Sempre a mesma abominável cena. Sangue vívido escorria nos vitrais da Catedral da Sé conforme o som terrífico de órgão de tubos ressoava por todo o templo estranhamente escurecido. Atônita eu fitava os umbrais do edifício sagrado em busca de um escape fugaz, pois que a sensação de putrefação mórbida era quase tangível, tamanho o seu poder. Impulsionei meu corpo para fugir quando a criatura sombria se ergueu no altar, no entanto, eu não conseguia me mover.

A criatura era como um alce bípede, tinha olhos vazios e uma expressão de tristura em seu semblante. Envolto a um fogo negro ela se aproximava de mim. Voz alguma fremia minhas cordas vocais; movimento algum libertava-me daquele banco de madeira: minha reza só aumentava os fervores da morte até que, no susto e em espasmos violentos, despertei. Eu estava na cama e tudo doía. Meu corpo parecia ter sido esmagado. E esse é o fim do pesadelo. Acontecia com uma razoável frequência e era sempre igual.

— Creio que você esteja vivenciando uma paralisia do sono. Isso acontece quando há um descompasso entre seu cérebro e seu corpo. Não há questões obscuras com as quais a senhora precise e preocupar — respondera-me o Psiquiatra, o primeiro que busquei ajuda após um mês de tortura. Indaguei-o logo sobre os pesadelos, pois me era impactante tais imagens horríficas. Não se tratava apenas da incapacidade do meu corpo de se movimentar em detrimento de uma “falha de comunicação”; aquele demônio era real, triste em sua feição, vindo em minha direção sob chamas negras… era profundamente angustiante.

— Sonhos são a comunicação da sua consciência com o seu inconsciente. A repetição destas imagens durante o sono resulta de um estresse particular, uma situação também contínua que tem perturbado o seu sistema nervoso — ele explicou.

Havia nada de estranho ali, até que o doutor disse saber como resolver todos os meus problemas oníricos e, então, às suas mãos, uma seringa e, em seus olhos, o mesmo fogo negro que a criatura da Catedral possuía em seu entorno. Imediatamente, sob o pânico mais brusco, impulsionei-me para fugir, mas, para minha surpresa, eu não era capaz de mover um músculo de meu corpo aflito. Todo o meu esforço era em vão. O sonho não havia acabado.

Enganava-me meu cérebro com a maestria de seu poder ilusório e o psiquiatra se aproximava com a lentidão de anos luz. Terror inenarrável era o que de pior havia em mim, os olhos de chamas negras, como se feitas de abismo, agoiravam a dúvida sobre ser ou não apenas um sonho; e se era um, em qual momento eu acordaria? A agulha posicionada em meu pescoço, senti-a perfurar, pouco a pouco, minha pele e meus músculos, atravessando minha garganta. A dor era tanta... tão verdadeira... o sangue era meu, e um líquido viscoso e gélido foi injetado dentro em mim.

Despertei, desta vez, tossindo, engasgada. Eu estava sozinha em meu quarto e era tarde da noite. Em meu celular uma mensagem do Psiquiatra pedia a confirmação de nosso encontro no dia seguinte. Mesmo hesitante, confirmei, pois, comecei a cogitar estar sofrendo de algum grave transtorno, uma vez que tive, em minha família, cinco casos de insanidade.

Não consegui dormir até a hora do nosso encontro, para ter certeza de que tudo era real. Em razão de minhas escolhas, eu estava com sono profundo e olheiras enormes quando encontrei o doutor. Ele preocupou-se muito com meu estado, prescreveu incontáveis exames e, também, indicou que a terapia se iniciasse na semana seguinte.

— Os distúrbios do sono são perigosos — ele afirmou — Não podemos subestimá-los — disse. Olhando ao redor do escritório enquanto o doutor verificava sua agenda, ponderei sobre os riscos mencionados e toda a carga cansativa que eu estava carregando. Então, algo peculiar veio à minha visão. Todas as capas dos livros da estante estavam com letras deformadas; o tapete não possuía textura e a xícara sobre a pequena mesinha de centro estava deformada; aquilo só podia ser um sonho.

Afastei-me num único movimento, a cadeira qual eu me sentava caiu junto comigo, fui rastejando à porta de saída. Rogando por calma, o doutor ligava para os seguranças. Tão logo, seus movimentos seguintes o levaram até mim, segurou-me antes da porta se abrir de modo a impedir minha evasão. Fitando-me com atenção, o doutor disse: “Está tudo bem, isso não é um sonho”.

Observei no homem duas retinas límpidas, não havia a chama negra. Obtive um pequeno gole de serenidade. Todavia, quaisquer branduras morreram com a chegada dos seguranças. Eram dois homens enormes, com sangue em seus olhos e um sorriso perturbador em seus rostos. Eu não pude mais me movimentar. Paralisia.

Cada parte do escritório escureceu como se lá fora uma tempestade nascesse em ódio e fúria. Escuridão quase perpétua. Contemplei naquele instante, tão somente, pontos longínquos de uma luz inestimável. Símil ao universo. Sons do silêncio gritavam sobre o meu completo isolamento. Quando as luzes acenderam outra vez, era como o abrir de meus olhos. Eu estava na Catedral da Sé. Um sussurro do inferno predizia: “Você não vai acordar”.

Sara Melissa de Azevedo

Diga-me, apreciaste esta obra? Conta-me nos comentários abaixo ou escreva-me, será fascinante poder saber mais detalhes da tua apreciação. Eu criei esta obra com profundo e inestimável amor, portanto, obrigada por valorizá-la com tua leitura atenta e inestimável. Meu nome é Sara Melissa de Azevedo. Sou Escritora, Poetisa e Sonurista. Formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial. Sou a Anfitriã dos projetos literários Castelo Drácula e Lasciven. Autora dos livros “Sete Abismos” e “Sonetos Múrmuros”. SAIBA MAIS

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