Capítulo 1: Desventuras (Parte 2) — Darquinha
O verdadeiro nome de Pai Thomas, ninguém sabia ao certo, muito menos qual era sua origem verdadeira. Talvez nem mesmo sua própria filha soubesse verdadeiramente de onde ele viera ou que tipo de pessoa seu pai realmente fosse. Sua história anterior ao dia em que chegou por aquelas bandas era, na verdade, um completo mistério para todos, até mesmo para seus vizinhos mais próximos. Entretanto, mesmo que uma espessa sombra recaísse sobre sua verdadeira origem, desde que, há muitos anos, se estabelecera naquela erma e pacata região, num primeiro momento como o simples e descontraído chapeleiro Thomas, acompanhado de sua simpática esposa — a jovem e bela Darquinha — e sua velha e sombria tia — a taciturna cigana Madame Staell — e posteriormente, após a trágica morte da esposa, tornando-se o afamado e temido curandeiro Pai Thomas, mesmo que de forma involuntária, na maioria das vezes conseguira cultivar diversos sentimentos dissonantes sobre si mesmo. Se, por um lado, alguns logo se simpatizavam muito com ele, por simples adulação ou mesmo por gratidão devido a alguma benesse recebida, seja ela uma simples bênção ou até mesmo a cura de algum mal dado como irremediável, outros, no entanto, sentiam até mesmo certa repugnância por sua simples presença, que se demonstrava por demais sinistra e até mesmo ameaçadora de certo ponto de vista, se assim ele o desejasse. Em todo caso, o que era consenso era o quanto ele era respeitado por todos sem exceção, fosse por medo ou mera admiração por sua peculiar personalidade.
A simples menção ao seu nome trazia em si certo desconforto e até mesmo um velado temor. Esse sentimento não era de todo vazio e muito menos exagerado. Todos que o conheciam, mesmo que apenas por nome, e que conheciam as histórias contadas sobre ele e seus extraordinários dons de cura, mas principalmente de sua sombria sabedoria, sabiam que sua fama precedia, e muito, sua presença. Na maioria das vezes, quando em profundo desespero e sem nenhuma alternativa, sempre que alguém o procurava para uma simples prece, talvez um conselho, ou até mesmo para algo um pouco mais sério, de alguma forma um tanto quanto sinistra e bastante misteriosa, ele já sabia do que se tratava, bem antes de qualquer coisa ser proferida sobre o assunto em questão, mesmo que fosse algo da mais profunda intimidade, que somente o solicitante soubesse. Não era apenas esse tipo de comportamento que atemorizava a todos; sua estranha aparência, de certa forma, era inquietante e muito assustadora para os padrões normais.
Pai Thomas era um homem de estatura física um tanto quanto fora do comum para os padrões normais. De certo modo, às vezes era até mesmo inconveniente, pois chegava ao ponto de fazer com que mesmo os homens mais altos da região, ao estarem em sua presença e precisarem olhar em seus olhos para lhe dirigir a palavra de forma mais direta, tivessem que olhar para cima, estando ambos de pé. Quando tal fato se tornava indispensavelmente necessário, isso era bastante inquietante. Além do fato de haver a crença de que Pai Thomas conseguia desvendar todas as intimidades e segredos através dos olhos de quem ele olhasse, a visão de seus próprios olhos era aterradora, pois a cor que outrora, possivelmente foram negros e brilhantes, nos últimos tempos havia se tornado opaca e acinzentada como uma fria manhã de inverno. O certo é que o cinza em seus olhos era a ação do tempo sobre si. Contudo, vez por outra, aparecia alguém que seria capaz de jurar pelo sangue do cordeiro que, qualquer um que olhasse em seus olhos por muito tempo, conseguiria observar que mudavam de cor em determinadas circunstâncias, principalmente quando ele estava fazendo uma prece. Dependendo da prece, a cor de seus olhos transitava de cinza para um azul, passando por violeta e, por fim, chegando a um vermelho intenso, retornando ao cinza sem brilho ao final da prece.
