À Meia-noite
Quão doce era o som da caixa de música de Anieni. Uma singela escultura de uma borboleta no centro daquele pequeno objeto inundava a alma da criança em um profundo encantamento. Antes de deitar-se para adormecer e sonhar, Anieni acionava a minúscula manivela várias vezes e, assim, o cilindro de pinos voluteava lentamente. O som durava por uma hora. A menina, contudo, estava com uma estranha insônia naquela noite, o que a fez reativar a caixa de música mais duas vezes até que conseguisse, enfim, dormir.
Despertara, que infortúnio, à meia-noite com o som alarmante causado pelo soprar vertiginoso do vento que predizia a primavera. O fascínio da sonância de sua caixinha acabara de falecer. Sua porta abriu-se com grande furor e um susto repentino a impediu de assimilar o que acontecia. No mesmíssimo instante, seu gatinho preto pulou sobre a caixa de brinquedos, assustado e com seus grandes olhos vermelhos esbugalhados, ele fitava o corredor cuja corrente frígida perpassava. Anieni sentiu seu miúdo coração palpitar frenético e, pouco depois, exíguos segundos, ela notou que Oreo, o bichano de belos umbrosos como a noite, estava ainda com a visão cravada no corredor, mesmo tendo a álgida ventania minimizado.
— O que foi isso? - Indagou a pequena criança que, levantando-se de seu leito, aproximou-se de seu felídeo. Anieni viu que Oreo estava mais do que inquieto, sua perturbação era intensa! Seus pelos negros estavam arrepiados e seu rabo longo estava ereto como uma antena. Oreo não piscava. Anieni olhou para fora de seu quarto, assim que percebeu tamanha agonia em seu melhor amigo. Seus olhinhos de amêndoa fitaram uma bizarra névoa agourenta e pálida por todo o corredor. Imediatamente Anieni se arrepiou, temeu o que não sabia compreender, engoliu sua saliva que, naquele instante, parecia uma pedra descendo em sua garganta.
Oreo começou a vocalizar os típicos sons que os gatos fazem quando um inimigo está por perto. Isso porque Anieni decidiu investigar o corredor. Caminhando como uma fadinha cujas asas foram cortadas, Anieni olhou para fora do quarto, de modo que pôde ver todo o corredor. Súbita e afoita, voltou a escorar-se na porta aberta assim que espreitara o ambiente enevoado, pois, um rastro de sangue vívido se alastrava mais à frente e uma sombra humanoide com olhos vítreos estava estática perto da escada que levava ao andar de baixo. A respiração de Anieni superestimulava seus pulmões e tamanho era o seu medo que, rapidamente, começou a temer todo o seu corpo. Não soube o que pensar naquele instante. A porta do quarto de seus pais era logo à frente de seu quarto, mas, estava fechada. Anieni teria que atravessar o corredor e tentar abri-la. Mas, poderia estar trancada. O que faria se estivesse trancada?
Seu relógio de cabeça de urso marcava meia-noite e treze minutos. Anieni decidiu pegar sua boneca mais pesada e jogá-la na porta à frente, mas, ao fazê-lo, o objeto era tão custoso de segurar e ainda mais de impulsionar que fez com que seu pezinho esquerdo, pelo movimento, saísse para o corredor e seus olhinhos fitassem, novamente, a criatura mórbida e o sangue. Pobre Anieni. A coisa em seu corredor agora sorria, macabro, sutilmente mais perto da pequena garota; ele estava abaixado e com sua cabeça retorcida. Trêmula, mal pôde concluir seu plano. Voltou correndo para sua cama enquanto Oreo pulava em sua direção. Ambos agora olhavam, sem um mínimo fechar de pálpebras, para o amaldiçoado corredor.
Não demorou para que mãos pavorosamente finas e cumpridas envolvessem o umbral da porta e olhos vítreos horrendos surgissem a espreitar Anieni e Oreo. O coração de ambos parecia abandonar o peito que se comprimia a cada instante. Sufocados pelo horror mais vívido e sem saída, Anieni gritou o mais alto que pôde e cerrou seus olhos, fechou-os com toda a sua força enquanto abraçava Oreo com firmeza e carinho. Oreo, por sua vez, apenas se esgueirou para o abraço que o levava para debaixo das cobertas. Ele temia tanto quanto a menina.
— O que foi, Ani? — A voz era a de sua mãe que abriraa portado quarto em que dormia com seu esposo e caminhara afoita ao quarto da filha. Anieni sentiu um alívio estonteante; correu para abraçar sua mãe enquanto seus olhos de amêndoa cachoeiravam sem hesitar. — Ô, meu amor, o que houve? Teve um pesadelo? — Indagou a mãe de Anieni, com afagos gentis. — Eu disse que não era uma boa ideia fazermos a festinha de sexta-feira treze — relembrou a mãe.
Anieni, então, abriu seus olhos que agora mais pareciam oceanos do que amêndoas, e olhou novamente para a porta buscando o conforto de não haver mais nenhuma criatura horrenda. Infelizmente, o que ela viu estampou em sua fronte a expressão do pavor mais intrínseco e hediondo. A criatura do sorriso mórbido puxava pelo corredor o corpo de seu pai morto e ensanguentado, silenciosamente.