Manuscrito de Miriã
Tórrida tarde, símil ao que dizem haver no calvário. Sinto-me torpe, há oscilações no horizonte deformando tudo o que vejo. Túmida de engulho, abaixo meu rosto tutelado pelo alvo véu de renda. Há ninguém por perto, pois, não ousariam abandonar seus lares diante tamanha febre do firmamento. No entanto, a este horário, sob chuvas ou sóis extravagantes, sempre hei de caminhar à capela. Sempre. Achego-me à sua grandessíssima porta esculpida em sulcos cujas formas idealizam os mais puros arcanjos. Adentro a igreja do Santíssimo. Há ninguém.
Meus passos são morosos, porque ainda sofro dos delíquios advindos dos ares cálidos. Ajoelho, contudo, logo aos degraus frente à imagem d’Ele. Rogo-lhe o esfriamento preciso para que eu não me deixe abater na enfermidade. Rogo-lhe que acalme o furor do sol que lhe pertence, que é a sua criação para apartar o abismo da escuridão. De súbito e antes que eu compreenda, esfrio-me; olho para a paisagem além dos vitrais, mas ainda não é a hora do entardecer. Sinto-me confusa e chamo pelo adorável Padre Norton. Há ninguém. Levanto-me preocupada, pois que o álgido milagre me perturba os sentidos e, embora eu cultive em minh’alma imensurável fé, compreendo que as manifestações do divino nunca são imediatas e explícitas de tal forma.
Intuitivamente, sinto que não há mais solidão. “Quem és tu? Em nome do Criador!” — indago, tendo a voz ecoado por todo o âmbito. Minha tez encrespa debaixo de minhas vestes. Seguro, convicta, o livro da vida, contudo, antes de abri-lo, próximo à porta ornamental, surge uma criatura cujo corpo assemelhava-se a de um homem, mas seus olhos eram pálidos como a morte e seu rosto tinha a magreza de uma caveira. A visão perturbadora desorienta-me e, mesmo estática, tive o bambear de minhas pernas suficientemente árduos para que eu caísse sentada sobre o primeiro degrau que levava ao púlpito. “Deus… meu Deus… Ajuda-me!” — murmuro, então, sob um suor emergido pelo pavor. O homem está imóvel.
— Vês o teu deus aqui? — A voz da criatura é grave, como a noite mais negra, e o tom com o qual profere suas palavras é o mesmo tom do oceano sob a tempestade enraivecida. Lamurio instintiva; amedronto-me e atraio-me à criatura sombria; sinto-me impotente… Sinto que, de fato, não há deus algum para me salvar dos horrores do demônio encarnado em névoa e ossos.
— Teus olhos amedrontados respondem minha indagação. — Célere como as sombras, pálido como a luz; o monstro está em minha frente, segurando meu corpo caído, sinto sua respiração maligna enquanto as lágrimas escapam de minhas retinas com a facilidade com que escaparia dos olhos de um bebê. — A tua devoção é admirável… — ele sussurra com a perversidade que lhe é própria, suas feições condenam-lhe nessa verdade. Ele toca-me no rosto, eu estou em absoluto temor. — Quão trágico que ela seja doada a um deus inadimplente…
O demônio levanta-se, pois decerto que é um demônio, seus olhos infinitos de luz macabra adentram minhas retinas como duas agulhas; volto a lamuriar e lacrimejar. — Se estiver exausta de rezar em vão, invoca-me que virei. — Com estranha serenidade, ouço-o e olho-o com menos angústia, menos medo; há algo em sua existência que me intriga, principalmente agora em que sua voz de abismo se atenuou como a escuridão precisa ao descanso noturno. Ele sorri como um homem, embora ainda se manifeste como uma criatura dantesca. Levanto-me devagar, apoiando na crepidoma, em busca de qualquer colunata para meu suporte. Àquela altura, a criatura já caminhava lentamente para fora do templo e eu a olhava de costas. Impulsão promíscua, blasfêmica, horrenda… eu não sei, mas iniciei a frase direcionada àquele ente, entretanto, antes que eu lhe pudesse dizer quaisquer pequenos sons que pressagiassem futuras sílabas, fui por ele interrompida.
