Brinquedo Macabro
“Então, o Senhor disse a Satanás: De onde vens? E respondeu Satanás ao Senhor e disse: De rodear a terra e passear por ela...”. — Jó 2:2
Há quem diga que aqueles que atentam contra a própria vida nem sempre buscam pela morte, mas tão somente tentam acabar com a dor que os atormenta e, em muitos casos, nem mesmo há uma dor, mas apenas um terrível desespero. Era alta madrugada quando um grande alvoroço se fez na rua, com o ensurdecedor som de sirenes e o inquietante matraquear dos vizinhos ávidos de curiosidades em saber sobre a desgraça alheia. Em menos de dez minutos todo o quarteirão estava tomado por carros de polícia, ambulâncias e até mesmo um caminhão do corpo de bombeiros. Além, é claro, de dezenas de desocupados bisbilhotando o que se passava.
Um homem no peitoril da janela de seu apartamento demonstrava estar vivendo momentos do mais completo pavor. O prédio, atrás de si, estava em chamas e o indivíduo, parecendo estar sem maiores opções, ameaçava pular a qualquer momento. Alguém dentre os bombeiros gesticulava para que ele mantivesse a calma, mas o homem sequer lhe dava atenção. Não havia escadas de incêndio no edifício. De alguma forma o homem não tivera outra opção a não ser se refugiar na janela de sua casa. Algo ou alguma coisa o impedira de acessar a escada de emergência do prédio, como os demais moradores assim o fizeram, parece que somente ele se encontrava naquela lastimável situação, até porque não havia muitos moradores naquela velha construção.
Pelo alastrar das chamas, tudo levava a crer que o incêndio se iniciara em seu próprio apartamento. Seus vizinhos se questionavam onde estariam seus familiares, uma vez que ele vivia com sua esposa e as gêmeas — suas duas filhas de nove anos. Devido a muitos veículos estarem estacionados na rua em frente ao edifício, o acesso do caminhão dos bombeiros com a escada que pudesse chegar até o homem era quase impossível. Os bombeiros improvisaram uma espécie de cama elástica para que o homem pudesse pular mesmo que a altura em que ele se encontrava — quase doze metros — fosse bastante perigosa para aquele tipo de resgate, não havia outra opção.
Depois de um resgate emocionante, aquela estranha figura fora salva sem maiores ferimentos, apenas alguns arranhões e uma leva intoxicação pelo excesso de fumaça inalada por ele. No entanto, seu psicológico estava completamente abalado e ficou pior ainda quando uma vizinha sua o questionou sobre o paradeiro de sua esposa e de suas filhas. Nesse momento ele entrou num violento frenesi ao ponto de ser necessário cinco policiais para contê-lo. Naquele momento parte do mistério se esclarecia. Aquele homem assassinara sua família, colocara fogo em seu próprio apartamento, mas não tivera coragem de atentar contra sua própria vida.
A balbúrdia que parecia estar se amainando teve uma forte reviravolta, e houve grande peleja por parte da força policial e dos bombeiros para conter a turba enfurecida que se lançava sobre aquele homem para que a justiça fosse feita ali mesmo de forma rápida e impiedosa. Com muita dificuldade o homem fora levado escoltado para a delegacia para prestar esclarecimentos. As chamas foram controladas, mas com grande prejuízo para a construção que, num primeiro momento, fora interditada pelos bombeiros e, muito possivelmente, seria condenado pela defesa civil, pois sua estrutura fora visivelmente abalada pelas chamas. Houve forte comoção popular quando os bombeiros retiraram do meio dos escombros um corpo adulto e dois pequenos corpos menores completamente carbonizados. Pelo estado em que os corpos se encontravam, a perícia teria grande trabalho para apontar a verdadeira causa das mortes daquelas infelizes vítimas.
Era por volta das cinco horas da manhã quando aquele homem fora fichado na delegacia como, até então, o único suspeito de triplo assassinato, incêndio doloso e tentativa de suicídio. A delegacia que naquele momento deveria estar bastante tranquila, começou a ficar apinhada de jornalistas e curiosos em busca de informações sobre aquele terrível acontecido. Certamente a polícia teria muito trabalho para tentar desvendar aquele crime hediondo. Isso se tornou mais evidente quando o acusado negou veementemente sua culpabilidade para todos os crimes que lhe era imputado. No entanto, sua participação direta ou indireta nos crimes era inquestionável, uma vez que fora preso em delito flagrante. O acusado dispensou a presença de um advogado, mas exigia que um padre viesse a ter com ele e, somente depois de se confessar com uma autoridade eclesiástica, ele daria seu depoimento à polícia.
Por volta das sete horas da manhã, Padre Ozório, um paroquiano local que vez por outra prestava serviços de alento espiritual a um ou outro detento em crise espiritual, chegou à delegacia e foi até o acusado que dava claras demonstrações de um terrível pavor, mas nenhum tipo de arrependimento e nem o menor toque de remorso. O padre entrou na sala de interrogatório e, sabendo que o acusado, estando algemado à mesa de aço, e que de forma alguma traria algum tipo de ameaça à sua integridade física, e que tudo seria devidamente gravado tanto em áudio quanto em vídeo, solicitou aos agentes que lhe dessem um momento de privacidade com o acusado, para que ele pudesse, assim, sem nenhum tipo de coação, abrir seu coração e que sem receio algum lhe pudesse relatar a verdade dos fatos.
