O Caçador
A criatura fugia pelas montanhas e Miguel estava exausto. Nunca, em suas décadas de caçada, tinha tido tão pouco tempo para si, para descansar, e para comer. Nunca tinha sentido tanto frio. A gigante lua prateada pairava sob o céu há dias, imutável. Não se movia, crescia ou diminuía. Apenas ficava lá, o tempo todo naquele mesmo ponto fixo, impossivelmente grande, ofuscando as estrelas. O sol não nascera desde que a maldita lua surgira. Ao menos não era vermelha. Suas montanhas estavam tomadas pela nevasca cujo gélido vento açoitava sua pele sem dar trégua. A noite sem fim ainda durava, já havia perdido a conta de quanto tempo. Não mais que um mês, ele dizia a si mesmo, não mais que um mês.
Não sabia o porquê dessa noite eterna, o porquê dessa lua imutável, quando isso acabaria, ou nem mesmo se acabaria. Mas sabia que precisava continuar caçando. Caçava não porque queria, muito menos porque gostava. Miguel o fazia porque era seu dever patrulhar e proteger as montanhas onde nasceu – tinha feito essa barganha de livre vontade, era verdade – mas o fardo de sua vida havia ficado pesado. Como que para calar suas dúvidas, instintivamente, tocou o medalhão do sol em seu peito, reconfortando-se com sua presença. Inspirou profundamente, expandindo seus sentidos, e buscou certificar-se de que ainda se mantinha no rastro. Estava, e, portanto, continuou.
A verdade é que as montanhas lhe eram conhecidas. Sabia muito bem onde estava, mas a gélida noite branca havia instigado toda a sorte de monstruosidades a saírem de seus covis. Há seis refeições – era assim que podia contar o tempo – passara por um acampamento alvejado. Lá, encontrou uma família inteira assassinada, seus corpos parcialmente mastigados ainda frescos e o sangue quente, espalhado por todo lado, derretera um pouco de neve onde tinha empoçado, formando uma viscosa lama carmesim. Sangue, neve, e terra. Ao menos com isso já estava acostumado. Desde o acampamento, caçava a assassina criatura pelas montanhas. Ainda sem sucesso, mas seguia em seu rastro.
Horas de caminhada montanha acima se passaram e seu corpo já não aguentava mais. O frio, a fome, a neve, a falta do sol, a interminável caçada, tudo isso minava sua força e sua vontade. Não aguentava mais, caiu de joelhos no chão. Olhou para o céu, a lua impossivelmente grande, impossivelmente clara, a nevasca que não dava trégua, e, pior de tudo, a falta do sol. Pela primeira vez na vida considerou desistir e se envergonhou por sua fraqueza. Se enfureceu com sua vergonha. Fora acolhido pelos caçadores do sol ainda órfão, treinado, alimentado, educado. Sim, tudo isso era verdade. Deram a ele uma casa, um nome, um propósito, mas também tomaram sua vida em troca. Jurou abster-se de uma família, de amigos, de filhos, de viver. Jurou caçar. Desde que aceitou se tornar um dos sóis essa fora sua vida: sangue, morte, e vingança. Já sem ver o venerado sol há dias, frustrado, questionando sua vida e sua vocação, Miguel, rompendo a corrente prateada com suas próprias mãos, arrancou o medalhão de seu peito, atirou-o à neve e chorou. Sem saber quanto tempo ficou ali prostrado, desmaiou.
Acordou ainda no mesmo local, seu medalhão já levemente encoberto por uma nova camada de neve que continuava a cair. O céu ainda era o mesmo, mas o vento parecia ter piorado. A visibilidade havia diminuído. Se levantou com alguma dificuldade, esfregando seus olhos e sentindo a pele arder com o sal de suas lágrimas congeladas. Precisava comer. Precisava se aquecer. Juntou o pouco de gravetos que conseguiu encontrar e tentou fazer fogo. Conseguiu uma parca chama, um lampejo de luz e calor, de esperança. Lampejo que logo foi ceifado pela nevasca que não cessava. Tentou de novo, e de novo, e de novo, todas as vezes com o mesmo resultado. Um breve calor reconfortante, logo extinguido. Por fim, se rendeu a comer o pouco de carne salgada que ainda tinha e levantou-se, olhando para o medalhão ainda largado ao seu lado.