Era ele um homem negro e bastante robusto, mesmo que seus cabelos e barba, já completamente brancos como algodão, demonstrassem uma idade bastante avançada. Havia rumores de que, depois da morte de sua esposa, ele envelhecera muito rapidamente devido à dor da perda. Em questão de meses — alguns dizem que foi em poucos dias — seus cabelos e barba, que eram negros e cheios de vida, ficaram brancos e sem vida como num passe de mágica. Sendo um homem bastante alto, todo o seu corpo era proporcional à sua altura; assim, seus membros também tinham um tamanho incomum. Suas mãos eram assustadoramente enormes, com dedos longos e esbranquiçados. Devido ao contraste com sua pele extremamente negra, as palmas de suas mãos eram brancas como leite fresco. Se seus olhos por si só já denotavam pavor a quem quer que os encarasse, suas mãos não eram diferentes, pois era justamente com essas monstruosas mãos que ele executava suas preces e benzimentos — ou, no dizer da raia miúda: “fazia suas mandingas”. Quando ele levantava aqueles enormes membros sobre a fronte de alguém para conceder uma bênção, suas mãos causavam uma espécie de sombra no rosto dessa pessoa, provocando momentaneamente uma inquietante sensação de mal-estar. Alguns — obviamente longe de sua presença — até mesmo ousavam relatar que, no exato momento em que estavam recebendo a prece, havia uma estranha e inexplicável sensação de se encontrarem em algum outro local bem distante dali, um lugar sombrio e horripilante, carregado de certa melancolia e completamente dominado pelas trevas. Era notoriamente evidente que aquele que estava sendo abençoado só poderia imaginar tal coisa ao dizer que via uma inquietante escuridão, pois para receber uma bênção de Pai Thomás, a pessoa deveria fechar os olhos e abrir sua mente e seu coração naquele momento. Condição essa na qual o velho mago era bastante taxativo. Dizia ele: “Feche bem os seus olhos e abra completamente o seu coração para receber de graça essa bênção requerida, sem nada dar em troca em seguida...”.
Pai Thomás, além de poderoso e respeitado benzedor, era um sábio conselheiro e também bastante versado no preparo de emplastos, beberagens e eficientes garrafadas, capazes de curar qualquer tipo de moléstia, fosse essa física — doenças em geral comuns a todo ser vivente, — ou até mesmo espiritual — adquirida de forma involuntária ou encomendada. Muitas mulheres — protegidas pelo infalível nevoeiro do sigilo corroborado pela inabalável descrição de Pai Thomás — sendo elas moças de família ou meras meretrizes se encontrando em terríveis apuros maternais, constantemente o procuravam a fim de se evitar uma gestação indesejada que pudesse vira a causar uma desonra familiar ou empecilho a sua atividade profissional. Seus famosos chás contraceptivos eram infalivelmente eficazes. Havia um ditado, — falando em surdina obviamente que dizia — que dizia: “Se o desespero bateu, o chá de Pai Thomás é bebeu-desceu...”.
Para inúmeras pessoas que tinham sido agraciadas com algum tipo de benesse — fosse uma beberagem, bênção ou até mesmo um simples conselho — Pai Thomás era visto e respeitado como um ser ungido por Deus, sendo usado como instrumento em sua Divina obra. Contudo, para alguns outros, ingratos e despeitados, ele era apenas um mandingueiro trapaceiro — poderoso e temível, é verdade, mas apenas um feiticeiro a serviço das trevas, que vez por outra fazia algo extraordinário ou adivinhava uma coisa ou outra. Dentre essa mesma raia miúda, que carregavam certa repugnância ou até mesmo uma velada inveja dos inexplicáveis feitos de Pai Thomás, havia aqueles mais ousados na palavra, que defendiam a ideia de que ele tivesse um pacto com o próprio diabo, e que era por esse motivo que possuía fantásticos poderes de cura e uma vasta sabedoria, tendo conhecimento inclusive daquilo que estava abissalmente oculto, pois o príncipe das trevas sempre atendia suas preces. A verdade era que, entre tantas informações sobre sua pessoa — algumas verdadeiras, outras nem tanto — o que era de fato comprovado era que bastava um único olhar seu sobre uma plantação bem verde e viçosa para que essa se perdesse por completo, sem nada poder ser colhido, ou apenas algumas poucas palavras rumorejadas por ele, com alguns brotos de uma erva qualquer, para que uma criação à beira da morte se restabelecesse por completo e vivesse por bastante tempo, gozando de plena saúde. Havia também as histórias sobre as serpentes — e somente quem presenciou poderia acreditar — se havia uma infestação de cobras numa plantação, ou até mesmo num quintal qualquer, logo ele era chamado, e sem mais delongas, com poucas palavras e simples gestos ele resolvia a questão sem nenhuma serpente precisar ser sacrificada. Mesmo parecendo ser apenas mais um charlatão como tantos existentes por aí, em nada Pai Thomás se comparava a outros benzedores comuns, pois de forma alguma aceitava qualquer tipo de pagamento por seus feitos e, se porventura houvesse qualquer tipo de insistência, ele logo se zangava e demonstrava estar bastante ofendido. Certa vez, após tirar uma criança do leito de morte, onde todos já davam por certo uma morte iminente, o pai da criança, muito satisfeito por tal feito, quisera lhe recompensar financeiramente, o que obrigou Pai Thomás a lhe dizer de forma dura e até mesmo grosseira: “Quanto vale a vida de seu filho? De forma alguma tente avaliar aquilo que não tem preço. Eu jamais poderia cobrar qualquer valor por aquilo que é dado de graça e saiba que, se lhe fosse cobrado, certamente o seu dinheiro e suas riquezas não poderiam pagar...”.
