O Cárcere de Archsoa (Parte 1)

Dezembro, 14 de 2024.

Agônica noite silente onde as trevas regelam nossa alma. Agourenta face noturna fenecida em essência, alastrando sua decomposição ao derredor, como um monstro invisível. Quando o sol no horizonte avança para o outro lado do mundo algo além do compreensível emerge dentre as sombras, mesmo havendo lua cheia. Entretanto, conduzidos pelos mantos aquecidos que cobrem as fontes dos sentidos guiadores de nosso Norte — isto é, abraçando-nos às ignorâncias advindas de nossa própria decadência — tornamo-nos incapazes de reconhecer o breu e compreender seus tétricos significados. 

O fascínio do poder é o que nos levou a isso, sim, uma verdade do exaustivo senso comum, porém, dada a razoabilidade dos humanos, o senso comum que lhes é tão próprio é similar a um peixe morto no aquário. Veja-os nadando até colidirem com o vidro, rasgando suas frontes enrugadas pelo estresse da vida moribunda — e o sangue pairando nas pequenas ondulações densas da água esverdeada. 

O fascínio do poder só alcança os inconscientes, aqueles que já morreram internamente, onde há séculos foram sepultados em suas malditas crenças e ideais. Graças a eles e ao silêncio forçado dos sábios, estamos fadados ao horror que se manifesta dia a pós dia. Sabendo que o início de tal desgraça despontou com um cárcere e sabendo que o despontar de seu fim é apenas improvável. 

Pela estupidez que sugiro coordenar as mentes humanas atuais, devo ser mais objetiva, porque isso ficará para a posteridade — mesmo eu, vítima de um profundo horror que consome a energia que me resta e, portanto, tendo como único alívio as palavras que escrevo — ser concisa é mais valioso do que meu bem-estar, embora para quem? Quais humanos lerão estas palavras desprezadas enquanto estão, em sua maioria, desprezando-as? Devo me apegar a futuras gerações quando as taxas de natalidade estão em um único filho para cada cem mulheres?

Antes de quaisquer revelações, contra minhas conjecturas inocentes sobre o além-vida, uma prece creio ser necessária para que, no além das sombras onde o mais terrífico reside, um pequeno lume de esperança possa paliar o cruel destino que não somos capazes de combater. Então, se estou mesmo qualificado a fazer isso... Deus, o criador desta humanidade desvirtuada, considere perdoar a nossa pequenez diante o seu grandioso poder e, então, livra-nos da mórbida consequência de nossos atos delinquentes.

Há sessenta e sete noites, um espírito foi aprisionado — e assim o chamo, pois, sua aparência é como a de um véu negro ao léu dos ventos crepusculares, enquanto sua face é vazia como o abismo. Sua aura era temível, contudo, nada de atroz continha em suas atitudes nulas. De fato, aparentava estar perdido, porventura longe de seu lar no centro da Terra ou no inferno. Ressoava uma lamúria, rouca, de eco infindo, envolto a um chiado aflito, um zunido arrepiante — alguns apelidaram o espírito de Archsoa em detrimento disso; posso escrever tal nome blasfemo, mas eu não ouso o pronunciar.

Alguns acreditam haver um portal no Oriente Médio, de algum modo aberto pela guerra, pois, o primeiro vídeo difundido em segundos pela Internet fora de um repórter brasileiro cuja experiência nas terras áridas estava sendo documentada em dezenas de cenas horríficas até o momento daquela em que o espírito emergiu, mórbido e inominável, dentre a fumaça e fogo fumegante de uma bomba estrondada em um bairro residencial. Os gritos cessaram. E então, o som. O Sonido, chiado atormentado, aterrador sibilo como se fossem os ventos de um inverno perpétuo. E a criatura emergindo dos destroços, vagante e vazia.

Embora, à princípio, desconfiássemos; as diversas fontes e relatos confirmavam que o espírito vagante e obscuro existia. Tamanha era a sua temida presença, que partilhavam do sentimento fatal de fim dos tempos. Afirmavam outros que o ente era de procedência tecnológica, tal como um holograma criado pela NASA. Poucos, como eu, perguntavam-se o que aconteceria a partir daquele momento? Como o tal espírito seria devolvido ao seu lar? Este, no entanto, não era o plano ideal do Governo Americano que, em parceria com a Alemanha — pois previram o vagar a esmo de Archsoa e acertaram o seu destino — prenderam a criatura em uma espécie de redoma magnética assim que seu flanar espectral cruzou as fronteiras Polônia-Alemanha.