Titubeou, sua mente tomada por dúvidas. O sol o havia abandonado, o branco gélido tomava conta do que antes era luz, calor, e verde. Por outro lado – mas pelos mesmos motivos – as montanhas nunca precisaram tanto de um caçador. Lembrou-se dos corpos mutilados, da carne devorada, e do sangue empoçado. Terminaria essa caçada e então decidiria seu futuro. Questionar-se era um luxo para o qual não tinha tempo agora. Recolheu seu medalhão, colocou-o no bolso do casaco e seguiu montanha acima o rastro da criatura de cheiro inconfundível que precisava ser parada.
Já próximo ao topo, Miguel notou seu corpo entrar em alerta. Havia chegado ao seu destino, a criatura estava próxima. A batalha era iminente. Como já fizera muitas outras vezes antes, Miguel desembainhou a espada e deu os últimos passos em direção ao cume, em direção a muito mais do que apenas uma criatura.
Ao chegar, deparou-se com uma estrutura de rocha negra e formas geométricas impossíveis. O contraste entre a nevasca branca, o luar prateado, e a rocha era como olhar para um abismo que desafiava a razão e a própria sanidade. O cheiro da criatura vinha lá de dentro e, sem escolha, Miguel prosseguiu. Cruzar o arco e entrar na estrutura foi como entrar em outro mundo. Se lá fora o vento uivava e o branco cegava, ali dentro o silêncio ensurdecia e a escuridão era indecifrável. Deu mais alguns passos adiante e aos poucos seus olhos começaram a distinguir paredes de espaços vazios, e a cada passo mais profundamente entrava naquele santuário no cume da montanha, com o cheiro do monstro que caçava como seu único guia.
Virou à direita e chegou em uma grande sala aberta. O teto impossivelmente alto, as colunas grotescamente retorcidas, como vinhas negras que cresceram se contorcendo em si mesmas e então viraram pedra. Nada mais escutava do vento lá fora. Um par de olhos prateados surgiu em meio a escuridão. Era a criatura. Avançou em sua direção, mas ela, surpresa, fugiu. Miguel a perseguiu. Seus instintos tomando conta de seu corpo, a espada empunhada pronta para matar quando, de repente, os olhos de Miguel foram açoitados pela luz. A perseguição o levara até uma sala na qual as paredes de rocha eram translúcidas, deixavam passar a luz da lua diretamente em um altar da mesma rocha negra da qual era feita todo o restante da construção. O prateado da lua, o branco da neve, e o abismo da rocha se juntavam para permear o ambiente com um surreal brilho anil. Era como um lembrete do mundo hostil que o aguardava lá fora. Em meio à confusão pela impossibilidade do que via, Miguel sentiu dor. A criatura aproveitara o momento de desatenção para arrancar, com os dentes, um pedaço de seu ombro esquerdo.
Tomado pelos seus instintos, lutou. Por um breve momento tudo ao seu redor não mais importava, esqueceu da neve, do frio, da falta de sol. Esqueceu da insanidade do local onde estava, das suas dúvidas, de seu medo, e lutou. Defendeu-se de garras e dentes com sua espada e, encontrando uma oportunidade, feriu a criatura – decepando um de seus membros de onde jorrou o tóxico sangue rubro já conhecido de Miguel. O monstro, ferido, cessou seus golpes furiosos e fugiu. O primeiro instinto do caçador foi perseguir e terminar o que tinha começado, afinal não tinha ainda infligido um ferimento mortal. As monstruosidades podem se recuperar de coisas muito piores. Ao mesmo tempo, o altar lhe chamava, ele queria responder. Titubeou.
