Castelo Vampírico: Agora conheço em parte, mas, um dia, conhecerei plenamente
Diário de Rute Fasano
23 de dezembro - Estou há dez dias sem sair do quarto, são muitas as sensações, a ansiedade, o medo, a raiva, tristeza, todas elas presas e misturadas na minha mente, borbulhando, e correndo pelas minhas sinapses e causando um estrago no meu psicológico. As únicas coisas que tenho feito esses dias já se tornaram tão rotineiras que nem me dei ao trabalho de escrevê-las diariamente, pois se resumem apenas a acordar, tomar banho, meditar, esperar pacientemente com o ouvido atrás da porta para a boa alma que ainda não conheço e sempre vem deixar o café da manhã, o almoço e o jantar na mesa ao lado da porta do quarto. Nunca vejo essa pessoa, mas ela sempre bate três vezes na porta e sai caminhando a passos lentos e arrastados. Eu só a ouço, porém sempre agradeço com um bilhete escrito à mão. Depois do café da manhã eu escrevo ouvindo música, tem um toca-discos aqui que foi deixado provavelmente por essa pessoa depois do meu primeiro encontro com Drácula.
O som muito específico da agulha passando pelo vinil me faz relaxar, então escrevo até o almoço e depois fico à porta ouvindo, me alimento e coloco o prato e o copo na mesa do lado de fora. Escovo os dentes, releio um pouco do único livro que trouxe. Preciso encontrar uma biblioteca nesse castelo. Volto a escrever até o jantar, volto à porta e escuto, me alimento, faço minhas outras necessidades fisiológicas específicas e tomo banho, escovo os dentes e me preparo para dormir. Me deito e leio até ficar com sono e durmo. Essa rotina é parecida com a que eu tinha fora do castelo, tirando a parte da escrita e adicionando um trabalho repetitivo, fascinante, porém estressante.
Tenho estado tanto tempo presa no quarto que memorizei todo o ambiente, tanto que consigo perceber quando algo diferente aparece no quarto. A grande cama com dossel, com lençóis de linho na cor verde escura, travesseiros com fronhas bordadas à mão, papéis de parede verdes com arabescos numa tonalidade que parece bronze, há uma escrivaninha de castanho-avermelhado bem escuro perto de uma janela, parece algo de muito boa qualidade, diferente dos móveis de madeira suspeita que tenho em casa. Há uma cadeira da mesma cor onde me sento para escrever, um armário com espelho grande ao lado, uma poltrona em frente a uma lareira que nunca precisei usar, pois aqui parece que o clima nunca muda. Um grande tapete persa com detalhes verdes escuros, diferentes tons de marrons e vinho, a textura macia que me faz andar descalça por ele por horas quando estou bloqueada criativamente ou cheias de questões não resolvidas na minha cabeça, gosto da textura dele em meus pés, me acalma.
Uma vez ou outra eu penso em fugir do castelo e voltar para minha vida, mas me vejo obcecada por algo novo, e só quero saber disso, ouvir e falar sobre isso. E Drácula, o castelo e seus hóspedes são minha nova obsessão, eu quero entendê-los, estudá-los, me aprofundar neles, analisá-los minuciosamente até que eu me sinta saciada por esse conhecimento tão fora do comum, tão fora do meu comum lógico e pragmático. Porém, tenho medo, pois sinto que de alguma maneira, aos poucos, Drácula tem tentado ter controle sobre mim, me controlar como uma marionete, será? Eu não consigo pensar sobre o motivo disso, já que estou aqui por vontade própria. Se ele quer que eu escreva para alimentar ele e o castelo, por mim tudo bem, desde que se mantenha longe das minhas veias e artérias.
Fui despertada das minhas viagens dentro da minha mente pelas batidas na porta fora dos horários habituais, fui até a porta e pude ouvir os passos se distanciaram, era a mesma pessoa de sempre, já conheço seus passos. Abri e tinha uma grande caixa baixa, porém larga com um envelope vermelho e preto adornado de arabescos dourados, abri o envelope e aqui escrito com uma bela caligrafia, escrito dessa forma:
“Prezada Rute,
É com imensa honra e profundo fascínio que lhe envio esta carta, convidando-a para o anual Baile de Máscaras do Castelo Drácula. Este é um evento de requinte e mistério, onde o traje formal é obrigatório, e uma máscara é imprescindível.
À meia-noite, será servido um banquete memorável, seguido pelo brinde com nosso especial liquor-carmesim, servido em taças de diamante vestal, para celebrarmos o ápice da Lua Cheia. A música encantadora nos acompanhará até às três da manhã, momento em que solicito gentilmente que nossos estimados hóspedes retornem aos seus aposentos.
Sua presença, sem atrasos, é solicitada para as dezenove horas de amanhã. Esperamos ser agraciados com sua presença sublime neste deslumbrante evento.
