Diário de Anto Stefan Miahi

Imagem criada pelo autor, com CanvaIA

Diário de Anto Stefan Miahi

(Notas em meu caderno) 

15 de junho de 1871 - Volto uma vez mais a este caderno velho e surrado. Talvez já tenha se tornado um hábito, colocar nestes diários minhas angústias e pensamentos, e eventuais alegrias nessas páginas. Já não sei quantos escrevi, em meu escritório devo ter uns quantos armazenados na velha estante no lado esquerdo da mesa de trabalho, junto com meus livros queridos.

Já faz algum tempo que me correspondo com uma personalidade do meio leste da Europa, devo ter em minha maleta neste momento umas três cartas e pelo menos dez telegramas. Segundo as correspondências temos afinidades intelectuais. Algo poderoso em cada uma delas me compelia a responder, uma sensação indescritível, mas aqui tentarei traduzi-las. Devo dizer que o que senti era provocante, uma emoção que me deixa ainda agora agitado, ansioso, como se ali houvesse um feitiço e a cada palavra… Não! A cada onda das letras, elas estavam me atraindo, conduzindo minha existência, e por fim, a guiar minhas mãos para responder tão rápido quanto me fosse possível. Senti como um apaixonado respondendo a amante, numa carta secreta, contando segredos obscuros. Por vezes como uma inocente criança confessando à mãe seus feitos do dia com total inocência e despretensão.

Inegável que ao terminar, o ar que saía dos meus pulmões era como se estivesse libertando minha alma de dentro de um cativeiro do qual naqueles momentos não tinha como sair, e que a chave para tal era colocar o ponto final naquela folha, branca e inocente.

Após alguns minutos. -  Após uns quantos chacoalhões da carroça e algumas tantas maldições proferidas, assim como insultos ao cocheiro e seu amigo, pude retomar os pensamentos aqui nessas páginas.

Para uma pessoa como eu; que sou dado às letras, ao pensamento, aos livros; me ver às voltas com uma baioneta em mãos, preparando o mosquete, e ouvindo o estrondoso som das explosões e o zunido dos projéteis voando por sobre a cabeça, realmente foi inesperado para assombroso. Uma completa mudança de ares.

Isto já se converteu em rotina realmente, estar com o lápis em uma mão e um caderno na outra, ainda mais após meu regresso daquele infame conflito entre os poderosos, Bonaparte e Frederico. 

O cheiro da pólvora, das cinzas e do sangue ainda atormentam meu nariz e, os gritos, a minha memória. Campos verdes agora desfigurados, marcados e banhados com sangue de homens valentes e covardes, astutos e ignorantes, de amigos quanto de inimigos.

Faz um pouco mais de 3 dias que me encontro dentro desta repugnante carroça, e ainda me faltam um dia e umas quantas horas para chegar ao meu destino.

Escutando o condutor, um homem velho e rechonchudo, com uma barba malfeita, com uma semicalvície que ele oculta com um chapéu velho e sujo. O que lhe falta de altura compensa com o falatório. Enquanto seu amigo, que vai sentado ao seu lado direito, é alto, esguio, tão quieto que parece morto. Seus olhos cansados, e a cara de quem não quer nada com nada, não fazem jus a sua força física jovial, lançou as malas que eu levava com apenas uma mão para o alto da carruagem, e para o cúmulo repetiu a façanha com as de uma jovem senhorita com seu irmão e cuidadora que me acompanharia nessa viagem.

Pelo que pude notar a conversa de ambos não passava de, - “Adrian” - esse parecia ser o nome do homem alto e silencioso e do cocheiro pelo que percebia era Loui. - “Clarice não me deixou quieto, só por causa que me encontrei com os rapazes da estalagem para beber…” após isso me dei conta do quão desinteressante eles eram.

16 de junho de 1871 - Ontem à noite comecei a escrever e, ao relatar os fatos, terminei por cair em devaneios sobre o cocheiro e seu amigo, mas devo dar alguns pontos importantes a estes meus relatos. Acho que o cansaço e a monotonia da paisagem me levaram aos braços de Morpheus. 

Retomo então para as minhas ideias originais. 