Se por um lado sua origem verdadeira era uma tanto quanto obscura, por outro sua idade certa, também era um grande mistério. Afinal, a tendência biológica é que pessoas de pele genuinamente negra não apresentem sinais da passagem do tempo com tanta facilidade. Há até mesmo um ditado popular que diz: “O negro só pinta, depois dos cento e trinta”. Sendo verdade ou não o tal ditado, o certo era que, mesmo sendo ainda muito robusto e bastante ágil, mesmo assim, Pai Thomás já era bastante velho, fato esse corroborado, dentre outros fatores, pela cor de seus cabelos e da barba branca que trazia sempre muito bem aparados, mas principalmente pela quantidade de cicatrizes que havia em suas costas largas. Marcas essas, possivelmente causadas por chicotadas recebidas ainda no tronco, quando ele era ainda cativo, bem antes da Abolição dos escravos. Há um burburinho que Pai Thomás recebera sua carta de alforria bem antes da assinatura da Lei que libertou os cativos.
Sua liberdade fora adquirida das mãos de seu último dono, um velho e solitário professor que não tinha nenhum parente e nem mesmo muitos amigos, devido aos seus ideais e comportamento um tanto quanto diferente daquilo que se poderia considerar politicamente correto para uma sociedade conservadoramente cristã e zelosa dos dogmas que a igreja determinava. Professor Ozório, durante quase toda sua vida, lecionara os mistérios que envolvem o universo dos números; ele era um matemático muito respeitado e bastante reconhecido tanto por seus ex-alunos quanto pelos ex-colegas. Contudo, sua grande paixão era a filosofia, ciência essa que o tornara um determinado admirador das ciências ocultas e todos os mistérios que envolvem a origem da vida e as consequências que levam à morte e um possível além-túmulo. Professor Ozório, que era um eremita por opção desde a morte de sua esposa, ocorrida pouco depois de se casarem há mais de cinquenta anos, já avançado em anos e com os efeitos inevitáveis da senilidade, decidira arranjar uma companhia que lhe auxiliasse tanto nos afazeres domésticos quanto em seus estudos. Optou por comprar um cativo e imediatamente dar-lhe a carta de alforria com a promessa de que esse agora ex-escravo lhe acompanhasse até o fim de seus dias.