O espírito, portanto, emergiu em Israel, na faixa de Gaza; foi para Berseba, subiu para Belém e, com certa sinuosidade, chegou à Turquia, onde cruzou o Mar Negro, passando pela Ucrânia, Bielorrússia, Polônia e Alemanha. Levada para os Estados Unidos, por fim, os malditos poderiam tê-la deixado vagar do outro lado do mundo, mas não, trouxeram-na para perto do Brasil que até então só queria viver dignamente em suas terras abençoadas por Deus. A verdade é que os países não sabiam o que fazer com a criatura e, diante do interesse estadunidense de prendê-la para proteger o resto do mundo, todos concordaram. Por um milagre a própria Rússia elogiou a coragem e determinação do seu arqui-inimigo. Ninguém queria aquilo por perto... ninguém... exceto os Estados Unidos da América.

Estudos científicos se iniciaram, foi descoberto uma energia absoluta em potencial na criatura — em pouco tempo já foram capazes de extrair essa energia, o que resultou em produção tecnológica gigantesca no país. Em um mês, os Estados Unidos eram o polo da singularidade tecnológica. Não demoraria a chegar nas outras nações. Imagine o que significa ter energia infinita! A indagação, no entanto, é clichê: Energia infinita a que preço? Estou a caminho do país norte-americano agora, não por minha conta, mas pela minha empresa que vê potencial em iniciar seu contato direto com a Energia Eterna. Era isso ou eu seria, decerto, demitida. Sinto-me, no entanto, estranhamente inquieta; temo o que hei de encontrar, temo levar isso para o Brasil.

Dezembro, 15 de 2024 — De manhã.

Tudo o que sabíamos sobre as mudanças desde o aprisionamento do Ente, era real. New York está devastada. Uma aura densa e profundamente agônica paira sobre a cidade e não há um estabelecimento que não esteja refém da atmosfera soturna e bizarra. Foi como adentrar um mundo alienígena. Tudo tecnológico e, ao mesmo tempo, frígido, sombrio, tenebroso.

Desembarquei na madrugada, portanto, em excessiva ingenuidade, eu achei que era apenas uma noite incomum; mas no amanhecer, o sol era um ponto de luz nas trevas; o rigor da morte ressoava, pois, tudo era conduzido por sua energia. As pessoas estavam com suas faces cansadas e pareciam ter perdido quaisquer ínfimas empatias que um dia cultivaram, pois, que ninguém me dava informação alguma. Localizei-me por instinto e graças à internet cuja velocidade era impressionante. Eu não consigo compreender como foi possível tamanha mudança em tão pouco tempo. Apenas não passa por minha mente a possibilidade de isso tudo ser real.

Caminhar pelas ruas da cidade está impossível; moradores de rua me olham com ódio, como se planejassem minha morte. Em áreas residenciais, os habitantes fitam meu caminhar, das janelas de suas casas, fecham as cortinas ao notarem meu aproximar. É tudo hostil e, como está insuportável, decidi pedir para que o irmão de meu amigo me recebesse em sua casa pelo tempo de estadia preciso; éramos conhecidos, eu tinha seu telefone. Liguei com certo receio, mas deu tudo certo, ele aceitou sem hesitar. “Lembro-me de você” ele falou quando o telefonei. “Fez bem em me contactar”. Ele mora em New Castle.

Partilho de uma sutil boa intuição acerca da residência de Lewis, ele não parecia ultrajante tal como todos os indivíduos que encontrei até agora. Sinto-me feliz de ter mantido com ele uma amizade distante. Ele está a caminho para me buscar.

Dezembro, 15 de 2024 — De noite.

Importantes informações consegui até agora. Acabo de jantar, comemos uma comida bastante simples e deliciosa, nada da cultura local. Lewis comentou ter se apaixonado pela culinária brasileira, isso me trouxe bastante alívio, pude sentir-me em casa outra vez. A refeição era composta de maneira a mesclar, acredito, um pouco de ambas as nações; no entanto, e agora eu entendo o porquê, Lewis não escondia seu intenso desconforto e rancor para seu país.