Há um pouco mais, ou menos, não tenho certeza, de um mês, recebi minha última carta dele, dando as indicações e detalhes para minha viagem até sua terra. Com tantos preparativos para essa jornada, ainda mais depois de regressar da guerra, e mal ter pisado em Paris, já me aventurar novamente, tira o fôlego de qualquer um. Acabei não fazendo um registro justo e detalhado deste fato crucial nos dias anteriores.

Seu remetente era de uma parte de um país esquecido pelas divindades. Romênia. Um lugar cheio de uma mística, de umas quantas lendas, verdadeiro centro de contos. A história da região contada pelos ciganos é realmente impressionante se fosse crer em tudo o que dizem.

Devo acrescentar que é um texto elegante aquele que encontrei naquelas duas páginas, além de uma caligrafia impecável, da parte de um tal Conde Drácula. Suponho ser uma pessoa realmente culta, douta, pois em sua carta não notei um erro de sintaxe ou de modismo populares, pois sendo romeno, escreveu com exímia clareza, em um francês belíssimo. Isso me encantou, mesmo que minha área de entendimento fosse a História, os fatos, os heróis, aquelas palavras me cativaram de uma forma que apenas meus escritores favoritos poderiam.

Um convite para uma visita para explorar a história local, e acessar livros, ter contato com documentos exclusivos, e segundo o que dizia na carta, ter contato com um outro estudioso da história e da sociedade. 

Paris estava um caos, e eu, só queria uma boa desculpa para pegar minhas coisas e sair daquela cidade infernal. Essa é uma oportunidade que não posso me negar. Corri para organizar minha partida. 

18 de junho de 1871 - Cheguei hoje no meio da tarde, por volta das 15h, à região de Bram e há coisas que devo realmente relatar do dia de hoje nestas páginas. 

A vista era montanhosa, com pequenas cidades sombrias e tristes, nos tons de cinza, marrom e branco, óbvio que aqui faz um frio de doer os ossos. O clima frio e severo do lugar não é convidativo, mesmo nosso cocheiro falante rendeu-se ao silêncio no trecho final da corrida. Todos tentavam manter a cabeça calma, e o corpo quente, por sorte a companhia de dentro da carruagem não era de todo ruim. A jovem, com sua dama e o acompanhante tinham consigo um pouco de vinho de Lyon.

Um breve comentário sobre os que estavam dentro da carruagem, a jovem, com olhos azuis, tinha cabelos negros bem amarrados numa trança perfeitamente trançada, o rosto denunciava sua pouca idade, passava muito tempo observando o exterior; enquanto aos que a acompanhavam: era uma senhora magra com rosto severo, loira, com cabelo abaixo dos ombros, de olhos verdes, tinha um crucifixo grande de madeira em seu pescoço, onde ela por várias vezes o buscou, como quem deseja receber conforto; enquanto ao cavalheiro, um tanto jovial, mas já passava dos trinta anos, suas roupas bastante elegantes, bem cuidadas, pele branca, com um bigode bem tratado adornado por bochechas rosadas, obviamente pelo frio e pelo vinho, o que deixa ele com aspecto ainda mais bonachão.

Nos primeiros dias pude conversar melhor com o cavalheiro, apesar de suas roupas, era uma pessoa simples e sociável, já a sua companheira por outro lado beirava o fanatismo quase igual aos jacobinos, por vezes intragável. Quanto a jovem, bem, tratava das coisas de seu tempo.

Eu, o sargento Anto Stefan Miahi, um historiador e militar, agora estou no meio das montanhas da Romênia, na intenção de mudar meu próprio rumo de vida. Longe de casa e outra vez com a promessa de ser reconhecido. Devo ter inalado muita fumaça de canhão.

Assim que cheguei a Bram, tive a infeliz surpresa de que teria que trocar de carruagem. Acabei numa conversa assombrosa com os condutores.

— Mas senhores, segundo minhas fontes, estamos a menos de duas horas de alcançar nosso objetivo. — Supliquei aos dois cavalheiros sentados no coche quase se abraçando para manter os corpos quentes, seus rostos estavam quase vitrificados de tanto frio.

— Senhor, sinto dizer que nem Jesus nos fará subir o caminho proposto. — Falou Adrian com uma voz trêmula, parecia um baritono, abraçando a si mesmo, com as mãos dentro do casaco negro que vestia.