Thomás deixou então a combalida fazenda onde nascera e fora cativo desde sempre para se tornar mordomo e secretário particular numa bela casa da capital. Além da liberdade tão sonhada, Thomás fora muito beneficiado por seu ex-dono, que, por estar ficando com as vistas cansadas, o ensinou a ler, escrever e os conceitos básicos da matemática. Professor Ozório era um excelente mestre e Thomás demonstrou ser um aluno muito dedicado — nada neste mundo apraz mais um professor do que um aluno interessado —, buscando aprender bem mais do que o simples bê-á-bá. Por muitas vezes, Thomás virava noites, madrugada afora, lendo os livros que havia na respeitada biblioteca particular do sábio mestre, que vez por outra flagrou seu agora também aprendiz estudando livros de ocultismo — escritos que poderiam ser considerados subversivos e até mesmo perigosos para uma mente fechada. Sabendo da proximidade do fim de seus dias, como não tinha nenhum herdeiro e por temer que seu fiel companheiro pudesse ficar desamparado após sua morte, buscou por meios legais redigir um testamento onde constava o negro Thomás como seu único herdeiro, com direito total a todos os seus bens. Esse testamento nunca seria aberto. Assim que o Professor Ozório ajuntou as mãos sobre o peito para dormir o sono sem sonhos, Thomás se viu obrigado a dar um novo rumo à sua vida, pois parte da herança de seu protetor — que não era tão grande — ficou com seu advogado para saldar supostas dívidas antigas, outra parte foi doada ao clero como oferta em missas que seriam rezadas em encomenda a sua alma, que certamente estava no purgatório devido ao incauto falecido ter vivido seus dias longe da proteção da Santa Igreja, e o restante foi usado para custear um simples e rápido funeral que contou com a presença de um ou outro curioso e dos fiéis papa-defuntos, não mais do que meia dúzia de presentes. Thomás foi o último a sair do cemitério, honrando até o fim a memória de seu benfeitor. Com a morte de seu mestre, restou a Thomás a liberdade, algum dinheiro que o professor lhe havia dado ainda em vida — que ele sabiamente havia guardado — e alguns livros que o advogado permitira que ele os levasse consigo; não eram muitos, mas eram bastante valiosos para que soubesse do que se tratavam. Thomás jamais se afastaria dessas preciosidades literárias.
De posse de sua liberdade, com algum dinheiro e sabendo ler e escrever – numa sociedade onde a maioria era analfabeta –, Thomás decidiu se lançar em busca de uma vida melhor. Conheceu muitas cidades e trabalhou em muitos lugares, utilizando-se sempre de sua força física e de seus conhecimentos. Contudo, a vida não era muito fácil para um ex-cativo, mesmo sendo alforriado e versado nas letras e nos números. Para alguém que havia rodado pelo mundo quando ainda era jovem, agora, na sua velhice, nos últimos anos antes de sua morte, Pai Thomás vivia na companhia de sua filha Gardênia, a quem ele tinha muito apreço, e de seu neto Luís Miguel, que já estava sendo encaminhado no ofício da chapelaria, ofício esse que, mesmo com a idade já avançada, ele ainda praticava com maestria. Desde que sua amada esposa fora tomada de seus braços, quando Gardênia era ainda uma criança de colo, vivia ele de modo taciturno e muito sombrio, fechado em um mundo à parte, que ele mesmo criara para si, distante de tudo e de todos. A alegria desaparecera por completo de seu semblante. Sua face, antes sempre muito alegre e simpática, tornara-se muito obscura e, para alguns, até mesmo um tanto quanto sinistra, com leves traços de maldade, escondidos sorrateiramente nas rugas de sofrimento que surgiram com o tempo. Quem o conhecia de outrora, sabia parte de sua história recente e qual era o verdadeiro motivo que o transformara naquele infeliz ser, de semblante frio e olhar distante. Seu olhar, que um dia fora firme e brilhante, após sua trágica perda, tornara-se lúgubre, fitando o vazio – muitas vezes olhando para lugares sombrios onde reinava as trevas –, sempre buscando ao longe algo que certamente não estaria lá. Algo que, pela curiosa fisionomia de sua face, talvez nem pertencesse a este mundo.
A dolorosa e precoce morte da mãe de Gardênia levou consigo para o túmulo, não somente o corpo definhado pela doença e agora já inerte de sua esposa, mas também sua alegria de viver, deixando-lhe tão somente muita dor e sofrimento. Sentimentos esses que se refletiam em um constante e perturbador silêncio, que ele mesmo lhe impusera. Esse mutismo, que somente muito raramente era quebrado, ocorria quando uma palavra sua se fazia extremamente indispensável. Nos primeiros dias, logo após a morte de Darquinha, quando ele, sem acreditar no que havia acontecido e sentindo o gosto amargo de uma perda recente, demonstrava um comportamento nada convencional, houve até mesmo — por parte dos desocupados profissionais da região — certos comentários sobre sua sanidade mental estar seriamente abalada e que, por isso, estaria talvez incapacitado de cuidar de sua filha Gardênia. De certo modo, sua lucidez realmente ficou um pouco abalada, e seu comportamento não denotava muita confiança. Ainda durante o velório, mesmo com toda a dor e desespero pela perda de sua esposa, ele não se comportava como uma pessoa lúcida. Dizia coisas sem nenhum nexo com a realidade e parecia estar assustado, demonstrando um terrível arrependimento, como se tivesse cometido um ato imperdoável. Havia traços de um dorido remorso até mesmo em seus profundos suspiros, que eram frequentes, como se fosse ele o responsável pela morte de sua amada esposa, que todos sabiam que há tempos travava uma árdua luta contra um tumor na cabeça. Para muitos que acompanharam de perto toda a agonia e o longo sofrimento da simpática Dona Darquinha, a morte fora para ela, na verdade, um merecido descanso.
