembrei que não perguntei seu nome.
— Pode me chamar de Malus. — Respondeu como se adivinhasse meus pensamentos.
Era loucura, eu sabia. Mas estar em sua presença me despertava sensações jamais antes vividas por mim. Já era tarde demais para não ter perdido a ceia, com toda certeza eu me daria muito mal quando chegasse em casa, desse modo, viveria cada minuto de prazer momentâneo que este encontro inesperado me proporcionava.
— Percebi que a lua te cativa, o que mais a faz suspirar?
— Poemas, vinhos e agora você. — Essa última parte saiu quase sem querer. Meus olhos se arregalaram com o tamanho de minha ousadia.
— Vejo que tens bom gosto. — Malus sorriu maliciosamente.
— Sabe, Ane. Não é comum o que está a acontecer conosco. Eu sinto e sei que você sente… — Senti suas mãos frias segurarem as minhas.
— É um encontro de almas.
— Almas gêmeas? — Interrompi.
— Pode-se dizer almas que se reconhecem. — Deslizava suas unhas enormes sobre a pele de meu braço exposto. Estava arrepiada.
— Não parei aqui por acaso. — Continuou. — Senti seu cheiro de pureza, mas não é somente isso.
Malus segurou meu queixo e ergueu minha cabeça em direção a sua. Ele era mais frio do que a noite e isso só me fazia o desejar mais.
— Sua alma implora pela minha. — Finalmente me beijou. Senti que flutuava.
— Há muitos segredos para serem desvendados nesta vida. Sinto que está pronta para conhecê-los.
— Segredos? — Questionei. Desejando secretamente que voltasse para o ato anterior.
— Não tens medo do desconhecido ou das trevas, sua áurea é doce, mas escura.
— Áurea? — Repeti.
— O bem e o mal é somente um ponto de vista. O que me diria se tivesse que trocar a vida de alguém pela sua?
— Se não houvesse alternativa, teria que ser feito. — Respondi sem pensar muito.
— É sobre isto que me refiro.
Malus me tomou em seus braços e me entreguei. Mesmo sem entender de fato o que me dizia, eu sabia que por toda minha vida era por ele, e por este momento, que eu ansiava.
Calor e frio eram mesclados nessa união. Mas o que se seguiu, tenho apenas como vagas lembranças. Após o prazer carnal, veio a dor. Sangue escorria de meu pescoço e, agonizando, eu morri. Sei que houve choro, gritaria e desespero. Meu corpo fora encontrado na manhã seguinte. Talvez velado, mas com certeza enterrado.
Despertei algum tempo depois enclausurada, na total escuridão. Sem muito esforço cheguei à superfície terrosa e entendi. Tudo estava diferente. Aos poucos minha mente era iluminada por segredos que me foram revelados, por uma vida à qual sucumbi e ao que me tornara.
Sentia Malus. Mesmo sem saber para onde ir, ou como chegar até ele, apenas segui. “Uma vida pela minha”, chegou-me à memória. Sangue de cervo me foi de muita valia.
Estava radiante pela primeira vez. A cada paço, sob a luz prateada, a nova Anelly se solidificava na Terra. A escuridão fazia parte de mim, preenchia cada centímetro de meu ser como nunca antes. Estava muito mais viva depois que a vida me deixara.
Próximo ao amanhecer, enfim, o encontrei. Não exatamente Malus, mas o começo de minha nova jornada. Ainda posso sentir meu sangue vibrar como naquela noite, ao se abrirem os portões quando eu cheguei em casa… Quando cheguei ao Castelo Drácula.
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Ana Kelly, natural de São Paulo (SP), é poeta, escritora, contista e artesã, sócia-proprietária da loja de acessórios e artigos alternativos, Ivory Fairy. Tem poemas e contos publicados como co-autora em diferentes antologias. No ano de 2009 recebeu o prêmio de 1º lugar, em um concurso…
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