Imagem criada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula, com Midjourney

Parece que nunca amanhece aqui. Onde estão os raios de sol, para que eu me dirija para as matas lidar com os animais perigosos? Não... eu não estou em meu país — preciso lembrar.

Lentamente, ainda no escuro, levanto-me da maciez dos lençóis de cetim e sinto os meus olhos ainda sonolentos, se ajustando à baixa luz da alcova onde me encontro. 

Ao me aproximar da janela deste quarto no antigo castelo, os meus olhos se fixam nos majestosos montes que se erguem ao longe. Lá, entre os mistérios da madrugada, surge uma silhueta, e mais do que isso, uma figura solitária, destacando-se contra o horizonte sereno. Um homem, cujos contornos se misturam com a imponência das montanhas distantes.

Minha feição muda para um possível receio, enquanto observo aquele estranho visitante. Uma sensação indescritível me envolveu, um misto de curiosidade e medo, como se o universo tivesse conspirado para que eu visse alguém a uma hora dessas.

Me afasto do grande vidro, rogando a Tupã que aquilo não tenha me enxergado assim como eu o enxerguei e vou correndo até a porta do quarto conferir se está mesmo trancada. Eu poderia buscar à Olga Nivïttiz, mas preciso me controlar e dominar os meus medos. É só um andarilho, vizinho, talvez. Ou será mais um residente do Castelo? Não, não sou capaz de ver nenhuma figura masculina em minha frente. Bastam todas aquelas pessoas estranhas que vi na grande embarcação cuja qual me trouxe até aqui. 

Preciso registrar tudo, tudo, para mostrar aos meus líderes, à minha família. Busco meus papiros e sento-me na escrivaninha que me é possível, próxima ao dossel onde estou descansando, e escrevo, relato, amedrontada, mas o faço. 

Meus lábios se entreabriram, tentando questionar tudo isso comigo mesma, mas nenhuma palavra escapa deles. Eu permaneço aqui, imóvel, como se temesse que qualquer movimento pudesse dissipar a visão diante de seus olhos. 

O vento que escapa de uma fresta discreta brinca suavemente com as cortinas de renda, criando uma dança etérea ao redor dela, enquanto meus pensamentos se perdem na figura misteriosa lá fora que eu acabo de vislumbrar.

Eu posso sentir a pulsação do meu próprio coração, cada batida ecoando no silêncio da madrugada. O desconhecido nos montes parecia tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante. Uma inexplicável sensação de conexão se estabeleceu, como se “aquilo” pudesse compreender-me ou, até mesmo, ter vivido uma história similar à minha. Muitas vezes, histórias se cruzam e eu preciso parar de temer as pessoas, preciso parar de pensar que todos os seres masculinos são diabólicos e monstros. Talvez até eu ganhe um amigo-irmão um dia. É o que vibra em meu coração, como se houvesse um fio invisível de verdade. Para isso eu preciso parar de acertar homens com a minha flecha. Não farei mais isso. Não aqui. Com ninguém. Prometo para mim mesma. 

Com um suspiro involuntário, me aproximo novamente da janela e não mais o vejo. Será alucinação? Alucinose? Ele desaparece dos meus olhos, mas a imagem do homem nos montes permanece gravada em minha mente. E se ele se aproximou do castelo e conseguiu entrar? Fecho os olhos, como se assim eu sentisse mais veracidade e sensibilidade no ambiente e percebo que ele pode ter adentrado no castelo. Ele está presente neste lugar, sei que está. Olho novamente para a porta e me acalmo. Por mais presente que aquela criatura Indecifrável esteja, ela não será capaz de adentrar às portas das alcovas particulares deste grande recinto. 

O mistério daquele quase encontro noturno paira no ar, deixando-me ansiando pelo desenrolar dos acontecimentos que o destino reserva para mim neste castelo. 

...

Descrença e desconfiança. Foram esses os princípios que me trouxeram aqui. Abracei o incerto, o irreal, abandonando minha vida anterior atrás de algo que, à princípio, me parecia um mero devaneio, mas agora é angustiantemente verdadeiro.