O sepultamento de Darquinha ocorreu já no finalzinho de uma tarde de vento frio e pôr do sol tristonho e arroxeado. Naquela noite, como o cemitério ficava distante de sua casa, Thomás e a pequena Gardênia passaram a noite na casa de Seu Juraci, que era amigo da família de longa data, desde os tempos em que eles ali chegaram. E, para essas horas mórbidas, não havia conselheiro melhor. Talvez tenham sido as sábias palavras de Seu Jura que contribuíram para que Thomás entendesse que ele agora era o único responsável pela pequena Gardênia. Essa pobre e indefesa criança que havia acabado de perder a mãe não poderia perder também o pai. Mesmo trazendo consigo um sentimento bastante egoísta, ao se ver agora como único progenitor de uma inocente criança com menos de cinco anos, Thomás, deitado muito desconfortável num catre bem menor que ele, olhando ao longe o brilho das estrelas que entrava pela janela aberta naquele momento, pensou consigo mesmo: “Darquinha não escolheu morrer, e muito menos optara por deixar uma criança órfã, pois não há mãe, por pior que seja, que não ame um filho, e quando essa mãe tem a inocência e bondade de um anjo, maior ainda se torna esse amor...”.
Milhares de pensamentos turbilhonavam na cabeça de Thomás naquele momento: medo, arrependimento, ansiedade; era complicado escolher qual tipo de sentimento mais o atormentava. Contudo, o que mais o atormentava era a lembrança de que, durante todo o tempo em que viveu ao lado de Darquinha, desde quando a conhecera, ela jamais tinha pronunciado uma única palavra sequer. Mas em seus últimos dias de vida, enquanto ele estava sempre ao seu lado naquele triste leito, sempre que a olhava nos olhos era capaz de ler claramente o que ela dizia no triste silêncio daquele lacrimejante olhar. Para os dois, que sempre se comunicaram com gestos, sorrisos e olhares, ficara claro para ele a súplica de uma mãe que sabia que a morte a estava rondando e que seus dias nesta terra estavam findando. Havia um pedido de socorro naquele olhar, que implorava a ele que cuidasse e protegesse o fruto do amor que um dia houvera entre eles e que, naquela doce e inocente criança, esse sentimento jamais teria fim. Desde o dia em que se conheceram, a maior parte da comunicação entre ambos era feita através da troca de olhares que, de algum modo muito estranho, era imediatamente mutuamente compreendido, e naquele momento não foi diferente. Sabendo que aquilo a deixaria mais confortável, apertando suas mãos entre as suas, ele lhe respondeu com um sincero sorriso no olhar, mesmo sabendo que ela não poderia ouvir suas palavras, mas algo dentro de si dizia que ela, de algum modo, o compreendia: "que enquanto ele estivesse vivo, Gardênia estaria segura, longe de qualquer maldade desse mundo, e ele poderia estar certo de que não mediria esforços e moveria o mundo para protegê-la...".
Foi através dos conselhos e palavras de alento de Seu Jura e relembrando dessa promessa feita no leito de morte de sua amada, que seu comportamento voltou à normalidade, decidindo assumir completamente suas responsabilidades de pai e agora também de mãe. Sabendo que, para que isso acontecesse deveria ser senhor absoluto de suas faculdades mentais. Contudo, ele jamais seria o mesmo homem que fora um dia, pois a morte de Darquinha colocara um fim trágico numa verdadeira história de amor. História essa que parecia impossível, entre o ex-cativo e já não tão jovem Thomás e a equilibrista Joana D’arc, uma artista europeia ainda na flor da idade e dotada de uma beleza angelical. Quem, porventura, teve o privilégio de conhecê-la em seus dias de esplendor, antes que a doença a transformasse numa entidade cadavérica, afiançaria com veemência que realmente era ela, uma criatura de beleza ímpar.
