Junqueira Freire: sacerdote na terra da profanação

Imagem da Web editada por Sahra Melihssa, para o Castelo Drácula

Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor que mata,
Do meu cadáver frio à triste cova
Não derrameis nem uma lágrima!¹

Muito se fala dos ultrarromânticos: o desejo da morte, o amor ideal, o pessimismo, o individualismo. Mas pouco se fala de sua ligação com a religião.

Se, algumas vezes, uma espécie de lamento fúnebre — como em “Se eu morresse amanhã” — parece a única tônica, é porque um Deus ausente deixa o ultrarromântico entregue à própria sorte, aos azares da existência. Nesse cenário, apenas figuras como a mãe, a irmã ou o amor ideal ganham contornos divinizados.

A luta entre a vontade de viver e a perseguição da morte revela uma dualidade cristã: o conflito entre o prazer da matéria e a salvação da alma. O eu lírico deseja amor, mas também almeja a paz da morte.

Por isso mesmo, gostaria de falar sobre Junqueira Freire. Ele talvez seja a maior referência prática à religião no ultrarromantismo. Escolheu ir para um convento, acreditando levar uma vida de celibato, mas pediu para sair. Mesmo assim, enquanto estudava filosofia e teologia, se inspirou para escrever seu livro, intitulado Inspirações do Claustro. Um título ambíguo, rico em interpretações: desde o sentido religioso da reclusão espiritual — o claustro como espaço físico dedicado ao culto de Deus — até a atmosfera filosófica dos estudos e, claro, da produção poética impregnada de religiosidade.

Junqueira Freire é mesmo uma figura singular no ultrarromantismo brasileiro — talvez o que melhor personifique a tensão entre fé e desejo, entre religiosidade e existência carnal, de forma vivida e escrita com intensidade.

Ele viveu a religião e rompeu com ela. Escreveu, deitou nela, fez todas as suas necessidades, e, quem sabe, só os anjos saberiam quais.

Acima de tudo: escreveu.

O claustro como símbolo ambíguo: lugar de reclusão do mundo, lar dos mais disciplinados fugitivos da vida profana.

O claustro como estado de espírito: isolamento, meditação e, claro, inspiração.

O claustro como espaço de produção do conhecimento — de estudos de Filosofia, de Teologia.

O poeta viveu de forma intensa a religiosidade. Permitindo-se comparar com o próprio passado, pôde fazer juízo. Ainda jovem, esteve em dúvida, buscando respostas e sentido para a vida.

Deixemos que ele mesmo, espírito inquieto, nos mostre sua luta entre o sagrado e o profano:

Meu Deus! meu Deus! — eu creio firmemente
Em vosso eterno e sacrossanto amor!
Creio que um dia abrirei contente
Meu seio à luz do vosso esplendor.

Mas — ah! Senhor! — que dor! o pensamento
Às vezes voa por mundanas vias,
Vai procurar nos gozos, alegrias,
Vai se manchar no lamaçal do intento

Confissão, culpa ou vida?

Junqueira viveu num tempo em que o mal-estar social começava a se instalar na sociedade contemporânea. A Era das Revoluções movimentou o mundo, mas passou, deixando suas garras em nome do progresso. Liberdade, Igualdade e Fraternidade ficaram distantes, e no papel.

O Brasil? Um império escravocrata, tentando, a todo custo de vidas, criar uma identidade.

Parecendo prever a crise existencial da humanidade, Junqueira se reclusou. Mas não suportou o claustro que ele mesmo criou e o expeliu, como também se expulsou de dentro dele.

Deixou de acreditar que seria soldado de Cristo.

Contemplativo, seguiu sendo poeta. Mas, assim como muitos jovens talentosos de sua época, morreu cedo e tristemente, vítima de doença cardíaca. Nosso Freire sucumbiu a problemas que sofria desde a infância.

Deixou sua enorme contribuição, enquanto esteve na terra da profanação, para a poesia brasileira, que nunca mais seria a mesma.

Gosto de meditar de noite, às vezes,
Como um infante,
Espasmado no olhar, fitando o corpo,
Que tem diante.

Gosto de meditar de dia, às vezes,
Como o ancião,
A quem idéias se erguem do passado
Em borbulhão.

O infante, o ancião!—os dois extremos
Da existência;
Um à vida, outro à morte, iguais amostram
Igual tendência.³

¹ “Lembranças de morrer”, de Álvares de Azevedo.

² “Meu Deus”, de Junqueira Freire.

³ “Meditação”, de Junqueira Freire


Escrito por:
Tiago Serigy

Tiago Serigy é amante de filmes, pinturas e desenhos, músicas, além das letras, tem escrito sonetos (mais de 100), prosa poética e versos livres ao longo de mais de uma década, também tem um compilado de contos eróticos e crônicas. Uma fonte que jorra palavras para reinterpretar a brevidade da vida na tentativa de “não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinita enquanto dure”. É uma pessoa... » leia mais
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Esta obra foi publicada e registrada na 17ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de junho de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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