Juntei todas as economias que pude, me desfazendo de todos os bens que me cabiam, para poder partir com todos os recursos possíveis. Após dias e mais dias de uma jornada cruel e longa, cheguei a um pequeno povoado. Muitos idosos, poucos adultos e nenhuma criança. Este último fato me causou um desconforto visceral e inesperado.

Eu deveria esperar pela carruagem que me levaria pelo último trecho do meu caminho.

Os moradores mal se dirigiam a mim, e quando eu os forçava, por meio de minhas diversas e invasivas perguntas, eles condensavam suas respostas ao mínimo possível, apenas me indicando onde esperar pelo cocheiro.

O povoado era pequeno, bem pequeno para os meus padrões. Úmido, escuro, quase pútrido. Não esbarrei com uma dúzia de pessoas, o que me causou uma estranheza exponencial.

Conforme o esperado, a noite chegou, e o cocheiro também. Eu seria seu único cliente, se é que posso me identificar desta forma. O sujeito vestia um manto escuro, denso, velho e maltratado. Era pouco mais baixo do que as outras pessoas que observei, embora sua estatura reduzida não condissesse com sua força sobrenatural, a qual demonstrou ao erguer minha única mala, desprezando totalmente o peso exagerado.

A viagem seguiu sem maiores intercursos. Não trocamos palavras, nem olhares, nem coisa alguma. Seguimos floresta adentro, por uma trilha que mal era visível. Me questionei quantas vezes ele teria realizado aquele caminho… Inúmeras, talvez.

Após uma subida íngreme e desleal, ele parou. Senti uma estranha angústia descer pela garganta e tomar conta do meu estômago. Não o vi descer do banco frontal, tão pouco ouvi retirar minha mala de trás da diligência. Abriu a porta lateral e fez menção para que eu saísse. Senti que, se ousasse desafiar sua sugestão, seria estripado e largado à própria sorte.  Estava acuado, como uma presa indefesa, mas segui a ordem.

Não pude localizar o povoado, nem me esforçando para tal. A floresta era densa e escura, iluminada por poucos pontos de luz, espaçados, que indicavam a presença de lamparinas. No segundo seguinte, tanto a diligência quanto o cocheiro haviam desaparecido, sem deixar rastro ou som algum. Nada ali fazia sentido, tão pouco o que eu presenciei em seguida.

O Castelo erguia-se imponente, tal como uma entidade sobrenatural, atemporal e titânica. A morte reinava em cada torre, cada quarto, cada porta e janela. Tudo me causara terror, mas não o terror que eu já conhecia, e que escrevia em minhas obras, mas sim um terror feroz, cruel, brutal, rígido e ávido por sangue.

A ânsia e o desespero congelaram cada músculo do meu corpo, de forma que levei alguns segundos, ou horas, para me recompor. Minha cognição estava prejudicada, talvez pela longa viagem, talvez pelo espanto, talvez pela falta de tabaco.

Balancei a cabeça, tentando me ater ao último fio de sanidade que me restara. Foi quando meus olhos me pregaram uma peça cruel.

Pude ver, dentro do Castelo, uma figura feminina. Sim, claramente uma mulher. Soube, dentro do meu ser, que ela também havia me visto, apesar da generosa distância entre nós.

Havia vida dentro daquelas paredes, restando-me descobrir que tipo de vida era aquela. Poderia, também, ser uma penosa e bem delineada armadilha. Eu poderia estar sendo guiado para um abatedouro, destinado ao fim mais mórbido que meu lado pessimista pudesse imaginar.

Antes que eu pudesse conceber qualquer pensamento concreto, a figura desapareceu, fechando as cortinas da janela. Ela era real. Real e viva, tão viva quanto eu. Fora este o momento oportuno para que eu pudesse recobrar o controle sobre minhas pernas e caminhar em direção à porta do Castelo.

Faço uma pequena e rápida prece aos deuses e bato à porta.

Ela se abre sozinha.

Texto publicado na 5ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de maio de 2024. → Ler edição completa

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