Darquinha era o carinhoso apelido pelo qual sua esposa era conhecida desde sua mais remota infância. Quando ainda criança, sendo ela bem franzina, demonstrava certa fragilidade doentia, típica de um ser que não suportaria nem até o fim do primeiro inverno. Mesmo com um ar de fragilidade cristalina, era dotada de uma peculiar beleza infantil, dando-lhe os traços de uma boneca de porcelana, que, mesmo sendo muito bela, ainda assim era bastante frágil e poderia se quebrar a qualquer momento. Desde sempre, vivera no circo, primeiro na companhia de seus pais, que sempre foram artistas circenses. Seu pai era o famoso mágico Norman Winslow Benetti ou simplesmente o Grande Benetti – o mago –, sempre muito aplaudido por onde o circo passava. Sua mãe era a bela Elizabeth Zurmin, assistente de seu pai. Os dois faziam o número mais esperado do espetáculo, deixando o público sempre muito apreensivo e cada dia mais boquiaberto com mágicas cada vez mais ousadas e misteriosas. Durante os treze primeiros anos de sua vida, tivera a companhia e proteção de seus pais. Nesse período, teve também a oportunidade de demonstrar seus talentosos dons artísticos – algo que parecia estar no sangue dos Benetti – tornando-se, devido à sua compleição física, uma exímia equilibrista, que sempre deixava toda a plateia tensa e preocupada a cada número, que vinha se tornando cada vez mais ousado. Com a trágica e misteriosa morte de seus pais, num violento incêndio que quase consumira o circo por completo, ficara ela, momentaneamente sob a tutela e proteção de seu único parente restante, o irmão gêmeo de seu pai, o tio Nicolas Benetti, o anão do circo, mais conhecido como Nico Besta Fera, apelido esse devido à sua monstruosa e grotesca aparência.
Havia pouco mais de dois anos que Darquinha perdera seus pais quando conheceu Thomás, que por sua vez só soube seu verdadeiro nome quando se casaram. O verdadeiro nome de Darquinha era uma singela homenagem a Joana D’Arc, a santa heroína da cidade em que ela nascera, quando o circo estava de passagem por lá. Essa cidade era a pitoresca Orléans, às margens do rio Loire. Quando sua mãe estava prestes a dar à luz, o circo fazia uma turnê pelo então chamado Vale do Loire. Justamente quando Darquinha nasceu, estava acontecendo um festival em homenagem à famosa "Virgem de Orléans", considerada mártir. Joana D’Arc passou para a história como a personagem mais importante da cidade por ter salvado a cidade de um terrível cerco inglês no ano de 1429. Desde então, essa corajosa jovem havia se tornado heroína local. Na verdade, Darquinha nunca teve a oportunidade de conhecer de fato sua cidade natal, pois como todo e qualquer circo, aquele ao qual fazia parte era também itinerante — sempre transitando de um lugar para outro em busca de um público mais curioso e interessado no lúdico universo do circo e, consequentemente, mais liberal economicamente — e nem sempre retornavam à mesma cidade, principalmente se por ventura o espetáculo se demonstrasse ruidoso e desinteressante ao público, sem lucratividade alguma naquele local. Evidentemente, sempre acompanhando seus pais, tal qual o próprio circo — do qual faziam parte — eles também nunca se estabeleceram por muito tempo no mesmo lugar, transitando sempre de cidade em cidade em busca de dias melhores, tentando a cada dia sobreviver de sua arte.
O circo, desde sua origem mais remota, sempre fora um entretenimento nômade, buscando sobreviver onde houvesse um público curioso ao ponto de se dispor a gastar algumas moedas para assistir a um belo espetáculo ou, ao menos, poder ver com seus próprios olhos fatos curiosos, pessoas extraordinárias e até mesmo bizarrices da natureza. Depois de rodar por grande parte da Europa — principalmente pelos interiores mais ermos — sem nunca mais voltar à França, após anos de crise e até mesmo cogitar por várias vezes desistir dos espetáculos circenses e pôr fim ao circo, que pertencia à sua família por incontáveis gerações, o dono do circo, o polonês Eloy Zachary Chittway, decidiu atravessar o grande Oceano Atlântico e tentar a sorte na América. Mas não na América propriamente dita — aquela dos peregrinos —, mas sim em outra parte do grande continente descoberto por Colombo, que também era América, só que no Sul. A convite de um poderoso homem do governo brasileiro — talvez fosse ele um ministro de Estado — que assistira a um espetáculo do circo, que naquela época já estava mais do que agonizante, mas ainda se apresentava na cidade de Évora, em Portugal, numa espécie de turnê pelas terras ibéricas. O dono do circo, como um tiro de misericórdia para não encerrar de vez os espetáculos do Grande Circo Chittway — não apenas findando uma companhia secular, mas também deixando sem emprego dezenas de artistas e afins — decidiu vir com toda a sua trupe e montar seu picadeiro em terras brasileiras, para quem sabe assim tentar a sorte com um público diferente e ainda desprovido das inovações tecnológicas — fotografia, telefone, cinema etc. — que fizeram grande parte do público europeu perder o interesse no fantástico e secular mundo do circo.
