Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Tradução e adaptação por Júlia Trevas

Nyarlathotep… o caos rastejante… Eu sou o último. Eu direi ao vazio que me atende.

Não me lembro ao certo quando tudo começou, mas foi há meses. A tensão, antes política e social, adensou-se com um pressentimento inquietante de um perigo físico hediondo e iminente — um flagelo tão vasto que só podia existir em nossos pesadelos mais sombrios. As pessoas transitavam com seus rostos pálidos e os olhares cautelosos, mexidas por advertências sussurradas, lidas como profecias que ninguém ousava repetir ou reconhecer abertamente. Um sentimento de culpa monstruosa pairava sobre a terra e, dos abismos entre as estrelas, varreram correntes gélidas que faziam os homens estremecerem em seus refúgios escuros e solitários. Ali, existia uma alteração demoníaca na sequência das estações — o calor do outono persistia assustadoramente, e todas as pessoas sentiram que o mundo e talvez o universo, foram entregues do controle de deuses conhecidos e forças, para os deuses que eram desconhecidos e para forças ocultas.

Foi então que Nyarlathotep surgiu, vindo do Egito. Quem ele era, ninguém podia dizer, mas ele parecia com um faraó. Os fellahin se ajoelhavam ao vê-lo, sem entender o porquê. Ele dizia ter emergido da escuridão de vinte sete séculos e tinha recebido mensagens de lugares que não pertenciam a este mundo. Assim, para as terras da civilização veio Nyarlathotep, moreno, esguio e sinistro, sempre comprando estranhos instrumentos de vidro e metal, combinando-os em instrumentos ainda mais estranhos. Ele falou muito sobre as ciências — da eletricidade e da psicologia — dando exibições de poder que deixavam seus espectadores mais que sem palavras, o que elevou sua fama a uma magnitude extraordinária. Homens aconselhavam outros homens a verem Nyarlathotep, eles estremeciam. E onde Nyarlathotep passava, tudo mais se dissipava, pois o alvorecer era dilacerado por gritos de pesadelo que nunca foram tão públicos. Os sábios chegavam a desejar que o sono noturno fosse proibido, para que os lamentos urbanos perturbassem menos brutalmente a pálida e compassiva lua. O satélite cintilava sobre águas verdejantes que escorriam sob pontes antigas, ao passo que velhos campanários desmoronavam contra um céu adoentado.

Eu me lembro quando Nyarlathotep veio para minha cidade — uma terrível e antiga cidade de inúmeros crimes. Meu amigo me contou sobre ele, contou sobre as suas revelações impulsivas e sedutoras. Eu tinha uma ânsia que queimava quando eu desejava seus mais extremos mistérios. Meu amigo me disse que eles eram horríveis e impressionantes, além da minha imaginação febril. O que foi projetado na tela da sala escura prenunciava mistérios que só Nyarlathotep ousava revelar, e que, no estalar de suas faíscas, arrancava dos homens algo que jamais antes fora subtraído — um algo que só se manifestava pelos olhares. Eu ouvi dizer que os que conheceram Nyarlathotep viam coisas que os outros não viam.

Foi no calor do outono que fui com as incontáveis multidões através da noite ver Nyarlathotep.  Adentrando a sufocante escuridão noturna e subindo as intermináveis escadas até o quarto da asfixia, envolto em trevas numa tela, eu vi formas encapuzadas no meio de ruínas, douradas faces malignas espiavam por trás de um monumento caído. Eu vi o mundo batalhar contra as trevas, contra ondas de destruição provenientes de além do espaço, lutando, se agitando e girando contra o escurecimento do sol já frio. Então, as faíscas dançaram de modo assombroso ao redor das cabeças dos espectadores, erguendo seus cabelos em arrepio e sombras, mais grotescas do que qualquer descrição poderia abarcar, elas emergiram e pousaram sobre as cabeças, e quando eu, que era o mais frio e científico que os demais, murmurei, tremendo, palavras como “impostura” e “eletricidade estática”, Nyarlathotep expulsou a todos nós, descendo-nos pelas escadarias vertiginosas até as ruas úmidas, tórridas e desertas da meia-noite. Gritei em alto e bom som que não tinha medo e que jamais poderia ter medo, e outros gritavam comigo em busca de consolo. Juramo-nos mutuamente que a cidade permanecera exatamente a mesma ainda viva, e, quando as luzes elétricas começaram a esmaecer, amaldiçoamos a companhia por vezes sem conta e rimos das feições bizarras que fazíamos.

