Uma história de Silent Hill (parte 1)
Risadas suaves, lástimas ocultas em prantos longínquos, soluços que desvaneciam sempre que eu me aproximava daquele parque. Ponderava com certa dificuldade, e como era espinhoso compreender, se minha sanidade estava se esvaindo ou se, de fato, havia algo oculto entre aqueles bucólicos brinquedos infantis. Às seis da manhã eu já estava na escola, dentre a névoa comum daquele horário, ou observava o parque, as árvores, os balanços e gangorras. Tudo ali me dava calafrios. Eu adentrava minha sala com os meus alunos e pelas janelas eu avistava o local que ficava num pequeno morro ao lado da escola que, embora fizesse parte dela, era um bosque preservado do município.
As crianças adoravam a oportunidade de visitar aquele local. Saltavam sobre os pneus, balançavam-se nas cordas e deslizavam pela ladeira com pedaços de papelão. Era uma fonte constante de entretenimento para esses pequenos seres inocentes. No entanto, para mim, era um lugar medonho. Sentia-me desconfortável durante os minutos inteiros em que passava lá com eles, sensações repulsivas e hediondas atingiam todos os meus sentidos. Claro, eu fazia o possível para esconder minha angústia das crianças, todavia, quão difícil! Era insuportável! Eu sentia dores de cabeça, vertigens e tremores porfiosos. Cheguei a considerar se tratar de trauma da minha infância, mas nada fazia sentido, pois não eram todos os bosques ou parques que me provocavam medo, era apenas aquele local específico.
Marízia, certa vez, pediu para desenhar durante nossa ida ao parque; era uma aluna nova e bem pequena, silenciosa, quase não se manifestava na sala de aula com os demais alunos. Surpreendi-me com seu desenho, pois, era de uma criatura horrífica, com sua boca aberta até o peito — por onde algo vermelho saída — e seus olhos eram como fumaça. Seu corpo humanoide estava em pé observando o balanço em que Sayori brincava — e ela estava no desenho, reconheci pelos cabelos lisos e soltos. Este fora meu estopim para eu ter a certeza de que aquele lugar era amaldiçoado. Indaguei Marízia sobre a criatura, evidente, não poderia deixar de fazê-lo, pois talvez alguma outra informação fosse útil para mim.
— Ele observa a gente… — ela sussurrou.
— Aqui no parquinho? — Indaguei. Ela afirmou com o sacudir suave de sua cabeça. — Quem é ele? — Eu sabia que a probabilidade de Marízia não dizer sequer uma palavra que me levasse à compreensão, era imensa. No entanto, o martírio que me acometia diariamente perante o singelo fitar daqueles brinquedos e de todo o arvoredo daquele lugar, precisava ser investigado a fundo. Pela primeira vez, eu tinha alguém, além de mim, pressentindo horrores similares; isso me deu forças, eu não estava louca! E sim, ninguém creria em uma criança, no entanto, eu sei muito bem de seus poderes sensitivos.
— Ele matou alguém — ela falou de súbito, ascendendo meu coração a uma ansiedade gigantesca. — Posso desenhar a escola, professora? — Perguntou em seguida e eu apenas em choque.
Lembro-me que não consegui dormir naquela noite; a imagem do desenho assombrava minha mente. Temia pelas crianças, o risco que elas corriam naquele lugar obscuro, embora, da mesma forma, eu tendia à conclusão de que a criatura se tratava de um espírito, quem sabe um espírito de alguém que morrera ali há muitos anos. E sei que existia uma pequena parcela de chances de aquilo não ser perigoso, apesar de sua aparência tétrica.
Eu estava aflita e tamanha era a minha tensão que pude sentir minha garganta se fechando pouco a pouco e cada segundo mais. Por causa dessa amargura abismal, decidi agir guiada pelo medo, o que hoje sei que foi uma verdadeira insanidade. O profundo temor de algo horrendo acontecer, principalmente com Marízia que era capaz de enxergá-lo, foi minha principal motivação. Era possível aquela aparição fazer algo ruim contra a menina? Eram tantas perguntas…
Naquela noite, fui à escola. Consegui persuadir a diretora de que precisava recuperar algo que havia esquecido. Expliquei que se tratava de medicamentos em uma pequena bolsa, além dos meus documentos do plano de saúde, que eu precisaria na manhã seguinte, sábado. Infelizmente, Angela estava em viagem. No entanto, orientou-me até sua casa e comunicou-me que sua mãe estaria no portão para me entregar as chaves da escola. Através de uma chamada de voz, ela instruiu-me passo a passo sobre como desativar os alarmes.
O ambiente era asfixiante. Assim que abri os portões de trás, um odor pungente de enxofre permeou o ar ao meu redor. No pátio secundário, uma peculiar e rubra aura envolvia o ambiente, como se uma luz escarlate incidisse sobre os contornos do edifício. Estremeci ante um medo insondável, no entanto, lá estava eu, sem possibilidade de recuo, pois, ainda que retornasse para casa, a inquietação me sorria em sua essência perpétua.
