A Noiva em Ruínas

Foto de Denny Müller

A mulher sábia constrói o seu lar. Provérbios 14:1

Em um casarão antigo, e um tanto conservado, morava um solitário cientista obcecado em criar a noiva perfeita, ele se embrenhava em cemitérios e necrotérios, onde outros homens davam a ele — por uma generosa quantia — acesso às partes que ele precisava para sua criação. Tudo era levado para seu frio e organizado laboratório, munido com seu conhecimento de anatomia, alquimia e tecnologia ele pode dissecar e meticulosamente selecionar os órgãos e membros que precisava, suturando membros, conectando vasos sanguíneos e nervos, e para finalizar muita eletricidade e, assim, a noiva estava terminada. Ela era um belo exemplar de partes costuradas, um quebra-cabeça de carne morta-viva — que se sentia mais morta do que viva — trazida à vida pela obsessão por perfeição do homem que a criou.

A noiva era perfeita — pelo menos na visão de seu criador — ela foi criada para ser a companheira carinhosa, sempre disposta a dizer sim, esposa, mãe, ouvinte, cozinheira e excelente dona do lar. De estatura mediana, esbelta e de traços delicados, lábios belos de uma tonalidade rosada, de tom de voz baixo e acanhado, olhos gateados da cor de âmbar, sempre submissos, pele muito alva e delicada, cabelos longos como um véu translúcido, de uma beleza feérica e melancólica metodicamente criada, com uma sutileza de vaidade. Partes suturadas com delicadeza, todas elas bem selecionadas e imaculadas. Sua mente — como inocentemente acreditava seu criador — era uma tabula rasa, sempre pronta a aprender aquilo que seu senhor desejasse.

Porém, ela refletia confusamente com tudo o que ele permitia que ela lesse, ele achava conveniente que ela tivesse — nem que fosse um pouco — conhecimento. E assim como selecionara suas partes, escolheu um a um aquilo que ela tinha permissão para ler. Astronomia, arqueologia, botânica, filosofia e aventuras fantásticas onde os protagonistas — sempre homens — viajavam, exploravam e — assim como ela que lia — se fascinavam com as belas paisagens. Ela ficava perturbada por desejar conhecer tudo aquilo, mas não queria ser o homem, apenas desejava ter a liberdade de experimentar — como eles — tudo o que lia nos livros. As vezes se esquecia dos seus afazeres domésticos, entretida com tantas palavras e imagens, perdidas entre as prateleiras daquela biblioteca desordenada.

O homem, estudioso de renome, sussurrava belas palavras ensaiadas no ouvido dela, discursava — de maneira sutilmente dominadora — sobre o seu vasto conhecimento e de como ela era abençoada por merecer o seu amor, pois ele não era como os outros, outros esses que ela não conhecia e nunca tinha ouvido falar. Quando ela declarava querer conhecer o mundo fora dali, ele dizia que ela tinha liberdade para ir aonde quisesse, desde que fosse nos limites da sua propriedade, pois o mundo lá fora poderia corrompê-la. Ele a considerava o ápice da perfeição até não ser mais. Às vezes ela sentia o peso da sua mão, por uma palavra ou ação errada, logo o peso cedia e a mesma mão que a havia ferido, a acariciava, assim ela voltava a ser a noiva idealizada. A noiva ficava confusa com os sentimentos conflitantes que tinha por ele. Ele sempre estava ocupado demais em seu laboratório — a única parte do casarão ainda intacta — para ouvir ou fazer as vontades da noiva e perceber o que nela aos poucos se alterava.

A noiva não tinha um nome ou uma identidade própria que pudesse chamar de sua, mesmo que seu criador a chamasse de Sofia, que significa sabedoria — para o “homem” o significado dele era admirável — não era um nome ao qual ela sentia ser o seu. Ela era apenas a companheira perfeita, planejada e idealizada para o solitário monstro que ela conhecia como o “homem”. Cada parte do seu corpo era um retalho, a união de muitas mulheres que tiveram suas vidas extintas. Ela era uma amálgama de sonhos quebrados e esperanças fragmentadas, e era assim que agora ela se sentia.

Em quase todas as noites em que a escuridão parecia abraçar aquele casarão decadente, onde a luz da lua mal conseguia penetrar as grossas cortinas poeirentas, a noiva repousava em seu leito de seda escura, seus olhos brilhavam com uma luz fantasmagórica e observavam as sombras que dançavam no teto e nas paredes úmidas, refletia sobre a sua existência, enquanto o “homem” nela mergulhava para satisfazer suas próprias vontades, ela mergulhava em si mesma. E ansiava por algo além de ser a criação e serva do outro. Seu coração, já havia noites, estava sendo, aos poucos, alimentado por uma centelha sobrenatural, pulsando pela necessidade de escolha e liberdade. Porém, suas memórias eram um mosaico de vozes que em vida foram silenciadas, um coro de almas desesperadas sepultadas em carne ressuscitada.

Ela olhava para suas mãos, seus braços, pernas e pés, partes que antes pertenceram à artistas, musicistas, dançarinas, donas de casa, universitárias, e tantas outras mulheres que poderiam ter sido importantes, que encontraram o fim antes do tempo. Cada parte carregava uma história não contada, uma narrativa trágica de vidas interrompidas. Os olhos, que agora observavam o mundo, já haviam testemunhado o auge e a decadência, mas suplicavam por mais. A noiva ansiava por se libertar daquele casarão decrépito, que ela sozinha não conseguia dar conta, se sentia pressionada e cansada demais de apenas servir e manter um lar. Ela queria ser mais que uma sombra no caminho do “homem” que a criou para servi-lo. Todas as suas partes desejavam a liberdade de escolher seu próprio destino, ser sua própria criadora, de escrever e viver sua própria história, assim como nos livros que ela lia.

E a cada dia, em secreto, ela sentia a comunhão com as suas partes mortas-vivas em um pacto silencioso feito dentro de si mesma. Cada pedaço seu desejava insistentemente — a ponto de ela não conseguir controlar — escapar das correntes da obediência e ser livre. O cérebro antes uma cacofonia de vozes em desespero, agora uma sinfonia de pensamentos e memórias desenterradas que clamavam por autonomia. Os membros — uma união de habilidades antigas e paixões — que desejavam por serem livres para explorar o mundo fora dos muros daquele casarão arruinado.

A noiva ergueu-se do seu leito conjugal — onde todas as noites aguardava por ele -, seus cabelos pálidos ao redor dela como um véu. Ela se olhou no espelho e analisou a sua imagem por um longo tempo e em concordância com todas as suas partes, decidiu que era hora de as correntes do “homem” serem quebradas. Desafiando o que foi imposto a ela, ainda carregada de ansiedade e insegurança, andou por aqueles corredores escuros, malcuidados, úmidos e rachados com determinação. A noiva saiu às escondidas daquela prisão e as almas que a tinham como morada sussurravam entre si agradecidas pela liberdade. Porém, mesmo rompendo os grilhões da obediência, deixando para trás o casarão em ruínas, elas sabiam que haveria outras que ocupariam o seu lugar na vida do “homem”.

Texto publicado na 2ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2024. → Ler edição completa

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