Além do Ser
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa, para o Castelo Drácula
"Torna-te aquilo que és" abrange o aceitar sua condição única, mas, no mesmo nível, traz a significação do eterno tornar-se, pois nunca, de fato, poderemos dizer que somos. Tornar-se o que se é não é possível, pois não somos. "Ser" refere-se a uma condição substancial, e o que "somos" é, tão somente, um vir-a-ser perpétuo. Sob o véu da morte lúgubre, findamos sem nunca termos sido. E, se "eterno vir-a-ser" é ser, então somos e não somos ao mesmo tempo.
A razão pela qual esta reflexão está sendo redigida não é apenas o deleite de pôr o "ser" em questão – como nos velhos tempos da filosofia. Estou certa de que a condição de ruína da humanidade reside na incapacidade de aceitar sua condição nadificante e, portanto, volto-me à questão do ser. Mas esta não é a única questão, pois "ser" é uma criação humana.
O que nos torna ainda mais dispostos ao vazio pertencente é o fato de que nada na natureza "é". O "ser-algo" é essencialmente uma questão humana. Nada que respira, exceto a humanidade, está "sendo", uma vez que quem criou o conceito de "ser" nem sempre existiu. As coisas que respiram estavam aqui, existindo. E nós, incapazes de tão somente existir, criamos o conceito de "ser".
"Ser" é, para nós, profundamente mais valioso do que "existir" – embora seja justamente no primeiro caso que a condição nadificante nos perturba. Enquanto você apenas existe, o "nada" não é uma questão. Mas, a partir do momento em que se "é" (do verbo "ser"), o nada torna-se o fantasma que se oculta nas sombras de seus próprios corpos. A dádiva de "ser" é a maldição de carregar o seu peso nadificante. "Ser" deveria significar uma condição superior ao "existir", mas tornamo-nos aquilo que somos apenas para desvelarmos que somos nada, tal como tudo o que existe.
"Tornar-se" implica que há algo a advir, entretanto, se o Nada é a única verdade, não há um "advir" a desvelar. Portanto, redundante, a frase se manifesta assim: "Nada há a advir para aquilo que nada se é". Se o Nada é o invólucro da vida, por que viver? Vivemos, justamente, em função do Nada; sem ele, não haveria vida tal como a conhecemos. Aceita-te como o Nada que és – talvez esta seja a frase correta.
Em um tempo de idolatria ao "sou", a revelação do Nada é, decerto, perturbadora. O Nada é dificilmente aceito pela lógica da racionalidade, o que é um fato curioso, já que viemos dele e voltaremos a ele. Alguns se questionam sobre o que "é" o Nada; alguns o chamam de Deus. Outros dizem que não pode haver um "nada", pois o "nada" é o insignificante ou o ausente. Mas o Nada não é insignificante, tampouco ausente – por isso é tão difícil para a mente humana aceitá-lo. O Nada é nada.
"Somos" o Nada, vivemos o Nada, estamos no Nada. O Nada é o único Deus. Somente no Nada é possível um Algo – ele é o ambiente propício, a condição basilar. Então, antes de tornar-te aquilo que és, reconhece-te como parte de uma totalidade nadificante. Pois não importa o que tu és, pois não "és"; o que importa é o que chamo de "Antesser": tudo o que se faz, pensa, expressa, sabe, sente e aprende no processo do caminhar consciente sobre o Nada. Isso é antesser.
"Antesser" é um conceito humano para significar a existência em suas mutabilidades e características psíquicas, considerando a constituição nadificante própria da vida. Não apenas considerando-a, mas principalmente valorizando-a. Antes de "sermos" – se é que é possível "ser" – precisamos antesser.
Eis aqui mais uma bela razão para viver: a condição da vida, florescida no solo nadificante, é a única que pode nos permitir o Antesser. Se digo que “sou”, é porque a condição de "ser" já se significou ou como um estado a ser alcançado, como um destino final, uma verdade imutável e perpétua. Enquanto isso, antesser é essencialmente provisório, instável, efêmero. Como um livro, ele faz-se de capítulos que contam uma história completa. Se antessou, é porque sei que tudo o que fiz e farei, tudo o que já pensei e hei de pensar; tudo o que aprendi, conheci, me arrependi ou mudei – absolutamente tudo, no passado, presente e futuro – faz-me na profundidade que me significa. E isso não é linear ou preditivo. Não é algo a ser alcançado ou algo a se tornar. É plural e total, contínuo e dinâmico, assentado sobre o Nada.
Antesser não é o mesmo que Estar. O Antesser considera toda a sua historicidade, mutações, conquistas, compreensões, conhecimentos e sabedorias. E, principalmente, sua condição de Nada – antes disso tudo e depois disso tudo. Eu antessou porque o que sou é Nada: o Nada antes e o Nada depois. Entre ambos, antessou o que antessou. E não há como não antesser enquanto houver vida. E mesmo que eu antesseja na certeza de "ser" algo, isto é, pois, antesser.
Sim, ser e antesser são criações humanas. Mas "ser" foi criado para identificar as coisas que existem e, depois, para significá-las: aquilo "é" um peixe, eu "sou" uma pessoa, eu "sou" especial e você não "é" especial. Em antesser, tudo isso é válido, mas sob outra ótica: não posso ser especial a todo momento, nem para todas as pessoas. É ridículo considerar que "sou" bonita ou feia, pois sou ambos – depende do dia, de quem olha, de minhas condições físicas. Se estou mais arrumada, se dormi mal. Apegados ao "ser", limitamos nossa compreensão da condição humana.
"Tornar-te aquilo que és"? Isso implica que "és" algo e que não se pode tornar-se o que não se é. Mas "somos" humanos tal como um peixe "é" um peixe? Tal como um peixe não pode "ser" um macaco? Pois um peixe não só não pode ser um macaco, como também não pode agir ou parecer um macaco. Nós, humanos, vamos além do "ser". Ainda assim, dizemos "eu sou", tal como um peixe "é".
Antesser afasta a ideia de que o que "sou" é o que "sou" e que não posso ser outra coisa além do que estou fadado a ser. Antesser é sobre todas as possibilidades da existência humana – possibilidades que nos diferem de um simples peixe. Antessomos humanos porque, mesmo que não sejamos um peixe, podemos aprender a nadar. Antessomos humanos porque, mesmo que não sejamos um peixe, criamos maquinários que nos permitem mergulhar nas profundezas do oceano.
Antesser é "ante" porque indica anterioridade – não no sentido cronológico, mas no sentido de estar sempre antes do ser: antes que eu possa ser algo, eu mudo; antes que o imutável me alcance, eu me desvio; antes que eu me defina como caminhante, aprendo a nadar. Portanto, não sou apenas caminhante. Sou caminhante e nadador. E um peixe é apenas um nadador. E mesmo que sua espécie evolua para além disso, ele nunca terá o mesmo grau de possibilidades de um humano. Eis a razão do antesser.
"Torna-te aquilo que ante-és" – é o que, por fim, faz verdadeiro sentido. Pois aceitar o antesser é aceitar sua condição dinâmica e sua capacidade de tornar-se qualquer coisa.
"Torna-te aquilo que és" abrange o aceitar sua condição única, mas, no mesmo nível, traz a significação do eterno tornar-se, pois nunca, de fato, poderemos dizer que somos…