— Alastor. — Respondeu-me sem que a pergunta despontasse em minha lucidez sob a égide de minha razão. O demônio conhecia meu espírito, bem como todos os meus anelos. Foi, entretanto, no átimo de segundo subsequente, que a criatura se desvaneceu como sua névoa e ao meu lado, cerca de dois metros de distância, a porta que levava à sacristia foi aberta. Padre Norton viu-me e assustou-se.
— Que fazes aqui, Miriã? — Indaga ríspido — Digo, quão perigoso defrontar esta canícula. — O padre se aproxima olhando ao redor. — Mas reconheço e, os céus também, a tua lealdade, minha filha. — Ele hesita — O que te afliges? Diga, o que viste? — Sinto-me acuada, balbucio palavras desconexas em razão do ainda tão hodierno encontro predecessor àquele. Padre Norton parece enfurecer-se. — Diga o que tu viste, Miriã! Agora! — Tremi, contristei-me, minha garganta pareceu fechar-se de súbito e minha respiração se ofegou. — Não conte o que viste a ninguém, entendeu? Os encargos de um sacerdote não estão pérvios ao veredicto dos fiéis, muito menos de uma mulher. — Confusa, tornei a lacrimar sem controle de minhas tão agoniantes emoções — Eles tinham que morrer, Deus sabe o que faz, Miriã.
O cume do frio absoluto de Alastor adentra o sacro ambiente como um sopro violento à porta da sacristia; tal súbito evento assusta-nos no imediato instante em que a porta é aberta e, com o impacto, quebra-se. Olhamos, eu e Padre Norton, à entrada da sacristia e, Santo Deus, há uma mulher ensanguentada no centro do cômodo, caída, mirrada, com seu ventre aberto. A cena me terrifica de tal maneira que estrondeio meu pânico com uma amargurada ojeriza e meu grito ecoa com força inenarrável. O Padre está esquálido como um cadáver e sua pele desbotou ao cinza crômio sob aspecto nevado. N’uma possessão mórbida, sou atacada por ele, suas mãos frias se envolvem em meu pescoço e seus olhos esbugalhados fervem enlouquecido. — Maldita mulher! Cale essa boca! — Norton profere num murmuro diabólico.
— Mais uma morte, Padre. — Ouço. É ele. Norton fica ainda mais níveo, solta meu pescoço, eu tombo com o impacto e olho para Alastor.
— Profano! Os desígnios de Deus não podem ser contestados. — Argumenta o Padre, esticando sua cruz em ouro límpido. Alastor sorri. Uma névoa outra vez me abriga, mas não temo; tudo se torna uma imensa nuvem etérea. De repente de esvai. Há uma serenidade absurda em meu coração. Mas, não para o Padre que está de joelhos olhando para cima, terrificado como um cão. A mulher ensanguentada desapareceu, bem como todo o rastro de sangue. Levanto-me devagar, caminho até Norton. Há um brilho vítreo em seus olhos. Ele murmura, quase inaudível: “O sofrimento é meu destino, a dor é minha eternidade, o esquecimento é meu fardo, a perseguição é minha loucura”. Incontáveis vezes, palavras repetidas no por seus trêmulos lábios. Até que seu corpo desaba. Ele desmaia. Corro para sacristia em busca de algum pano, encontro-o e umedeço-o na pia baptismal. Ponho sobre a fronte do Padre. Lentamente, os olhos azuis do homem moribundo à minha frente abrem-se.
— Minha filha… O que… O que houve? — Ele pergunta com a voz fraca. — Desmaiaste, Padre. — Respondo-o incrédula em sua indagação. Ele se levanta. — Agradeço-te, minha filha. Que Deus abençoe toda a tua bondade. Acredito necessitar tão somente de um bom descanso. — Norton vai para a sacristia e eu volto, estupefata, para meu lar.
