Noite Crepuscular
Um pélago para esta vil desolação despertada pelos pesadelos de um subconsciente sadomasoquista. A infância rastejando sua carne sangrenta e asquerosa, apodrecida. Olhos do mal, voz repugnante, amor eterno. E a minha solidão. Símbolos estes que guiam até a morte eterna os meus pensamentos autodestrutivos. É símil às sombras das árvores envergadas no desespero tétrico de uma tempestade devastadora. Algumas não suportam. Algumas caem mortas no asfalto. Eis a natureza impiedosa.
Ela dançava nas pontas de seus pés nojentos as músicas sintetizadas por sua voz estridente, enquanto seus lábios secos descascavam como a pele de uma cobra e sua alegria enervava meu ódio taciturno. Os cabelos finos, negros, soltos à ventania, evidenciando sua desprezível docilidade, a cara explícita em ossos sobressalentes e tez fina. A maldita mancha no olho esquerdo. Reconheço a mudança de quando admirei as suas aquisições espirituais enquanto eu estava corrompido pelo isolamento de meu cerne. Afastado do mundo no âmago da minha essência.
Não demorei, no entanto, a desejar a paz eterna daquela que muito amo. Assim planejei cuidadosamente as melhores e mais amáveis condições mortíferas para conduzi-la de modo sereno pelo Estige guiado por aquele que, como eu, prefere o silêncio. O corpo dançante, o sorriso extenso e as mentiras lívidas que envolviam a energia de seu corpo esguio à totalidade da sua personalidade insuportável se deitariam, por fim, no leito dos vermes. Encontrariam no além-vida os ensinamentos mais valiosos sobre humildade.
Por infortúnio, e eis um verídico paradoxo, Nara sofrera um acidente na mesma noite em que sua apresentação no Cisne Negro estava programada; a mesma noite qual combináramos um encontro a fim de comemorar o seu sucesso como artista e, então, levando-a para casa, o sofrimento de sua existência alimentaria minha alma condenada ao inferno. Todavia, os planos foram os primeiros a morrer quando a ligação viera às treze.
Como chovia naquela tarde fria... um bom clima para amordaçar aquela estúpida e retirar aquelas peles mórbidas da sua boca enquanto amputo seus pés horrendos. Tarde demais. Nara morreu por causa de um acidente de trânsito. Eu deveria estar feliz, mas como poderia? Toda a diversão me foi extraída de modo amargo e impiedoso. Foi desolador vê-la naquele caixão. Com seu corpo galgaz inchado e cinza. Nenhum movimento arfante em seu peito. Como almejei tê-la enforcado, lentamente antes daquela tragédia tão pungente.
A partir daquele ponto, nada mais tinha valor. Eu estava arrasado e retornei ao meu apartamento ciente de que, a partir daquele momento, eu não teria mais paz enquanto não fizesse algo com aquele corpo maldito. Talvez sua alma sentisse, de alguma forma, a dor exposta ao seu cadáver caso eu pudesse roubá-lo. Não era tarefa fácil, era, na verdade, mais impossível do que possível. Não estávamos numa cidade pequena, eu seria pego antes de rasgar as bochechas da minha amada.
Enquanto, suando em ardores pela dolorosa conversa intrínseca, a noite se aproximava célere, as cores misturavam-se no horizonte e as luzes da cidade incidiam como de costume. Fui abençoado com a graciosa ideia de ir ao lar de Nara para vasculhar suas coisas. Almejava encontrar quaisquer indícios de que meu horror ascenderia a uma pequena salvação; poder oprimir minha profunda melancolia outra vez e ter minha vida de volta.
Cheguei ao corredor em trinta minutos, atravessando a cidade naquela noite crepuscular, encontrei um homem velho, de olhos fundos, carregando alguns sacos de lixo para fora do apartamento de Nara. Ao ver-me, imediatamente deixou os sacos no chão. Estendeu-me sua mão e dissera-me que havia fotos minhas no quarto de Nara, então ele me reconheceu. Tecemos umas palavras e o convenci, não foi preciso muito, a entrar ali, como uma última despedida.
Todos os móveis lembravam-me dela; senti minha garganta fechar — a veemência da saudade era a navalha fincada no meu olho, a mesma navalha que eu usaria para raspar a pele da única mulher que amei. Acessei seu quarto e, de fato, inúmeras fotos minhas espalhadas pelas paredes. A obsessiva artista manifestava-se com surpresa à minha percepção. Continuei vasculhando, sem pressa. Até encontrar um diário.
Folheei os escritos, estava tudo lá, desde que nos conhecemos, não fazia tanto tempo. Havia várias anotações sobre nós, sobre meus gostos e medos. Uma das frases que li, a primeira a me chamar a atenção, revelou-me o que eu pressentia desde o início: “Math tem olhos azuis, fascinantes, eu sempre os amei, são oceanos pútridos e eu espero arrancá-los em breve; quero mantê-los em meus potes de ácido conservante para que pela eternidade olhem para mim, assim me lembrarei do quanto o amo”.
Sorri. Ela era mesmo a mulher da minha vida.
Desvelei-me à vida n’um entardecer carmim com o ascender da Lua Cheia Sangrenta;…
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