As gavetas dos últimos dias
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
São Paulo, terra da garoa e dos mortos.
A violência é intensa, isso não podemos negar, e com isso a vida desacontece a todo momento. Aprendemos a lidar com a morte, ela é nossa fiel escudeira, única acompanhante nos becos, nas estações vazias e viadutos abandonados.
E nunca se sabe quando o encontro fatídico ocorrerá, e ele ocorre para a maioria da população mais cedo do que se pode esperar.
Com o acúmulo de corpos sem vidas, uma Companhia percebeu a demanda e fez uma oferta irrecusável. Uma vez que os cemitérios tradicionais já não comportavam o volume de corpos, surgiu a brilhante ideia: e se eles fossem condicionados verticalmente, tal qual o Japão que adaptou suas lavouras às condições e criou robustos sistemas de hortas verticais. Prédios vazios e sem uso comercial foram transformados em criptas, onde o céu era o limite. E como havia espaço até que as bordas dos edifícios tocassem a beira do firmamento.
Os edifícios eram arrematados em leilões. Empresas que declaravam falência eram as principais ex-proprietárias. Estavam, em sua maioria, em ótimo estado, alguns precisavam ter a energia elétrica religada, pois estavam há meses sem pagamento, mas nada que onerasse a Empresa da morte. O fim da vida tornara-se algo lucrativo e tinham certeza de que logo recuperariam o valor investido, o lucro viria.
Os elevadores eram enormes, como bunkers reforçados de aço, robustos e impenetráveis. Após os possíveis ajustes, cada andar era remobiliado: saíam as baias que antes abrigavam os humanos sobreviventes de suas rotinas miseráveis; entravam as gavetas onde eram condicionados os corpos, agora, sem vida.
A visão daquelas caixas perfeitamente encaixadas causava satisfação para quem observava, tudo era limpo e quieto, o SPA após a vida. Quem visitava esses decorados ficava encantado com a disposição impecável, de certo, esse era o descanso merecido.
Renan era o corretor mais bem-sucedido daquela Companhia. Seus argumentos e simpatia comedida sempre eram convertidos em vendas, mesmo quem não queria, pois dizia não ser “bom agouro comprar o lugarzinho ali”, acabava sendo seduzido por suas dóceis palavras. Se buscar o conforto próprio não era o suficiente, ele apelava para o dos entes queridos, e a esse discurso ninguém ousava olvidar.
Naquele dia tinha agendado uma visita para as 14h, e como de costume chegou mais cedo ao local. Cumprimentou Olivia, a recepcionista com quem tinha uma amizade discreta, e entrou no elevador.
As teclas, numeradas de 1 a 16, o perscrutavam, esperando o momento em que uma delas seria tocada, e após uma espera de milésimos de segundos, a 13ª saiu vencedora.
1, 2, 3...
Quando a gaveta de ferro iniciou a subida, bateu as mãos nos bolsos: “Putz, esqueci o celular”. Apertou o 0, mas o elevador seguiu fielmente sua missão e continuou a subida até o andar selecionado.
4, 5, 6...
Obedecendo a pensamentos intrusivos, apertou a tecla 8, mas o elevador ignorou seu pedido e continuou seguindo cegamente a programação. “Como sou burro, ele respeita a ordem de seleção, agora vai demorar mais ainda para descer, mais uma parada inútil.”
Tentou calar a voz da ansiedade. A caixa de metal finalmente chegou ao 13º andar. Parou. Era esperado as portas demorarem 3 segundos para abrir, sim, ele tinha contado durante algumas crises de ansiedade. O medo de um dia ficar preso dentro daquilo era vencido pelo sedentarismo, subir 13 lances de escadas não iria rolar, mas agora se arrependia da tola decisão. Dez segundos passaram, as portas insistiram em permanecerem cerradas. Pressionou outra tecla, aquela com ícone de telefone para caso de emergência, alguém atenderia e diria que estava tudo bem, seria resgatado. Mas não ouviu voz humana, aliás, não conseguiu distinguir o barulho, parecia uma geladeira que grita do nada na madrugada. Sentia a respiração descompassada, dançando uma música sem ritmo e sem nexo.
“Que droga, respira, 1, 2, 3... Como a Carla ensinou”. Carla era a terapeuta, partes de suas manias e fobias foram amenizadas com as sessões, mas nada o havia de fato preparado para aquilo. O elevador desceu de forma violenta, como se 1, 2, 3 fosse um comando de voz, luzes piscando como uma discoteca infernal.
Parou bruscamente, pareceu ter atingido os limites do solo. Com a freada, Renan caiu de joelhos, que ardiam com o impacto brutal. “Que merda foi essa?”.
As luzes estabilizaram e o coração insistia em sair pela boca, mas ele o engoliu e o forçava a bombear sangue, mesmo irrigando partes que não deveriam, molhado demais. “Pera, eu mijei?”.
Conseguiu levantar-se após empregar força sobre-humana em seus joelhos, as pernas ainda tremiam, mas era de medo.
Apertou novamente o botão que o salvaria, mas nada, outros ruídos surgiram.
Deslizou derrotado na parede em frente à porta, aquela situação era demasiadamente difícil para ele. Olhou para cima, buscando um deus no céu de aço, e encontrou o painel, que indicava o número dos andares, piscando em alto e bom neônio vermelho: -10.
Pensou e riu consigo mesmo que havia chegado a um ciclo, até então, desconhecido do inferno.
Enquanto lamentava sua situação, algo lá fora arranhava a porta e forçava entrada. “Era melhor ter morrido esmagado”.
O teto, obediente à sentença proferida pelo miserável, desceu rápido e implacável. Metal contra carne. Não houve grito, somente os estalos dos ossos cedendo e esmigalhando, fundindo elevador e homem em uma massa disforme única.
Não era o jazigo que havia comprado, mas era o único e último que teria.
Michelle S. Nascimento
Michelle Santos Nascimento é paulistana, mãe, esposa e amante das artes, em todas as suas formas de expressão, desde que aprendeu que há todo um universo fora dela. Ama as ciências humanas, mas também tem predileção pelas exatas, porquanto é graduada em “Segurança da informação”, pós-graduada em “Gestão de TI” e “Engenharia de software” e trabalha como Analista de qualidade de software... » leia mais
19ª Edição: Revista Castelo Drácula®
Esta obra foi publicada e registrada na 19ª Edição da Revista Castelo Drácula®, datada de outubro de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula®. Todos os direitos reservados ©. » Visite a Edição completa
                        
            
  
  
    
    
    
  
  
    
    
    
  
  
    
    
    
Caríssimo Dom Søren. No meu coração reside uma profundeza triste que, como uma tenra maré, movimenta-se em ondas frígidas sobre a areia…