Olhares
Era no primeiro alvor do mês de setembro, na cidade de Scranton, Pensilvânia, que acordei para inaugurar minha posição como novo geógrafo da prefeitura local, trabalho adquirido por meu sucesso no último concurso. Não era meu objetivo exercer minha profissão em uma cidade tão desconhecida, mas fiz a prova e aceitei por pressão de meus pais. Foi por meio deles, também, que aluguei um pequeno e velho apartamento longe do subúrbio da cidade, que poderia, a meu ver, proporcionar-me relativa paz. Exceto que, depois da primeira noite, não mais consegui sair de meu apartamento.
No primeiro dia do ocorrido, encontrei minha porta trancada por dezenas de cadeados de velho estilo, quais nem imaginava que poderiam reter a força de meus desesperados chutes para derrubá-la. Perdido, convenci-me que era vítima de uma pegadinha de meus vizinhos ou, mais provável, de meus pais; quando, porém, alcancei meu celular, assemelhava sem bateria ou quebrado. De fato, todos os meus aparelhos eletrônicos sofriam do mesmo efeito, e nenhum funcionava. Mesmo minha velha televisão, que tinha minha confiança e renome de inquebrantável, falhou. Com o telefone fixo não foi diferente, exceto que um azo me causou um profundo temor: quando percebi o fio do telefone cortado. Todo meu ceticismo ao sobrenatural foi quebrado quando me apressei à janela, e ninguém vi na cidade. Aquela cidade colorida de antes, semelhava, agora, uma ambiência cinza, mórbida, vazia de vida. Pensei que vagava numa dimensão erma e distorcida. Se minha paranoia fosse verdade, entretanto, por que me sentia observado?
No segundo dia de anseio, meu semblante estoico se foi junto com minha esperança de resgate. O silêncio era tão gritante que seu inerente zumbido alimentava meu estresse. Intentando distrair minha cabeça, fui rumo à sala fazer minha diária leitura; meus livros, porém, pareciam rasurados e borrados como um objeto que pela chuva é tingido. Meus retratos, que portavam fotos de parentes e amigos, sofriam da mesma anomalia, tingidos, distorcidos, exceto pela região dos olhos, olhos que profundamente me tolheram do senso de realidade e me infundiram numa paranoia maior ainda. Naquele momento, desejei que estivesse refém duma grave maladia mental, pois, pensava eu, que era opção melhor que vagar num espaço liminar que tanto era fantasiado.
No terceiro dia de terror, meu estoque de comida havia acabado, coisa que nunca me atentei de ajuntar pelo pensamento de nunca necessitar de um. O evento contribuiu para meu estresse, e a sensação de ser observado era tão intensa que pensei ser acompanhado a todo instante por uma sombra alheia. Os olhares de meus retratos e pinturas eram tão insuportáveis que destruí todas as minhas obras que figuravam olhos. Coisa inútil, pois nada me alentava.
No quarto dia de agonia, não mais me sentia humano. Aqueles malditos olhares me fixavam diurnamente, e eu não suportava nem minhas próprias visivas no espelho. Eu comecei a ouvir estranhos passos no corredor do apartamento, coisa que me despertou um breve ânimo, e corri para o olho mágico da porta, mas, quando chequei, eram aquelas sombras blasfemas que queriam imitar a visagem humana, os mesmos entes, se assim é correto dizer, que substituíram meus parentes nos retratos. Aquelas coisas me encaravam de forma fixa enquanto perambulavam, sem parar, pelo corredor.
No quinto dia de pesadelo, o raciocínio parecia ter fugido de mim. A fome era tanta que o estresse e medo constante eram apenas adornos à minha terrível situação. Todo reflexo causava-me pavor, pois podia acompanhar aqueles olhos umbrais onde houvesse visivas. A tela de minha televisão portava a imagem destacada daqueles olhares tenebrosos, e tudo que possuía reflexo seguia à mesma guisa.
No sexto dia de desfortúnio, abatido pela fome e pelo medo, usei minhas poucas forças arrastando-me à sala para um novo esforço de gritar pela janela por socorro. E igual homem indigente, com meus olhares fixos no chão, evitando as sombras, saí de meu quarto e virei o corredor em destino à sala. No breve momento que levantei meus olhos, aqueles demônios sombrios, como formas distorcidas, me encaravam do lado de fora das janelas de meu apartamento. Senhor, eu moro no quarto andar...
No sétimo dia do desespero, atingi o ponto de ruptura. Estou trancado em meu quarto, sentado na minha escrivaninha, escrevendo essas palavras finais, porque ouço esses ruídos de outro mundo, e consigo perceber as sombras me encarando pelo canto de minha vista. Não mais suporto essa terrível sensação. Se permaneço, sei que morrerei ou me tornarei como esses seres. O impulso suicida, por mais irônico que pareça, é minha salvação. É pela janela que encontrarei minha saída, seja para a morte ou para a vida. Seja como for, não terei meu fim entre esses precitos.