Acredito que senti algo vindo da lua esverdeada, pois, à medida que passávamos a depender de sua luz, deslizamos em estranhas formações involuntárias e parecia que conhecíamos nossos destinos, embora não ousássemos sequer pensar neles. Uma vez, fitamos o pavimento e constatamos que os paralelepípedos estavam frouxos e invadidos pela grama, restando apenas um fio de metal corroído a indicar onde antes corriam os trilhos. Logo em seguida, avistamos um bonde solitário, sem janelas, deteriorado e quase tombado para o lado. Quando fixamos o olhar no horizonte, não conseguimos avistar a terceira torre junto ao rio e a silhueta da segunda ostentava um perfil desfiado no topo, como se o tempo a tivesse consumido por completo. Em seguida, dividimo-nos em fileiras estreitas, cada qual atraída por um rumo distinto. Uma delas desapareceu num beco tortuoso à esquerda, restando apenas o eco de um gemido lancinante. Outra coluna deslizou por uma entrada de metrô engolida pelas ervas daninhas, ecoando uma risada insana. A coluna onde eu estava foi sugada para o campo aberto e logo sentimos um frio estranho, alheio ao calor do outono, pois, ao avançarmos pelo pântano escuro, contemplamos ao nosso redor o brilho lunar infernal da neve maligna. A neve errante e enigmática foi varrida em uma única direção, onde se abria um abismo no qual o brilho apenas acentuava sua escuridão. A coluna seguia exígua, avançando sonâmbula para o precipício. Retive-me por um instante, pois a fenda negra na neve iluminada pelo verde era aterradora, e parecia ecoar o lamento inquietante de meus companheiros ao desaparecerem. Mas minha hesitação foi breve. Como se fosse chamado por aqueles que já haviam partido, flutuei quase sem peso entre os titânicos montes de neve, trêmulo e amedrontado, até ser tragado pelo vórtice cego do inimaginável.

Dotado de uma consciência lancinante e entregue a um delírio mudo, só os deuses antepassados poderiam compreender tal horror. Uma sombra doente e sensível se contorcia em mãos que não eram mãos, circuitando de modo cego pelas mais pavorosas meias-noites da criação em decomposição, cadáveres de mundos mortos, cujas chagas eram cidades, e ventos cadavéricos que roçavam as estrelas pálidas, fazendo-as cintilar com um brilho débil. Para além de tais mundos, vagavam espectros de monstros indescritíveis; colunas difíceis de ver oriundas de templos profanos, estruturados sobre rochas sem nomes sob o firmamento, erguiam-se até os vazios vertiginosos além das esferas de luz e de trevas. E, em meio a este cemitério repulsivo do universo, ecoava o bater ensurdecedor de tambores abafados e o lamento maçante das blasfemas flautas, surgidas de câmaras inconcebíveis e não iluminadas além do Tempo, o pulsar detestável e o sussurrar profano que faziam dançar, lentamente, desajeitadamente e absurdamente os gigantescos deuses supremos e tenebrosos. As gárgulas cegas, mudas e desprovidas de mente, onde a alma é Nyarlathotep


Escrito por:
H. P. Lovecraft

Howard Phillips Lovecraft nasceu em 20 de agosto de 1890, na cidade de Providence, Rhode Island, onde também morreria, solitário e quase desconhecido, em 15 de março de 1937. Viveu à margem do mundo — pobre, doente, recluso — mas sua mente fervilhava como um poço de éter, e seus pesadelos tornaram-se mitologias modernas. Seu universo não é deste mundo, nem do inferno. É anterior, abissal, cósmico... » leia mais

Tradução de:
Júlia Trevas

Júlia Graziela Pereira Trevas é uma escritora de 29 anos, natural de Campina Grande, Paraíba. Formada em Letras - Inglês pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), também atua como professora de inglês. Sua paixão pela escrita começou ainda na pré-adolescência, quando compunha pequenos versos. Mais tarde, ao ingressar na faculdade, aprofundou-se na literatura gótica, que hoje é uma de suas principais influências criativas. Uma curiosidade interessante é que... » leia mais
17ª Edição: Dívanno - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 17ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de junho de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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