O acusado que esteve de cabeça baixa quase o tempo todo, desde que chegara à delegacia, quando o padre adentrou a sala de interrogatório, levantou sua face ao clérigo e lhe cumprimentou com certo alívio, como se a presença de uma autoridade religiosa lhe trouxesse algum conforto. Pediu a benção ao padre e assim que este se sentou, solicitou-lhe que fosse paciente com ele e que ouvisse toda sua estória do início ao fim antes de declarar algum tipo de juízo. E assim, o acusado principiou...
Antes de qualquer coisa, quero que saiba, padre, que até a noite passada eu mesmo não acreditava em muitas coisas que não pudessem ser devidamente explicadas... Meu nome é Silas de Azevedo sou corretor de seguros — ou ao menos era até ontem à tarde — sou casado e tenho duas filhas...
Nesse momento ele se deu conta de tudo que havia ocorrido e começou a chorar copiosamente. Pela primeira vez o desespero pela morte de sua família lhe veio à superfície e ele teve outra crise emocional que demorou alguns minutos a ser controlada. Padre Ozório o observava em absoluto silêncio, deixando que ele mesmo retornasse a narrativa assim que conseguisse se controlar. Fato que o acusado fez de forma voluntária...
Eu era casado e, até ontem à noite, tinha duas filhas maravilhosas, mas o mal que eu mesmo trouxera para dentro de casa me tirou tudo aquilo que eu mais amava na vida. Não espero que o senhor possa acreditar no que vou contar padre. No entanto, preciso confessar o que realmente aconteceu para que eu possa dar um refrigério para minha alma. Minha filha mais jovem colecionava bonecas e nenhum presente lhe era mais agradável do que uma boneca nova para sua coleção, mesmo que o brinquedo não fosse novo de fábrica. Para falar a verdade ela tinha um apreço especial por brinquedos que já haviam pertencido a outras crianças. Melissa sempre dizia que tais bonecas vinham acompanhadas com as estórias de suas antigas donas. Por um lado, ela não estava de toda errada. Acontece que nem todas as estórias são de contos de fadas e ontem pude comprovar isso da pior maneira possível.
Em uma de minhas viagens, entrei numa loja de antiguidades e adquiri, por uma ninharia, uma bela boneca de fabricação artesanal. O brinquedo era comum como outro qualquer: corpo, cabelo, vestido e um sapatinho simples. No entanto, desde o momento que paguei o preço exigido pela boneca e a tive em minhas mãos, senti algo sombrio próximo a mim. Quando cheguei em casa com a nova boneca, Melissa ficou eufórica num primeiro momento, depois senti certa melancolia em seu semblante. Pensei ser apenas frustração devido ao brinquedo não estar tão conservado quantas as outras que eu sempre trazia.
Durante o jantar tudo correu normalmente, sem nenhuma novidade, mas assim que a noite avançava, senti que havia algo de muito sinistro no ar, que parecia pesado e sombrio. Era por volta de onze da noite, quando as meninas já estavam recolhidas, que ouvi passos na cozinha e barulhos na gaveta dos talheres como se alguém bastante apressado estivesse escolhendo algo. No momento não me preocupei tanto, pois era comum minha esposa Cecília, vez por outra, preparar um bolo para o café da manhã. Por um momento o silêncio na cozinha se fez presente, mas logo dera lugar por sons imprecisos no quarto das meninas, foi quando me levantei para verificar o que poderia estar acontecendo.
Para minha tristeza, minha amada Cecília acabara de assassinar nossas duas filhas, que dormiam inocentemente o sono dos justos. Quando caminhei em sua direção percebi que sua face havia mudado, pois, trazia a mesma aparência do rosto da boneca que eu havia comprado naquela mesma tarde. Parei no meio do quarto e chamei pelo seu nome, mas antes que eu pudesse tomar qualquer atitude, ela que naquele momento voltava a ter suas feições normais, deu um grito estridente ao ver o que tinha acabado de fazer. Olhou primeiro para as meninas, com um sentimento de profundo remorso e, depois, para a boneca que estava sobre uma cadeira. Após olhar para a boneca novamente, vi com meus próprios olhos suas feições mudarem novamente e, após ela dar uma estridente gargalhada, cortou sua própria garganta.
Percebi naquele momento que havia algo errado com a boneca, pois ao olhar em sua direção percebi que uma enorme sombra estava atrás da poltrona em que ela estava. Essa mesma sombra me olhava de forma debochada como se zombasse de mim. Tentei me aproximar de minhas filhas e também de minha esposa, mas percebi que não poderia fazer nada mais por nenhuma delas, decidi que daria um fim naquele maldito brinquedo. Contudo, ao me aproximar da boneca fui fortemente golpeado pela sombra, que naquele momento estava tomando feições de um ser dotado de um corpo físico. A visão daquele ser era tão terrível que não consigo descrevê-lo de uma forma fidedigna. Apenas sei que, nem mesmo em alguns livros ou em qualquer filme de terror que eu tenha assistido, eu jamais vira coisa tão horrenda quanto aquela.
Naquele momento decidi que tentaria destruir tanto a boneca, quanto aquela coisa, — que de alguma forma eu sabia que fazia parte daquele macabro brinquedo — colocando fogo em tudo. O resto da história o senhor já deve saber...
Terminando sua estória, ele levantou seu rosto para o padre e o que viu o deixou aterrorizado. Padre Ozório segurava a boneca em suas mãos e o fitava com olhos vermelhos como duas chamas vivas. A face do padre havia mudado e o que antes era o rosto de um homem de uns sessenta anos agora estava liso como a pele de uma foca e parecia ser emborrachado...
Isso aconteceu há mais de cinquenta anos, quando eu ainda era um jovem adolescente em meu primeiro emprego, tentando juntar alguns trocados para sair…