Com respeito, Conde Drácula"
Dentro da caixa havia um belo vestido preto, com pequenos bordados dourados no busto parecendo estrelas num céu negro, godê longo, acinturado, gola alta, mangas longas bufantes, o tipo de vestido que eu usaria se eu tivesse o hábito de usar vestido. Junto a ele também havia uma máscara grega trágica negra com uma lágrima dourada do lado direito. Um baile mesmo que pareça um evento social assustador que já me causa certa comichão, é também uma oportunidade de saber mais e ainda, quem sabe, poder me encontrar com outros hóspedes. Tenho que preparar meu psicológico para isso e aproveitar essa oportunidade.
24 de dezembro - Chegou o dia do baile, e eu estaria mentindo se dissesse que estou preparada para ele. Uma vez li que quando você tem medo de uma situação e a faz mesmo assim, isso é coragem, então tenho que ir e acreditar que sou corajosa, pois de que outra forma eu conseguiria saciar essa minha curiosidade, se não fosse enfrentando meus medos?
Me vesti, prendi meus cabelos atrás, deixando algumas tranças soltas, estava ansiosa demais para planejar um penteado mais elaborado. Coloquei minhas botas confortáveis, mesmo que junto à caixa estivessem saltos adequados para a festa, eu não conseguiria usá-los. O vestido longo escondia um pouco dos meus sapatos, além deles serem mais úteis caso eu precisasse correr. Me olhei no espelho e o que vi me agradou. Coloquei a máscara que me obrigou a deixar os óculos de lado, pois não dava para usar os dois. Respirei fundo e saí do quarto, e como sempre eu não sabia o caminho, mas sabia como chegar lá.
No salão de baile, com lustres e candelabros majestosos, todos bem-vestidos, com uma diversidade de máscaras bem decoradas, músicos tocando uma música num volume agradável, pessoas conversando, outras rindo, a maioria dançando, olhei ao redor tentando ver se reconhecia alguém mesmo com máscaras, mas não fui bem-sucedida, fiquei um longo tempo no canto apenas observando. A única pessoa que reconheci pelo jeito de se movimentar foi Drácula. Vestido com requinte, todo de preto, com a camisa de seda de um vermelho vivo brilhante, uma sobrecasaca preta com bordados dourados e o forro escarlate. Ficou um tempo conversando com os convidados e dançou com alguns deles. Olhou em minha direção e era como se soubesse que eu os estava observando, veio andando e eu podia sentir cada passo seu. Respirei fundo e me preparei.
— Permita que eu conduza? — Ele disse estendendo a mão para mim, olhei para ele e concordei com a cabeça sem pensar demais. Dançamos em silêncio por algum tempo, até ele quebrar o silêncio:
— Ah, sim, os bailes de máscaras... uma festa para os vivos, onde escondem suas verdadeiras faces por trás de máscaras elaboradas. Interessante observar como revelam mais de si mesmos do que jamais admitiriam em suas formas mundanas.
Silencio entre nós novamente:
— Entendo suas hesitações, minha cara, seu desejo de às vezes escapar deste lugar que pode parecer uma prisão. Mas saiba que posso oferecer a você e a todos os que aqui estão algo muito mais profundo do que simples entretenimento. Posso saciar a sede insaciável de vocês por inspiração e conhecimento, através de meios que alguns considerariam sombrios. E eu sei que você compreende o preço que deve ser pago por tal conhecimento?
Nada do que ele estava dizendo era mentira, desde que entrei no castelo as ideias fervilham da minha mente, mesmo que às vezes eu não consiga colocá-las no papel, elas estão lá se debatendo para serem criadas e escritas. Essa situação não era nem um pouco agradável para mim, como no nosso último encontro, sua presença tentava impor tranquilidade, mas ele estava tão perto de mim, mais perto do que permito a maioria estar, era desagradável, pois meu corpo lutava contra essa imposição. Não conseguia responder nada a ele, a proximidade me deixava sem palavras, só olhava através dele e percebia seu sorriso pelo canto do olho.
— Ah, minha querida, não se preocupe. Estou aqui apenas para facilitar sua adaptação neste ambiente. Jamais a forçaria em algo que não desejasse. Afinal, você veio ao baile por sua própria vontade. Como um verdadeiro cavalheiro, sempre solicito permissão, mesmo para os atos mais... sombrios, por assim dizer. Embora possam não ser explicitamente revelados. — Ele sorriu ao dizer isso. — Veja, não há necessidade de se sentir obrigada a me acompanhar nesta conversa, se assim não desejar. Simplesmente desfrute da dança, entregue-se ao ritmo e deixe-se levar pela atmosfera deste lugar.
Mesmo que aquele sorriso fosse uma tentativa de me acalmar, seus caninos brancos e protuberantes me causaram arrepios. Quando estou muito ansiosa com um alto nível de adrenalina, não consigo pronunciar nem uma palavra sequer e, então, a única coisa que me foi possível foi concordar com a cabeça. Dançamos, ele me conduzia, e para mim era difícil me deixar conduzir quando eu sempre conduzia na dança, sempre seguia os mesmos passos básicos, não importava a dança. Ele me conduziu de maneira tão suave que era como se eu sempre tivesse dançado nos passos dele.
