Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Já estava acostumado a descer aquela escada de pedra. Tão saturado, que já não percebia mais o cheiro úmido e o fedor de bolor invadindo suas narinas como na primeira vez. Mas ainda sentia o toque molhado das paredes, ao apoiar a mão para não cair. A cada descida, parecia mais velho, como se os degraus roubassem um pouco de sua vitalidade. Aquela escada, escondida atrás do altar, conectava a majestosa nave da igreja à cripta silenciosa no subsolo.

Com os anos, a tarefa tornara-se cada vez mais árdua: seus ossos doíam, e as pedras soltas rangiam sob seus pés como se respondessem ao lamento de suas articulações. O musgo, que crescia livremente pelas paredes e degraus, transformava o caminho em uma armadilha traiçoeira. Mais cedo ou mais tarde, seria ele a habitar aquela cripta.

— Causa da morte? Escorregou nas escadas e bateu a cabeça — resmungou, enquanto descia vagarosamente.

O que tanto ocupava o coroinha, que nunca atendia sua ordem de limpar os degraus? Seria ele o único a respeitar os mortos? O único que se lembrava das almas abandonadas?

— Santo Deus, tende misericórdia deste vosso pobre servo... — murmurou, enquanto os ecos de sua voz se misturavam ao silêncio da cripta. — Talvez eu seja mesmo o único a me importar. Um padre enrugado no fim da vida, que insiste em descer até aqui para orar e acender velas por estas almas esquecidas.

Quando tocou o chão com a ponta dos pés, pareceu que iria cair. A fraca luz da lamparina bruxuleava contra as paredes, sob o efeito de seus braços trêmulos. Eles fraquejavam com o peso dos anos. A luz dançava e iluminava diferentes partes dos esquifes que ali se encontravam. Sem problemas: mortos não enxergam. Portanto, não precisam de luz.

Colocou a lamparina ao lado de um deles. Ajeitou os cabelos, levando-os para trás das orelhas. Retirou a vela do bolso, acendeu o pavio, ajoelhou-se e começou a orar. Tudo ocorria como sempre, de forma mecânica. A mesma sequência de preces; em seguida, cerrava o missal e voltava para a vida lá em cima, não sem antes permanecer mais algum tempo lá, numa tarefa que exigia sua atenção, conforme explicava ao coroinha, sempre que se atrasava.

— Eu oro pelo dever. Nenhuma ovelha deve ser deixada para trás. Até mesmo aqueles que morreram merecem socorro e uma chance de penitência. E eu dou atenção a eles…

Mas, de alguma maneira, se perdia em seus pensamentos: após sua morte, quem faria isso por ele? Provável que prestassem grandes homenagens no seu velório. Mas quem viria até ali? Após ser depositado ali mesmo, quem se lembraria de descer e acender uma vela por ele?

Pensava sobre se o que fizera até ali, fora certo. Achava que na maior parte de sua longa vida, sim. O resto, aquilo que não ousava nem falar para si, deixava quieto e apodrecendo, soterrado por anos de camadas e mais camadas de beatices e ritos sagrados.

Na sua soberba, que nem ele ousava revelar para si mesmo, achava-se superior aos outros: o mais digno de ingressar no céu daquela paróquia. Após anos de servidão, Deus havia de o perdoar sem pestanejar.

Foi quando fez menção de fechar o missal que o notou. Molhou os lábios e engatou mais um pai nosso, depois mais uma ave-maria, enquanto tentava captar com a visão periférica quem tinha ido até ali procurá-lo.

O vulto estava de pé. Tinha a impressão de que era da mesma altura que ele. As costas eram menos encurvadas. Ouvia apenas o som de goteiras, marcando a passagem do tempo, feito um relógio descompassado.

— Não se entrará no céu com meia dúzia de rezas.

O velho padre assustou-se. Aquela voz ecoando no vazio de sua alma. Suas mãos começaram a suar. Empertigou-se. Dançou com os joelhos cansados e doloridos sobre o chão de pedra, procurando uma penitência tolerável. Fez os joelhos e os quadris chacoalharem em conjunto. Isso lhe conferia uma aparência fraca e patética.

— Dançar sobre os joelhos também não adiantará… O passado é imutável.

— É por isso que ele deve ser deixado onde está. Vá embora!

— Eu não teria tanta certeza… — O homem retrucou. — Nele, não se muda nada, mas é dele que nasce o futuro.

Quem quer que fosse, estava tentando intimidá-lo. Reparou que, após terminar de falar, o homem molhou os lábios. A luz iluminava apenas a metade de baixo de seu rosto, o qual achou familiar. Tinha a impressão de que já o conhecia. Quando ia perguntar se a arquidiocese havia mandado alguém para visitá-lo, o homem continuou:

— O passado molda o futuro. Hoje, Katia e Helena foram separadas.