As apresentações circenses – até onde se tem notícia – são muito antigas. Os números em si, como malabarismos, contorcionismos, mágicos etc., estão presentes junto às civilizações desde sua aurora. Desde a origem da humanidade, sempre houve um indivíduo ou outro que ousou entreter com o intuito de ocupar o tempo ocioso e, se possível, ganhar algo em troca, caso alguém apreciasse o que estava assistindo. Desde as civilizações mais antigas, sempre existiu alguém bastante diferente fisicamente ou com algum talento extraordinário capaz de ganhar a vida divertindo os outros, seja por admiração, espanto ou simples curiosidade. Mesmo nas cortes dos reis mais sisudos e até mesmo violentos, sempre houve pantomineiros, ventríloquos ou mesmo um simples bobo.
Contudo, o circo como o conhecemos atualmente remonta ao período medieval, em tempos de obscurantismo religioso, onde quase tudo era proibido e nenhum senhor ousava manter um artista em seus domínios. As apresentações circenses eram uma forma de entretenimento para as pessoas menos favorecidas da Europa, principalmente aquelas que se aglomeravam em pequenos vilarejos. Se, por um lado, mesmo que de forma clandestina, divertiam a gente pobre das sujas e pestilentas cidadelas, fazendo com que, momentaneamente, através do riso e do espanto, se esquecessem de sua miserável condição de quase sobrevivência, por outro lado, eram uma eficaz forma de sustento para quem tivesse algum talento ou dom para a arte e nenhuma outra ocupação ou fonte de renda. Desde sempre o circo foi um espetáculo sazonal, pois, por mais atrativo que pudesse parecer quando ainda fosse uma novidade – as novidades têm o incrível poder de sedução momentânea – logo se tornava obsoleto e até mesmo supérfluo para uma população que vivia sempre em crise e quase todo o tempo faminta. Já dizia o velho provérbio: “Entre comer e a diversão, é sábio o homem que, antes de rir, quer pão, pois o riso alegra o coração em fé, mas um saco vazio, mesmo que alegre e contente, jamais fica de pé.”
É notório que o universo do circo nunca promoveu ninguém à riqueza, talvez alguma fama um ou outro até que poderia adquirir facilmente, mas tornar-se abastado apenas com a arte, jamais. Contudo, pelo menos era uma forma de se ganhar o pão honestamente. Quando surgiram os primeiros circos — ou aquilo que poderia ser considerado como tal — não havia picadeiros ainda, com suas enormes barracas de lonas coloridas como há atualmente. Os espetáculos, quando aconteciam, eram em pequenos palcos improvisados sobre carroças, que também eram utilizadas como meio de transporte e fuga — se fosse necessário — para esses artistas ambulantes, que estavam sempre transitando de uma cidade para outra, na maioria das vezes fugindo da justiça dos inquisidores, que de forma violenta, perseguiam esse tipo de apresentação considerada profana e, por isso, sumariamente proibida pela Igreja. A perseguição não se dava apenas pelo simples fato de a Igreja considerar o riso como uma afronta às coisas sagradas e ao sofrimento de Cristo, mas também pelo tipo de pessoas que se associavam a essas trupes artísticas. Na maioria das vezes, esses grupos eram formados por ciganos; comerciantes e usurários; e pessoas com aparência ou comportamentos diferentes, tais como anões, indivíduos com algum tipo de deficiência ou anomalia e, por fim, por mulheres alegres e libertinas, que praticavam todo tipo de magia ou feitos extraordinários. Além, é claro, dos bastardos que, de certo modo, eram vistos como uma vergonha dentro do conceito do sagrado matrimônio. Pessoas de aparência grotesca eram um divertimento à parte para os curiosos, mas para a Igreja, era uma afronta expor tais pessoas, que haviam nascido diferentes da imagem e semelhança de Deus por expiação de algum castigo de seus pais. Em resumo, os integrantes de um circo eram considerados pela Igreja como sendo subversivos à sociedade por terem sido desfavorecidos por Deus. O universo lúdico do circo, tão agradável a todos, mas principalmente fantasioso às crianças, surge como uma arte perseguida e errante, condenada ao nomadismo quase constante e infinito.
