Mórbido Azul
Não há horizonte na profundez do oceano. A escuridão é a única por detrás das falsas clareiras que, feitas pela luz solar, ultrapassam as águas primevas, mas não se expandem o suficiente para alcançar as entranhas da infinitude das águas. A superfície transforma-se em um pequeno ponto de luz bem distante quando nos afundamos. No abismo marino os assobios são como um inferno estranhamente silencioso, ouvimos cada pequeno movimento nas águas vívidas, sob a cinesia de si mesmas, elas vão e vem, te sorvem e guiam seu corpo desesperado para suas fendas perigosas.
Poucos acreditam em meu relato, reconheço a extravagância de sua veracidade; a natureza possui uma complexidade inominável e, em partes, indecifrável para os seres humanos, pois, no passado tão longínquo, éramos estúpidos demais para investigá-la e, agora, somos inteligentes demais para compreendê-la. Devo residir no centro desta divisão inconsciente, dado que às vésperas do ano de dois mil e vinte e quatro, pouco antes da ascensão dos fogos de artifícios, reconheci um chamado terrífico vindo daquelas águas salgadas, uma invocação mórbida direcionada exclusivamente a mim.
Eu não havia tomado um gole sequer de bebidas alcoólicas naquela noite; eu não fumava, sequer ingeria açúcares; eu não me submetia a instantes de sedentarismo em nenhum dia da minha semana, mesmo naquela viagem para Eleuthera, eu ainda mantinha minha saúde intacta, portanto nenhuma desculpa científica encontraria temperamentos e condutas que tenderiam a me diagnosticar com algum transtorno mental. Eu nunca estive tão bem como naquele ano, esta era a razão pela qual eu estava nas Bahamas, pronta para a contagem regressiva. Comemorar a vida e aplaudir o novo ano era meu único intuito. Contudo, às vinte e três e cinquenta e cinco do dia trinta de dezembro de dois mil e vinte e três, eu ouvi o silente chamado lôbrego do oceano.
Um mórbido convite. Um som taciturno calou todo o alarde daqueles que, como eu, pisavam descalços nas areias úmidas, todavia, apenas eu paralisei. Todos ali, não eram muitos, conversavam e se distraíam, não notaram meu rosto atônico e meu olhar fixo para o outro lado da ilha. O Mar do Caribe tornou-se uma piscina diante da imensidão que cobriu meus olhos arregalados. Um sonido fantasmagórico advinha do Oceano Atlântico, sua sinistra escuridão proferia meu nome através de uma melodia aterradora. Era como um sigilo, uma tétrica promessa cuja premissa se desvelava na imersão. “Mergulhe”, ele dizia, sem palavra alguma. Senti com uma convicção amarga que o oceano era meu único destino, fui tomada por essa certeza que corria em minhas veias como sangue. Um átimo de segundo de éons de duração. Eu soube o verdadeiro nome daquele pélago e meus pés preparavam-se para correr, sem que nenhum outro medo se apoderasse de mim além do temor por não obedecer à imensidão azul… Diego, contudo, interrompera meu transe, notara minha condição e, em detrimento disso, voltamos para o Resort.
Da singela janela inglesa, por boa parte da madrugada pálida, passei observando os movimentos dele. Era uma hipnose, um encanto vinculado a um terror absurdo. Questionamentos emergiam cada vez mais. Quantos mistérios adormecem no insondável? Era-me primordial saber. A gana desta necessidade tinha um insólito furor. Enquanto Diego dormia, deixei o Resort. O alvor despontava tímido. Com o carro alugado, direcionei-me à Glass Window Bridge onde, com evidência magnânima, a grandiosidade do pélago se estende no horizonte. Foi então que minha mente se aquietou e uma serenidade beijou meu espírito desolado. Pulei em direção às regélidas águas. Um fascínio. Uma admiração inenarrável. Fui abraçada por seu poder anômalo e vi afastar-se a luz sutil da superfície.
Assim, na súbita insanidade, despertei. Dei-me conta de tudo o que havia ocorrido, do encantamento macabro, do chamado sinistro; olhei para a escuridão que circundava-me, as trevas da sua profundidade inconcebível. Tudo índigo. Um medo doentio emergiu em minha alma, sob o desespero comecei a nadar para a luz da aurora que já sorria grandiosamente nos céus. Era em vão. O abismo oceânico distendia-se, afastava-me da superfície, extraía minhas forças ao passo que meu fôlego aprisionado chegava ao limite. Fui conduzida um pavor ainda mais violento, debatia-me na água, eu a sentia adentrar minhas narinas, afogar minha garganta, atulhar meus pulmões. O sal invadiu minha língua, o gosto era amargo e lúgubre. Em determinado momento, embora eu lutasse com afinco, compreendi que a desistência era a mais plácida das decisões. Até que o medo se transfigurou em horror extremo, eu ouvi o timbre grave e mórbido das águas malignas outra vez, narravam os versos da morte e da glória e o poder “d’aquele que vive no abismo anil” cuja “hora do despertar se aproxima”. Um grito do inferno se alastrou nas águas cruéis, vindo da criatura que eu sequer compreendia, mas algum tipo de compreensão me atormentava de modo infrene e hediondo. Meu horror febril, ou a morte eminente, desativou meus sentidos e, por fim, minha visão se extinguiu.
Se redijo é porque sobrevivi. Creio ter sido levada pelo oceano para fora de seu domínio com o intuito de possuir a verdade em mim, talvez repassá-la ao mundo; todavia, sofrendo de imensa fobia, amordaçada por pesadelos contínuos com aquela criatura incompreensível nas águas mórbidas; sendo vítima de seus sonidos sinistros, tudo o que sou capaz de fazer é escrever este relato e suportar o diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático enquanto, no meu âmago, estou me corroendo dia após dia sob a hipótese de estar viva quando aquele demônio despertar de seu agônico sono e evadir daquelas terríveis profundezas.