— Não vá tão precipitadamente, minha cara. Lembre-se de sua inata curiosidade científica. Se partir agora, perderá a oportunidade de compreender tudo isso. Permita-se um momento para acalmar os ânimos. Talvez uma breve caminhada para espairecer, uma conversa amistosa com os demais presentes, desfrutar da comida e da bebida, tentar se integrar socialmente... ou, se preferir, a opção da fuga sempre está disponível. Faça o que julgar melhor para si. — A música havia terminado. — Porém, antes que siga seu caminho, permita-me um gesto de cortesia. — Ele segurou minha mão e depositou um leve beijo sobre ela, fazendo uma reverência. — Devo agora dispensar-lhe minha atenção, pois há outros hóspedes e convidados a quem devo dedicar minha presença. Afinal, há mais danças não solicitadas a serem atendidas. — Com um sorriso sutil, ele se virou e se afastou, entre os demais convidados.
Vi-o andar resoluto por entre os convidados e soltei o ar, era como se eu tivesse prendido minha respiração sem perceber todo o tempo em que estava com ele. Fui aproveitar um pouco do baile antes de fugir para meu quarto, me sentei e comecei a olhar todos em volta, reparando em suas belas máscaras e vestimentas, tudo tão elegante. Os passos ecoados pelo chão de mármore, a música suave que agora tocava enquanto todos dançavam e se divertiam, a decoração e o grande banquete era de encher os olhos, eu estava deslumbrada. Peguei uma taça cristalina com um líquido escarlate que me foi oferecida, aparentemente já era meia-noite e brindaríamos o ápice da lua cheia. Torci para que não fosse sangue ou vinho, eu nunca bebo vinho. Levantei um pouco a máscara para tentar sentir o cheiro que exalava e não parecia nenhum dos dois, virei a taça nos lábios para experimentar e o sabor que sentia de um amargor adocicado, eu podia sentir uma textura aveludada que envolvia minha língua. Tomei coragem e tomei logo um gole, me deleitei com aquela sensação, e aquele gole foi o bastante para me conduzir a outro mundo, tão rápido como um piscar de olhos.
Esse mundo era uma cópia sombria do castelo com cheiro sutil ferroso de sangue fresco com um fundo de rosas. E, para meu pavor, todos os presentes emanavam uma aura pesada e, de alguma forma que não sei explicar, eu sabia que eu era a única humana ali. Eu estava aterrorizada naquele lugar suntuoso, mas tinha que passar a impressão que fazia parte daquilo, tudo era como no castelo original, só que mais sombrio, mais pesado e frio. Andei entre eles e encontrei todos os hóspedes do castelo que eu já conhecia de vista e, junto a eles, outros que eu ainda não havia visto.
De alguma forma, dentro de mim, eu sabia que todos eram vampiros ou qualquer outra criatura sobrenatural que eu não conseguia identificar, todos com máscaras que cobriam apenas os olhos, todos bem-vestidos, conversando e entre si. Então eu vi uma mulher de olhos amarelos como de um gato, cabelos negros longos e volumosos, pele lisa de um marrom translúcido brilhoso e sobrenatural que permitia que eu visse suas veias esverdeadas em todo seu rosto, busto e braços, com um vestido vermelho decotado, a saia com camadas pretas e vermelhas com rendas douradas em suas bordas e uma fenda que deixava exposto sua coxa esquerda, um corpete preto justo, joias douradas em profusão, envolta em um ar de mistério e sensualidade, tão bela e assustadora como eu jamais seria.
Conversava tranquilamente e se expressando com as mãos e o rosto, parou e olhou para mim, sorrindo com os incisivos e caninos brancos à mostra, lábios grossos com vermelho carmesim, fiquei chocada a ponto de rir daquela situação surreal ao qual eu estava presente, não havia bebido tanto assim para me transportar para o universo espelho tal qual como em jornada nas estrelas, onde eu encontraria minha “gêmea do mal”. Coloquei as mãos no rosto só para me certificar que eu ainda estava de máscara, imagine a minha surpresa quando ela veio em minha direção:
— Já estou tão acostumada com o funcionamento do castelo que encontrar minha doppelgänger não me surpreende. É difícil se esconder de você mesmo por trás de uma máscara, quando se conhece tão bem. Não preciso me preocupar em ser apunhalada ou ter que te apunhalar, espero?
Era como olhar um espelho onde eu via uma versão inverossímil, porém atraente de mim mesma, tão assustadoramente imponente, terrivelmente bela que me despertou uma vontade incontrolável de interrogá-la para saber mais sobre ela. Eu tinha tantas perguntas, e também com quem mais eu poderia encontrar as respostas que eu precisava senão comigo mesma?
Condenei-me a viver entre paredes de concreto e pedra fria, quando minha mente queria fugir para as florestas, admirar a altura das árvores…