— Não conheço Katia, nem Helena. Vá embora, estou ocupado! Logo atendo o senhor lá em cima.

— Teria conhecido! — O homem interrompeu o padre rudemente. — Mas negou abrigo para ambas, na época das chuvas. Perderam a casa para a enchente. Uma delas morreu.

— Não pode me julgar, o senhor não é Deus!

— Será mesmo que não sou? Mas garanto que o Maurício pode julgar.

— Não quero saber desse Maurício.

— É o mendigo que você expulsou ontem. Suicidou-se. Achou que não era digno, nem na casa de Deus.

— Eu não sou responsável por isso.

— Tudo isso sem mencionar sobre você e o coroinha, bem aqui. Santo Deus!

— Eu parei há tempos... Me arrependi, já dei a conhecer o meu crime no confessionário. Cumpri a penitência. Nada devo — respondeu calmamente.

— Acho engraçado como um homem pensa que pode apagar pecados após o sacramento da confissão.

— Além de pagar a minha penitência, eu não voltei a pecar, deixei o coroinha em paz.

— Que arrogante!

Aquele que debatia com o padre constatou.

— Nenhuma penitência lavará o pecado que repousa nessa cripta.

O homem encostou um ombro numa coluna de pedra, umedeceu os lábios antes de continuar a falar:

— Os homens não têm poder algum sobre o que é digno de perdão ou não. A única liberdade que lhes foi dada é o livre-arbítrio. Pensa que está tomando um atalho para o céu, quando mente para si mesmo.

— Agora, apenas dou vazão aos meus instintos, aliviando-me aqui.

Eximiu-se o religioso de sua culpa.

— Por que não na privacidade de seu quarto? — questionou o homem com genuína curiosidade.

— Não é o ato… é o pecado que me excita — disse, ajeitando o que tinha entre as pernas.

— Culpado!

— Não... Mas quem é você? Eu não sabia que estava sendo julgado. Isto é um absurdo! — o padre protestou.

— A sua penitência será não mais visitar essa cripta. Se insistir, invariavelmente aparecerei, mas dessa vez nada direi! — advertiu o homem, seu rosto ainda oculto pelas sombras.

O pároco, com medo que fosse alguém da alta cúpula da Igreja, saiu em disparada. Ao cruzar com o indivíduo, notou que ele ajeitava o cabelo atrás da orelha.

Não esperou que o homem saísse de lá e, como naquela semana não ouviu e nem recebeu nenhuma visita ou ligação de algum bispo, ou arcebispo, achou que o episódio com o homem misterioso da cripta era fruto de sua mente que não dormia há dias. Permaneceu alguns dias longe da cripta, mas após a missa de domingo, desceu até lá.

Após cumprir seu rito em homenagem aos mortos, já ia subindo as escadas. Mas conforme subia a escada, sentiu algo se avivar em meio às suas calças e não conseguiu se controlar. Deixou a lamparina em uma das saliências de pedra na parede, ergueu a batina e ali, no escuro, começou a acariciar-se. Terminou o ato feliz e satisfeito, até sorria, tendo certeza de que a conversa na cripta que correra na semana passada, fora um delírio de sua parte…

Subia as escadas com a cabeça abaixada, prestando atenção aos degraus. Estacou repentinamente, quando viu que havia um homem parado em um deles. Reparou que os sapatos eram iguais aos seus, arriscaria dizer que até eram do mesmo número. Foi erguendo a cabeça, reparando que a calça e a batina eram as mesmas. Até que chegou ao rosto.

Abriu a boca estupefato. O homem era uma cópia perfeita sua, mas a expressão era de decepção. Sem dizer uma palavra, empurrou-o escada abaixo. O padre bateu a cabeça várias vezes, o que causou sangramento cerebral e morte.

O novo padre da paróquia incumbiu o coroinha de cuidar da cripta da igreja, local onde o corpo mais recente a habitar fora o do último padre que morrera ali mesmo no subsolo. Toda semana o coroinha descia para limpar as tumbas e lavar o chão. Sempre acendia uma vela para o antigo padre.


Escrito por:
Aryane Braun

Aryane Braun é curitibana por nascimento, amor e dor. Formou-se em Letras pela UFPR e possui duas graduações na área da educação. Atualmente, trabalha em uma biblioteca de um colégio público em Curitiba e adora o que faz, pois ama o ambiente que os locais de ensino proporcionam. Afinal, que lugar melhor para trabalhar do que uma biblioteca para alguém que sempre gostou de literatura, antes mesmo de compreender o que ela representa em seu intelecto?... » leia mais
19ª Edição: Revista Castelo Drácula®
Esta obra foi publicada e registrada na 19ª Edição da Revista Castelo Drácula®, datada de outubro de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula®. Todos os direitos reservados ©. » Visite a Edição completa

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