A dúvida de meus próprios sentidos corroeu-me até o anoitecer. A penumbra colidia com meus próprios medos. Lembro-me de Alastor e sei, de alguma estanha forma, que ele amaldiçoara o Padre pela morte, ó, Deus a tenha, da pobre mulher. Que desatino é este, sei bem do falecimento da irmã desconhecida, reconheço no meu ser que Norton fora responsável por isso, todavia, não sou capaz de lembrar das cenas quais confirmariam esta imunda e obscura verdade. Lembro-me de Alastor, sua face cadavérica, seu riso ameno. A perversidade de seu caráter… vingativo? Antes que eu me dê conta da invocação de meu coração leviano, a silhueta do ente se apresenta aos meus umbrais. Meu coração salta n’um precipício irracional. Cubro-me com meus lençóis à proteção de meu corpo.
— Tu’alma invoca-me mais lampeira que teus rosados lábios. — A voz dele é grave e melódica. — Aplaquei tua aflição, mas não lhe privei da verdade. — Explica-me enquanto se aproxima na lentidão do desflorar d’um botão. Uma chuva nasce lá fora, ouço os trovões ao horizonte. Não há medo. — A justiça é a calamidade da razão dos homens. — Afirma. — Os loucos todos sofrem da calamidade? — Não. — Alastor senta-se à beira de meu leito, sinto-me quente. — A calamidade da razão não é o mesmo que insanidade. Os loucos são apenas loucos. O anátema da justiça define a graveza da calamidade. — Elucida-me e eu, no enigma de mim mesma, compreendo. — Seja minha, Miriã.— Fico atônita. Sei que meus olhos se abrem abalados com o que meus ouvidos ouvem. Há seriedade no rosto cadavérico do demônio. — Não me machuque… — Pronuncio em função de meu alarde, do descontrole de minhas sensações e emotivas pulsações. — Esta tarefa não me pertence, os homens são os que a executam. — Alastor levanta-se com a pretensão de um adeus, hesito e toco-lhe o braço, ajoelhando-me sobre meu leito, afastando-me dos lençóis. Olhamo-nos. Seus olhos ainda são pálidos, sua aura ainda é terrífica, no entanto, não o quero longe de mim. — Perdoa-me compará-lo com os homens… — sussurro. Alastor segura-me a cintura, aproxima-me de seu corpo tórrido, sinto-o rígido, firme e ardente. — Seja minha, Miriã. Dê-me um filho.
Seu toque em meus lábios ascende-me uma paixão que nunca senti. — Tens a bondade absoluta no teu peito, és o equilíbrio do meu fado. — Alastor deita-me sobre a cama e com tênue delicadeza acaricia meu corpo. Não tira seus olhos fúlgidos dos meus. Seus braços estão envolvendo meu corpo. Estou úmida e sinto-me verter. — Teu amor é puro, nossa linhagem será forte — Ouço-o de olhos fechados, pois os dele, igualmente, às trevas se deleitam para que os sentidos mais pujantes emerjam. Alastor encastra-se entre mim, sinto-o internar-se túrgido no âmago que me pertence, a dor esparge sutil, no entanto, o deleite é o cume de minha comoção, infindável deleite. Toda a cinesia daquele ente em minha vestal morada, toda a cinesia abarca um desconhecido rumo à minha realidade; e ele continua, no ritmo da perfeição, sem hesitar, proferindo meu nome em sua profana voz austera; no mais fundo. E, então, em meio às ondas de um oceano lascivo onde a embarcação jamais recusa o naufragar, um impetuoso raio, como nas chuvas que lá fora desaguam, toma meu ventre, alastra-se por todo o meu corpo, convulsiono sem parar, a sensação é feroz. Alastor permanece. Eu murmuro só para ele o enlevo sublime que há em mim no instante que o sinto fecundar-me. Nada nesta existência vivenciei, nada que àquele prazer se igualasse; os olhos brancos, lumes diabólicos, imersos pelo ápice venéreo. O meu ventre a receber suas progênies. De fato, ele não é um homem, e isso me acalenta.