O Baile Sombrio
Bailes são sempre bailes. Misteriosos, longos, satisfatórios e saudosos. Ser convidada para um baile é sentir o primor de ser considerada uma verdadeira dama — importante para a sociedade, embora eu não tenha cavalheiro algum para acompanhar-me.
Olho-me no espelho e estou impecável para um baile. Meu vestido em tom violáceo representa a minha candura. Me falta apenas a máscara, a tão importante máscara. Mas dirijo-me tão logo ao Castelo Drácula, recinto do grandioso evento, onde avisto pessoas chegando e se aproximando. Há um homem esguio e comprido, como se fosse uma figura misteriosa. Paro os meus passos para contemplar a sua face, escondida em uma máscara levemente sombria, que cobre todo o seu rosto. Não se sabe se ele sorri ou se chora dentro daquele molde. Ainda assim, me aproximo e percebo que ele comercializa lindas máscaras acompanhadas de joias preciosas. Isso toma a minha curiosidade de tamanha forma que eu faço a minha escolha.
Uma das máscaras chama a minha atenção de maneira impressionante. Nela há um brilho especial ao redor da parte dos olhos. O brilho é lilás, quase da cor das vestes que me cobrem. O homem das máscaras impulsiona a pô-la em meu rosto. As suas mãos aproximando quase insistentemente a máscara da minha face me faz colocá-la em mim. Mais um pouco e seriam as suas enormes mãos a fazerem isso. A máscara vem acompanhada de uma joia, mas a deixo na bancada do seu quiosque, os meus dedos já estavam fartos de brilho.
Ao colocar a máscara, começo a me sentir estranha, com uma sensação de vertigem e desconforto. Não vejo outras pessoas se sentirem assim, apenas eu. Então, decido tirá-la, mas não consigo fazer isso, a máscara não sai dos meus olhos. Apenas os meus lábios podem ser vistos. Desisto de lutar contra e resolvo permanecer com ela sem pedir ajuda ao homem. Ele me olha como se soubesse o motivo daquela faixa brilhosa com dois orifícios grudarem em minha pele da face. Ele também sorri, sinuoso, sarcástico. Ignoro tal ato e entro no castelo; não poderia perder um minuto de baile por causa de loucos mascates.
Entrando no recinto, percebo que está tudo muito lindo, ornamentado em um trio de cores espetacular: preto, vermelho e dourado. A música é melodiosa, valsante, e as bebidas têm uma coloração intrigante em tons sempre escuros. Sento-me à uma mesa num canto discreto. Estou sozinha e não gostaria de ser notada tão facilmente, mas, ainda assim, sinto o aproximar de uma figura masculina, gentil, máscula e imponente. Respiro fundo, parecia admirável. Essa figura me estende a mão, nada me diz. E eu sei que é para uma dança, eu sei. Penso por uns instantes, ele está mascarado, é óbvio, a sua luva alvacenta e muito limpa me convence de que devo aceitar a sua dança.
Levanto-me, educadamente, e a minha face se curva ao cavalheiro. Mas o salão está levemente escuro, luzes baixas, e a música alcança uma frequência soturna demais para mim. De repente, os meus ouvidos captam um som doído e tento me afastar, mas o cavalheiro não permite. Não bastara a máscara que não sai da face minha, agora sou obrigada a ficar de mãos dadas e corpo colado a um homem que eu nem consigo ver a face, pois tal se cobre com um molde esdrúxulo e que parece também ter grudado em sua face, a qual não existe. Onde eu estava com a cabeça para aceitar dançar com ele? Era impossível ver o que havia de estranho com tanta delicadeza desse senhor cavalheiro. Mas me arrependo. Estou presa a esta dança como quem sente tortura até a hora da morte.
Depois de ficar presa ao corpo dançante do jovem homem, decido que quero abandonar a dança, mas ele me dá a condição de que se isso eu fizer, é certo eu aguardar algo negativo acontecer. Não me importo, e ao me afastar do seu corpo, ele desaparece, quase imediatamente. Se ele não tem face, como saberei onde ele vai?
Me perco nos pensamentos e já me sinto tonta, quando algum maitre parece perceber a minha fraqueza e me oferece um néctar rubro. Não penso, aceito e no mesmo instante parece que todo o baile se acaba, cessa e não estou mais lá no castelo. Deparo-me com outro ambiente similar, como se fosse um espelho de todo o baile. A tal máscara ainda está em meu rosto, o sabor do líquido rubro ainda desce garganta abaixo e não há nem mesmo o tal cavalheiro valsante sem face para me ajudar. As mesmas pessoas do baile estão presentes, mas todas sem cor, nem graça, nem rosto... como eu voltarei? Como?
Lembro-me de que não poderia parar de dançar. Se eu valsasse até o fim do baile talvez eu ainda estivesse lá e não viria para este recinto fúnebre, obscuro, demoníaco. As pessoas me olham e sorriem irônicas, sarcásticas e o som das suas risadas são como surras em meus ouvidos. Logo, as risadas transformam-se em gargalhadas colossais e, para completar o meu reflexo parece se fundir a um espelho negro e sorri para mim, desfigurado. Outrora chora e faz caretas perturbadoras e chacoteia de mim.
A minha lágrima desce, dolorida, dolorosa, e os seres fingem dó e compaixão, ironicamente, de maneira sarcástica. Me distraio com a face baixa, encarando o piso reluzente do salão, embora ele esteja coberto por um carpete em tons rubros e dourados. Nesse momento, ao levantar a minha face, não há mais ninguém e noto que estou de volta ao salão anterior, no castelo Drácula, sobretudo, vazio, escuro e já se aproxima das três horas da manhã.
Sozinha, mascarada, sem luz. Lembro-me da placa que li ao adentrar o castelo, que dizia que o baile seria encerrado às três da madrugada e todos deveriam se retirar e voltar para os seus lares ou aposentos. O que me resta é sair do recinto e tentar retornar para casa. Mas o silêncio é gritante e o som dos ponteiros de um relógio arcaico são ensurdecedores. Não obedeço. Fico ali olhando fixamente para o relógio do grande salão até passar da hora exata, como afronta. Não importa o que me aconteça. Continuo, e agora, três horas e um minuto, sinto a necessidade de seguir a luz da lua fúlvida que lumia a saída do salão.
Os meus olhos se deparam com aquele homem das máscaras caído ao chão e a face ensanguentada. A cena é terrível. O homem sem face também aparece e o toca no rosto coberto pelas líquidas hemácias. Eu não me sinto pronta para ver isso e quando penso em ir embora e sair daquele jardim afora, o mesmo maitre que me serviu a bebida rubra parece cercar o meu caminho para que eu não passasse, mas o venço e me retiro dali, junto à máscara, que arranco da face sem pensar mais. Respiro fundo, ofegante e aquele castelo parece ser engolido pela terra, restando apenas eu na estrada de volta para a minha casa.
Não contarei a ninguém. Não ousaria. Ninguém acreditará. Mas foi o baile mais assombroso cujo qual participei. Se eu voltaria ali? Contarei as horas para o próximo evento, que acontece de sete em sete anos.
Sete anos depois, sorrio sinistra para o terreno baldio, onde um dia aconteceu o grande evento e coloco uma placa cravada naquela terra, escrito “Preparem-se para o grande baile do Castelo Drácula”.
Enquanto eu me afasto da biblioteca, as sombras parecem se fechar atrás de mim, como se o lugar estivesse lamentando a minha partida. No entanto, não há…