— Sinto dizer que nem por minha mãe vou por este caminho, o senhor não viu enquanto vínhamos para esta cidade perdida de Deus? — A pergunta de Loui com uma voz rouca de quem bebia e fumava sem qualquer controle, mas me fez lembrar de algumas coisas. Todos com que cruzamos na estrada fazia o comumente sinal da cruz. Em seus rostos havia apenas uma expressão de angústia e desdém.

A conversa não avançou além deste ponto, e assim terminei no meio de um povoado estranho, que me olhava à distância como se eu tivesse alguma praga, ou estivesse acompanhado do próprio demônio.

Não demorou para que um velho senhor viesse pela estrada, arrastando seu corpo cansado, com um rosto de poucos amigos.

— O senhor vai para o castelo? — Perguntou avançando lentamente, sem olhar para qualquer lado. Ele para a minha frente, ele apenas move os olhos na minha direção, sinto que aquele olhar vai além de me ver.

— Sim, sim, eu vou! — Tentei simular meu melhor sorriso, mas algo no meu interior dizia que seria um esforço inútil.

Ele voltou a olhar para frente, baixou a cabeça, cuspiu no chão em frente aos meus pés, o que me fez dar um passo e meio para trás, mas antes mesmo que eu pudesse dizer ou fazer em resposta aquilo, o senhor se virou para mim, e logo estendeu os braços e agarrou minha mão direita. Naquele ato ele me entregou um colar de tira de couro com uma cruz de madeira rústica. Ele recolhe os braços para junto do corpo, rapidamente com sua mão esquerda ele tira seu gorro azul, e faz o mesmo sinal que vi na estrada quilômetros atrás.

De Anto Stefan, 18 de junho de 1871 

Boa noite, meu estimado amigo, Maurice!
Como tem passado?
Já faz alguns dias que parti e espero que tudo esteja na mais perfeita ordem na nossa amada Université de Paris.

Agora são 22h, deste mesmo dia, após me estabelecer melhor pude retornar a este meu diário, pois ainda me sinto incomodado com os eventos até o presente momento.

Após aquela cena rara com aquele senhor na vila, ouvi o som do relincho dos cavalos, além do estalar de um chicote, não muito longe, descendo a estrada que eu deveria tomar. 

O senhor deu meia volta nos calcanhares sem que eu notasse e tomou um caminho contrário, quando me dei por mim, apenas vi suas costas ao longe desaparecendo no meio do povoado.

Não demorou muito para que uma carruagem surgisse ao longe. Ela tinha uma pintura preta, e quanto mais perto chegava melhor eu podia ver os detalhes de suas estruturas, como cortinas vermelhas iguais a brasa viva, janelas adornadas com bordas de prata, e quatro cavalos negros maiores dos que eu havia visto na guerra. Pararam ao lado de onde eu estava. O cocheiro tinha seu rosto coberto por um cachecol vermelho escuro que deixava sua respiração passar e condensar o ar, suas roupas eram de couro tingido de preto, e um chapéu de abas largas e um trio de penas adornando. Os olhos dele eram soturnos, frios, parecia que para onde ele fosse olhar poderia congelar.

— O senhor se chama Anto Stefan Miahi? — Uma voz grossa que era abafada pelo cachecol deu para ser ouvida.

Ele nem esperou minha resposta e saltou da carruagem. Um homem alto, o pouco de pele que se podia ver, era branca, tal qual mármore, magro, de braços longos, e um cabelo comprido, de um castanho claro. Agora que ele estava mais perto, deu para ver a cor dos olhos dele, num tom verde e amarelo.

— Sim, sou eu. — Respondi o mais prontamente que me foi possível — Você é o cocheiro que vai me levar até o Castelo, do Conde? — Mesmo para um homem como eu experimentado na guerra, que viu coisas horríveis, aquela presença era intimidante.

Ele apenas assentiu com a cabeça de maneira positiva, e logo foi pegando as duas malas que estavam no chão ao meu lado. Num piscar de olhos ele as colocou no teto e já abria a porta para que eu subisse, sua agilidade fugia claramente do normal.

A viagem foi no mais profundo e mórbido silêncio, a monotonia reinou plena nas horas que se seguiram.