Perseguir a criatura significaria não mais encontrar essa sala, esse local sagrado de um deus desconhecido. Significaria voltar à sua vida de caçador. Ao frio, à fome, à nevasca. As paredes do santuário – sentindo sua dúvida – deixaram adentrar o vento gélido que rugia lá fora, açoitando a pele de Miguel e invadindo seus ouvidos. Estremeceu e institivamente levou a mão ao peito, almejando tocar seu medalhão do sol que não estava mais lá. Havia-o colocado no bolso. Nesse momento de angústia e dúvida, deixou a criatura fugir. Como que por uma demonstração de boa vontade, o altar restaurou a calmaria, novamente cobrindo o ambiente naquele curioso anil e silenciando o vento. Ainda exausto, drenado pelo recém combate, sentou-se no chão rochoso, de frente ao altar, disposto a ouvir o que a pedra tinha a dizer.
Miguel Alaric Sigel, caçador do sol, protetor das montanhas, aniquilador de monstros. Essa era sua identidade até aqui, essa fora a sua vida. Seu nome resumia bem quem era. Havia sido treinado para isso desde criança. Mas o altar lhe mostrou que poderia ter sido diferente. Infinitas outras possibilidades invadiram sua mente e ele viu que poderia ser o que quisesse, poderia ser feliz. Poderia abandonar o frio, a neve, os monstros. Poderia abraçar essa escuridão, fazer desse santuário seu lar. Bastava que renegasse o sol. Já não tinha o sol o renegado? Já não tinha o sol sumido dos céus, abandonando-o à neve? A dúvida dilacerava o caçador. Ele temia saber mais, mesmo assim o queria. Precisava saber mais. Rogou ao altar que lhe revelasse seus segredos. Queria compreender o que significaria abdicar de sua fé e aceitar outro deus. Mas também queria a paz, o silêncio, e o acolhimento daquele ambiente. Não ansiava voltar à nevasca, ao frio, e à fome. Desejava, mais que tudo, momentos de conforto e percebeu que já não os tinha há muito.
E o altar não mentiu. Não escondeu. Aquele era o santuário dos monstros e da noite. Era o santuário daqueles que Miguel passara sua vida combatendo. Mas a noite precisava dele, de alguém para brandir seu estandarte, e o receberia de braços abertos. Conceder-lhe-ia essa honra. Ele poderia ser o senhor de um novo mundo se assim desejasse. Isso o chocou. Era ao mesmo tempo inimaginável, inconcebível, e inaceitável, mas também completamente tentador. Poderia abdicar de tudo que acreditava, de sua vida, dos seus juramentos, em troca do conforto desse lar? Deixar os habitantes das montanhas à mercê das criaturas que os dilaceravam?
O altar, em sua infinita sabedoria, contra-argumentou. Disse-lhe que precisava de um campeão para coordenar as criaturas da noite. Poderia ser Miguel. Não era melhor que fosse ele? Melhor ele do que qualquer outro? O antigo caçador poderia conter as criaturas, diminuir o número de ataques, mantê-las sob seu controle, se portar como um carcereiro dos condenados. Estava a seu alcance. Era só tomar a oportunidade e o poder para si, bastava aceitar. Titubeou.
A oferta era doce, sensata, razoável. Sentia-se abandonado pelo sol, estava exausto, perdido, em uma terra que já não mais reconhecia como sua. E quem poderia culpá-lo? Se o fizessem, estaria ao seu alcance se vingar. Com o comando das criaturas, poderia direcioná-las como bem entender. Poderia subjugar seus inimigos. A noite já o tomara, já pensava como um deles. Ainda nem tinha a coroa e já havia sido corrompido. A alternativa era voltar à neve, ao vento, à fome. Não aguentava mais aquele branco sem fim, aquele frio interminável. Chorou, e aceitou. Resignou-se a aceitar a oferta. E assim levantou Miguel Ragnar Nott, o traidor.
A cama estava sem o lençol. O espelho estava quebrado. Na cômoda havia poucos pertences: apenas um hábito limpo, algumas roupas íntimas…