Encontramo-nos perto do meio-dia, ele vestia uma máscara como nos tempos da Pandemia, então fui reconhecida por ele à espera no portão de desembarque. Evidentemente eu não o notei e fiquei um tanto confusa quando ele parou em minha frente. Até que o ouvi. Sua voz era clara e calma, como no telefone. Sorri com sua presença e senti seu corpo sobre o meu em um abraço quente. Surpreendi-me já neste começo, pois não esperava tamanho afeto. O próximo espanto aconteceu ao chegarmos no estacionamento, Lewis viera de moto e tive de despachar minhas malas de outra maneira, nada tão difícil quanto poderia ser se eu estivesse sozinha.

Foi confortável a viagem. O vento contra o corpo. Mal parecia que um nó em meu cerne embrulhava meu estômago com sensações diversas derivadas da aflição e do medo diante do cenário que eu havia presenciado até então. Fiz um grande esforço para descansar minha mente atormentada. Resultou, posso dizer, senti-me um pouco melhor.

Chegando em sua residência, eis minha terceira surpresa: tudo era tão antigo. Os móveis pareciam dos anos cinquenta, havia livros por toda a casa em dezenas de estantes. Na sala-de-estar, ao invés de uma televisão, quadros e tintas à óleo descansavam em um lugar especial, Lewis estava feliz ao me convidar a pintar com ele assim que eu estivesse mais descansada. Além de tudo, a luz que nos iluminava vinha de castiçais e outras aparelhagens antigas que utilizavam de fogo e óleo para gerar iluminação. Embora Lewis estivesse sendo bastante amável comigo, de modo que questioná-lo pudesse ser até mesmo imprudente, eu não poderia deixar de fazê-lo. Com o coração lhano, Lewis me relatou que desde o aprisionamento da entidade, ele percebeu o quanto o estava afetando o contato direto com a energia da criatura. 

“Eu sentia ódio. Um ódio estranho e silente. Era como ansiar pelo sepultamento de alguém, como querer enterrar com minhas mãos todos aqueles que me desagradavam. Ao mesmo tempo, eu era invadido por uma angústia profunda, vinculado a um medo sem precedentes e uma mágoa que me martirizava com a força de uma emoção descontrolada. As luzes de Arch — é como eles denominaram a tecnologia — emanam energia, por esta razão venderam milhões! Qualquer aparelho próximo a uma lâmpada de Arch carregava automaticamente; e se o dispositivo possuísse o Arch System, o carregamento era ainda mais veloz. Você deve imaginar, adicionei a lâmpada em todos os cômodos da casa, do teto às luminárias de cabeceira. Por isso comecei a enlouquecer.”

A decisão de Lewis foi tal, abandonar a tecnologia de Arch. Por isso vivia como um ermitão em terras futuristas onde as trevas fazem o papel da luz, por um alto valor — e eu não estou falando sobre dinheiro. “Estranho-me que as pessoas tenham se acostumado tão rápido com a ideia de uma entidade obscura aprisionada fornecendo uma energia de poder absurdo para todo o país” — desabafara. Lembro-me de sua feição, agora sem máscara, estar completamente confrangida. “Eu não sei, Liz, tenho a impressão de que estamos nos condenando a uma realidade perversa, ela está batendo à nossa porta com suas mãos ensanguentadas enquanto nós estamos prestes a deixá-la entrar”.

As palavras de Arch, de fato, oprimiram meu coração; ele parecia certo no que dizia, era a mesma sensação que me rondava desde que cheguei, aliás, desde que vi aquela criatura no primeiro vídeo divulgado na Internet. Não sei como afastar as sensações amedrontadoras. Isso tudo em um único dia! Sinto-me exausta! Talvez seja uma boa ideia adormecer e, quem sabe, sonhar com algo bom.

Sara Melissa de Azevedo

Diga-me, apreciaste esta obra? Conta-me nos comentários abaixo ou escreva-me, será fascinante poder saber mais detalhes da tua apreciação. Eu criei esta obra com profundo e inestimável amor, portanto, obrigada por valorizá-la com tua leitura atenta e inestimável. Meu nome é Sara Melissa de Azevedo. Sou Escritora, Poetisa e Sonurista. Formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial. Sou a Anfitriã dos projetos literários Castelo Drácula e Lasciven. Autora dos livros “Sete Abismos” e “Sonetos Múrmuros”. SAIBA MAIS

Anterior
Anterior

Mãos

Próximo
Próximo

"pó-pó-pó"