Um tempo depois, ouvi duas pancadas ocas no teto do carro. Abri a janela da porta e coloquei a cabeça um pouco para fora, o suficiente para poder ouvir e ver.

— Mais à frente já podemos ver o castelo, senhor Miahi. — Pude escutar a voz gutural do cocheiro que com sua mão esquerda aponta para frente uma série de pontos brilhantes, ainda distantes, dentro de uma sombra imensa, que tão pronto começou a parecer com uma estrutura, e não demorou muito para delinear a construção em si.

Alguns minutos mais tarde eu estava cruzando um portão de ferro, um portal de pedra, com uma muralha que terminava no que parecia um despenhadeiro gelado. Uma curta passagem que levava à porta principal, num grande pátio, e no seu centro uma velha fonte que agora estava cheia de neve. Mais ao fundo uma outra passagem que levava para o estábulo.

Os cavalos reclamaram quando o cocheiro puxou as rédeas forçando sua parada, ele fez algum som que os animais reconheceram e fizeram silêncio. Aquele homem alto saltou, e quando me dei por mim, ele já havia aberto a porta. Sai tentando absorver todo aquele cenário que beirava o aterrador, sombrio, e belo, com algo de clássico. A arquitetura do lugar era impressionante, mesmo já quase estando todo o ambiente submerso na escuridão.

Quando olhei o horizonte e vi na linha das montanhas o sol lentamente desaparecer, foi que eu ouvi o som das malas tocando o chão e a porta de madeira maciça ranger loucamente, como se gritasse. Nisso uma sombra se projetou dela. No alto de uma escadaria espaçada que conduzia para uma porta de umbrais de madeira grossa, com entalhes que já não podia ver bem, em tom natural, e em cada folha o que pareciam desenhos em baixo relevo.

A porta ficou completamente aberta, a luz dentro era amarela e forte, deixando apenas ali a silhueta de uma pessoa alta, coberta por algo que parecia ser uma capa, e uma voz se projetou. Algo nela me fazia recordar as mesmas sensações que eu sentia ao ler as cartas e telegramas do Conde Drácula. 

— Já é noite meu jovem. As noites nessas paragens podem te matar numa única mordida. — Houve uma risada baixa ao final da frase.

— Certo… Claro! — Me apressei em subir as escadas, me esquecendo das maletas perto… bem… não sei em que momento ele havia subido na carruagem, porque quando me dei conta apenas ouvi o relincho dos cavalos, o som do ranger da madeira e um estalo agudo. — Deixe-me pegar as maletas, senhor, e logo vou apertar sua mão.

Por mais atrapalhado que pareça, tentei manter a pose diante de quem quer que fosse que estivesse ali observando no alto da escada com aquela postura imponente e sombria.

Assim que recolhi minhas coisas, já não havia mais luz do sol, neste momento olhei para o céu instintivamente, quando me deparei com aquele mar de estrelas, por um breve momento senti que o chão em meus pés estava desaparecendo e eu caia, foi então que senti em minhas costas um toque suave, gentil, e um rosto estava para se revelar a mim, quando apenas senti que caía num sono prazeroso, um abraço bem-vindo.

Maurice, há algo raro e estranho neste lugar, dentro deste quarto tão suntuoso, mas ao mesmo tempo tão frio, o carmesim das cortinas da janela, o roxo dos cobertores e travesseiros, a pedra cinzenta das paredes e a madeira dos móveis, parecem não vir deste mundo. Mais estranho é que senti essa emoção inquietante desde o momento que passei os portais do muro desde a construção belíssima de tão sombria. Existe um ar que me absorve e me acorrenta aqui.

Bem, já não vou mais importuná-lo nesta carta com estes detalhes anormais, aguarde minhas próximas cartas ou telegramas.

Desde já desejo a você, meu amigo e mentor das artes da história, toda a boa sorte.

De seu velho amigo, Anton.

PS.Sempre, “Hic et ubique terrarum” (“Aqui e em qualquer lugar do mundo”) carregando o lema de nossa amada instituição no coração e na mente.

Texto publicado na 5ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de maio de 2024. → Ler edição completa

Leia mais desta autoria:

Anterior
Anterior

Convite

Próximo
Próximo

Perfeitos Estranhos