Avancei cautelosamente até que a estrutura da cobertura do pátio secundário não bloqueasse mais a minha visão do bosque. Em seguida, pelo pátio principal, emergiu ao meu campo de visão o parque. A escuridão era a força dominante. As folhas das árvores permaneciam estáticas, sem o menor indício de movimento; a ausência de uma simples brisa era completa, assim como a de qualquer ruído. Por isso tudo parecia estranho demais. Não consegui determinar a origem da luz carmim.
Retrocedi, no entanto, dado que o odor de ferrugem fora um baque perturbador à minha mente quando ousei abrir, na mesma lentidão, o portão do pátio principal. Atordoada, tive de respirar de modo controlado para ser capaz de andar de novo; quando consegui, fui à sala da diretoria e abri-a em alerta, como se algo à espreita esperasse o baixar de minha guarda para consumir minha alma em um mísero segundo de tormenta eterna. Meu alívio, no entanto, tinha um peculiar sabor de esperança. Dentro da sala de Agnes, a diretora, eu sentia segurança.
Embora pequena, a sala possuía vários arquivos em armários, portanto, rapidamente fui guiada para eles mediante ideia febril de encontrar respostas consistentes. Eram registros das matrículas, nada de útil. Exceto pelo arquivo de Marízia que, diante das circunstâncias apresentadas até o momento, achei ser uma boa ideia saber um pouco mais sobre ela. Ao abrir a pasta, um papel semelhante àqueles de blocos de notas medianos, caiu no chão lívido e escorregou por ele alguns centímetros distantes de mim. Peguei-o abaixando-me. “Matrícula cancelada por óbito, 18 de março”.
Meus olhos lacrimejaram, pois, o susto não me permitia piscar. Meu cérebro raciocinava em uma velocidade perniciosa enquanto eu me afastava do papel, tomada por horror e pânico, buscando um apoio na cadeira frente à escrivaninha, eu me fundi ao medo mais instintivo conservado em meu DNA. Não era possível. Não podia ser possível. De que modo eu teria visto e dado aula por uma semana a uma criança morta? Isso… Até hoje, meu coração dispara. Por tudo o que me ocorrera eu sei que as sequelas jamais respirarão como singelas reminiscências do passado nostálgico. Não. São pesadelos lúcidos em minha mente, mesmo quando não durmo, pesadelos sombrios que me oprimem. Eu fiquei atônita por alguns minutos até decidir ir embora em um surto de ansiedade.
Nunca, ainda que imaginemos detalhadamente, somos capazes de prever nossas ações diante da mais grotesca situação. A porta estava trancada. Isso me levou a um desespero insano. Chave alguma conseguia destrancá-la enquanto estranhos ruídos vinham do corredor principal, onde a outra porta do escritório de Agnes residia. Esta, porém, me levaria para dentro da escola e eu pressentia ser o pior caminho a seguir naquele momento.
Por isso fiz o máximo possível para destruir aquela porta. Nada a abria. Sentei-me exausta no chão. Nada fazia sentido. Pensei em ligar para a polícia e para a diretora, mas o que eu diria? Tudo bem, eu estava trancada, era possível chamar os bombeiros, no entanto, havia outra saída. Uma que não tentei abrir, pois, levava às salas internas da escola, mesmo sabendo que lá havia janelas de vidro, as quais eu poderia quebrar para escapar.
Na encruzilhada do que me parecia ser um passo para a morte, pela intuição gritante que eu cultivava, de alguma forma, dentro de mim; aproximei-me da porta que levava ao corredor e sem pensar — pois se fizesse, desistiria — atravessei-a. Lá estava tudo muito escuro, no entanto, a luz escarlate que incidia advindo de lugar nenhum, estava iluminando a silhueta e parte do rosto de uma pequena boneca no fim do corredor. A boneca era estranhamente semelhante à Marízia. Não compreendi, à princípio, o que aquilo estava fazendo na escola. Demorei a assimilar a cena, pois o meu medo estava perturbando os meus sentidos e meus tremores impediam quaisquer ações lúcidas e confiantes. Caminhei devagar até o brinquedo, era idêntico à Marízia.
Uma aguda dor de cabeça e um zumbido hórrido hibernaram minha mente em caos e aflição assim que tentei pegar o objeto. Ajoelhei ao chão com as mãos em minha cabeça enquanto, em meio aos zumbidos, as vozes malignas emergiram. Eram centenas de milhares de vozes infantis. Eu não conseguia discerni-las. Vedei, impetuosa, minhas pálpebras para perscrutar sinais, ainda que efêmeros, de alívio. Ao ser capaz de abrir outra vez os meus olhos lacrimejantes, quando a dor em si mesma vertia devagar para fora de meu cérebro, eu não estava mais na escola. Ou talvez eu estivesse, mas era outra, estranhamente diferente, onde as paredes deterioradas estavam sujas de sangue e mofo.
Desvelei-me à vida n’um entardecer carmim com o ascender da Lua Cheia Sangrenta;…
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