O Poeta das Mil Noites
Me chamo Mateo Castilho e acho estranho que eu conheça meu próprio sobrenome. Nasci num ducado do reino de Castela, minha mãe era filha de um cavaleiro nobre que morreu na cruzada de reconquista. Estas poucas noções é tudo que sei da minha origem. Meu pai não sei quem foi, mas tenho feições mouriscas, por isso já levantei muitas suspeitas sobre quem sou, algumas um pouco assombrosas, talvez.
Quase não tenho lembranças de minha mãe e de onde eu nasci, também não sei descrever o lugar, fui levado de lá muito cedo, ainda criança e por isso tenho dificuldades com a língua castelhana. Fui tirado dos braços de minha mãe pelos invasores em uma noite sangrenta, raptado e levado para Córdoba, vendido como escravo para uma família de mercadores aristocratas do califado. Aprendi outros costumes e outras línguas, maneiras as quais eu não era familiarizado, mas hoje é como se tivesse sempre vivido entre os maometanos.
Quando cresci e comecei aprender as línguas estrangeiras, tive facilidade com o modo de falar dos mercadores que chegavam de toda parte do mundo. Talvez por isso me deram uma ótima educação, apesar da minha condição de prisioneiro, era de grande valor o servo que pudesse facilitar as comunicações com os negociantes, até boas vestes me foram concedidas.
Tive aulas com os melhores mestres andaluzes, com o tempo notaram minha vocação para o letramento, me ensinaram gramática, religião, história e também as artes do canto. Nesta arte encontrei minha primeira e mais duradoura paixão, junto dela também aprendi a correr os dedos pelo alaúde, aprendi a tocar muito bem este instrumento, dominei as cordas e os dedilhados melhor do que qualquer um dos menestréis de Córdoba. Permitiam-me algum tempo para praticar estes dons que eu descobri ainda jovem e sempre pediam que eu alegrasse o salão durante o jantar ou as visitas durante as conversas de negócios do meu senhor.
Mas um outro amor que eu encontrei junto com meu dom teve uma passagem mais breve e mais trágica na minha vida. A bela filha de meu senhor, Ester gostava de me ouvir cantar. Fiz bonitas canções para ela e foi exatamente esse o início da ruína deste grande amor. Nos descobriram enquanto eu cantava à noite nos terraços para que ela ouvisse, nunca estive junto dela, mas isso já era algo suspeito demais para manter minhas poucas liberdades. Fui aprisionado, privado de água e comida, e depois de alguns meses vendido para um traficante que me levou para Argel numa tortuosa viagem no porão de um zambuco. Quando cheguei naquele lugar fiquei aliviado de pôr os pés na areia, depois vi tanta areia naquela noite e mal sabia quanta areia ainda veria em toda minha vida.
Tantos anos se passaram em Argel, os anos mais difíceis. Deixei de ser jovem naquele lugar. Não sei quantos anos eu tenho agora, mas talvez tivesse chegado lá com quinze ou por volta disso. Servi o palácio como criado particular de uma das concubinas do Sultão. Uma mulher esguia que tramava inúmeras conspirações e intrigas no palácio. Notei como ela influenciava com língua de cobra as políticas do sultão e daquela corte. Também descobri um de seus muitos segredos, ela escondia nos seus aposentos livros de magia proibidos, dos antigos Dins, também conversava com estes espíritos no deserto. Na madrugada fria da imensidão de areia, saía de noite por uma passagem secreta e voltava manchada de sangue. Certa vez ela me trouxe um alaúde, disse que os Dins mandaram que ela comprasse um bom instrumento no bazar e desse para um de seus escravos. Por coincidência ela me escolheu, mesmo não sabendo que eu dominava aquele instrumento. Talvez este meu segredo tenha sido contado pelos espíritos do deserto que tinham algum tipo de propósito no meu destino. Peguei a concha de madeira bem trabalhada em minhas mãos, era o mais belo alaúde que eu pudera colocar os olhos, uma peça de carpintaria finíssima, não sei de quem ela obteve, não era do tipo que vendem os mercadores.
Temi não me lembrar de nenhuma canção, mas assim que o tomei nos braços e empunhei a escala e as cordas, foi como rever um velho amigo que não mudou nada com o passar dos anos, toquei com destreza e exímia habilidade. A feiticeira ficou muito impressionada e me exigiu que eu tocasse para todo seu séquito. Assim fiz durante algumas noites sem saber que, na verdade, aquela mulher tinha me amaldiçoado. Enquanto eu dormia, entrou pela janela um espírito muito antigo e me revelou nos meus sonhos que, quando eu aceitei o presente da minha senhora, firmou-se um contrato com os Dins. Eu empunharia o instrumento como ninguém jamais fez, cantaria tão lindamente como ninguém jamais pôde e criaria as mais belas canções que já foram criadas, no entanto a fama não alcançaria o meu nome, eu teria que provar a cada trova que eu era o grande bardo das noites argelinas, esta porém não era a condição mais cruel, eu só poderia exercer minha arte por mil noites e quando se esgotasse esta conta, nunca mais poderia cantar, pois ficaria mudo e cego até o fim da vida, condenado a vagar sozinho pelo deserto.
Incrível como foram as noites depois deste sonho assombroso, embora tivesse acordado assustado na manhã seguinte, eu não acreditei que aquilo era verdade, mas meu talento ficou muito mais aguçado e foi se desenvolvendo cada vez mais, de um modo que quase atingia a perfeição. Tocava pelas noites de Argel, no palácio e nas casas mais nobres, sempre cercado de boa comida, bajulações e mulheres jovens e bonitas. Tornei-me o maior amante dos prazeres, vivi empenhado em esbaldar das benesses que este dom me proporcionou, me embriaguei nas maiores abundâncias da riquíssima cidade de Argel, quase me esqueci que eu era um escravo.
Então que um novo sonho aconteceu, depois de uma noite das mais festivas e agitadas, um novo espírito entrou pela janela dos meus aposentos e me mostrou uma ampulheta que era o contador das noites que eu usufruí e das que ainda me faltavam. Não sei dizer ao certo o número que ainda restava, mas a areia já tinha escorrido a maior parte para o bulbo do vidro de baixo. Acordei desesperado ainda na madrugada, entrava um vento frio pela janela por onde eu via as estrelas e as dunas do deserto. Tive uma nova epifania acordado, pensei em toda a minha vida, na minha mãe e em Ester. Onde poderiam estar? Chorei pela primeira vez desde que eu era criança, pedi que algum espírito ou qualquer força maior me escutasse, pedi que quando minha maldição se concretizasse, eu vagando cego e mudo pelo deserto ainda pudesse ver com clareza as figuras de minha mãe e de Ester.
Decidi fugir daquela cidade, decidi ir embora de Argel. Arrumei algumas poucas coisas, água e tâmaras, embrulhei meu alaúde e segui pela passagem secreta que levava fora dos muros da cidade entre o mar e o deserto. Cheguei na praia e continuei para o leste sem saber o que esperar ou o que eu poderia encontrar, andando entre as quatro maiores imensidões que existem, a imensidão arenosa do deserto à minha direita, a imensidão salgada do mar à minha esquerda, a imensidão brilhante das estrelas no céu e, por último, a imensidão da alma dentro de mim.
Andei por tanto tempo, não sei estimar, mas algo estranho acontecia, aquela noite parecia eterna, como se passasse muito mais de doze horas e o dia não dava sequer sinais de alvorecer. Andei pela areia até Argel sumir à distância atrás de mim. Eu estava só caminhando sem ter um rumo ao certo, consumi todas as tâmaras e toda a água, tive certeza de que caminhei por muitos dias embora a noite jamais deixasse o céu.
Quando já estava exausto, sentindo a falta de água e de comida, minha mente turva sem saber se minha atitude foi sensata, avistei uma luz ao longe. Caminhei até me aproximar, quando chegava perto reconheci a forma de uma ampulheta espectral, uma névoa brilhante pendente no ar, parecia ser feita de estrelas. Tive vontade de tocá-la, estendi a mão e quando o fiz, um raio de luz me ofuscou num instante e percebi que estava em um lugar diferente. Eu pisava sobre um gramado, rodeado de jardins verdejantes e diante de mim havia um suntuoso castelo europeu. No ambiente pairava um murmúrio alegre e notei que chegavam convidados para uma festa, todos trajados com muita elegância e usavam máscaras cravejadas de brilhante, entendi que haveria um baile e me animei em participar.
Um cavalheiro vinha em minha direção, não o percebi chegar, tinha cabelos na altura do pescoço, bigode fino e cavanhaque pontudo, conversou comigo durante alguns minutos, tinha gestos delicados e uma postura muito gentil. Acho que ele é o dono deste lugar, um conde talvez. Por certo é muito rico e me passa ares de ser muito culto. Ele notou meu estado decadente e mandou que trouxessem um copo de água para matar minha sede. Aquela água estava deliciosa, parecia um elixir revigorante. No instante seguinte já pensava eu: “Que mal tem um pequeno grãozinho de areia a menos na parte de cima da minha ampulheta?”.
A pressão rompe o silêncio na madrugada | Vibra o éter como música e ressoa | Reverbera no acetato, ainda...