Quando em seus princípios – ainda na Idade Média – como surge em um período estranho e bastante tenebroso, onde as transações comerciais utilizando-se de moedas era algo praticamente inexistente, uma vez que havia algum tipo de apresentação artística, sendo grande o espetáculo com vários artistas ou apenas um simples número qualquer executado por uma artista solo, se fosse bem apreciado pelo público – que nem sempre era muito grande – a forma de pagamento ou apenas um singelo agrado era feito em espécie, que poderia ser desde uma simples flor – sempre agradável aos olhos, mas inútil para saciar a fome – ou até mesmo frutas e legumes, que eram jogadas no palco. Se o número fosse realmente muito bom, às vezes o pagamento poderia ser em pequenos viveres tais como: peixes e aves. Essas prendas logo eram recolhidas para o preparo de alguma refeição, que depois de pronta era dividida de forma igual a todos do grupo. Pagamento em dinheiro era algo extremamente raro, até mesmo porque, para a grande maioria da população, toda e qualquer forma de transação comercial era feita a base de trocas. Se por um lado, o circo sobrevivia das benesses do público, recebendo calorosos aplausos e parcas oferendas. Por outro lado menos agradável é também dessa época o costume de jogar algo podre no palco e principalmente nos artistas, quando o publico, por ventura, se demonstrasse muito exigente e por algum motivo qualquer, não apreciasse a apresentação. Era como nesses casos em particular, todo o palco bem como até mesmo os artistas ficarem empesteados de ovos e tomates podres. Quando isso acontecia, logo o acampamento era rapidamente desramado e logo todo o grupo seguia para outra localidade distante.
Séculos após o surgimento do circo, a situação em nada se aliviou, pois nos últimos tempos era constante esse tipo de descontentamento por parte do público europeu, cada vez mais esfomeado. Aqueles poucos privilegiados que não eram assolados pela crise, para ocupar o tempo ocioso, optavam por lotar os teatros que pululavam pelas cidades e, para tornar a situação um pouco mais desesperadora ainda, surge o cinema — considerado por muitos como uma mágica da era moderna. Para uma efervescente sociedade que já se acostumara com as extraordinárias invenções que surgiam quase todos os dias, o circo era algo ultrapassado e bastante repetitivo, e já não conseguia seduzir mais ninguém.
A efêmera Belle Époque, evidenciada pelo Impressionismo do final do século XIX, cedia lugar à obscura realidade das telas expressionistas do início do século XX e à galopante crise socioeconômica que se agravava cada vez mais. Era fácil perceber que os bons ventos da mudança já não mais sopravam pelas terras do velho mundo. Quem porventura quisesse continuar tentando sobreviver de qualquer tipo de arte — inclusive e principalmente de estilos obsoletos como o circo — deveria procurar outras terras onde a economia fosse um pouco menos frágil e o tipo de arte apresentada fosse quase ou totalmente desconhecida, ou pelo menos ainda apreciada em lugares onde as novidades tecnológicas da Europa fossem apenas uma distante e inverossímil promessa.
A América — a então denominada terra da oportunidade, independente de qual América fosse — parecia ser um lugar muito sedutor, segundo viajantes que tiveram a oportunidade de conhecê-la de perto. Descreviam-na como uma terra de belas mulheres e de homens fortes, onde o sol brilhava durante todo o ano e as riquezas estavam disponíveis a qualquer um que ousasse derramar o suor do rosto e em pouco tempo se tornasse abastado. Contudo, também era um sonho quase impossível para muitos, devido à distância entre esses dois mundos tão diferentes. Se o custo de uma viagem para a América já era bastante oneroso para um simples viajante, em se tratando de um circo inteiro, com todos os integrantes do grupo e seus pertences, além dos apetrechos necessários para um simples espetáculo, o valor era algo quase inimaginável, a menos que a providência divina abençoasse um mecenas disposto a custear a travessia de um circo inteiro sobre o Atlântico.
O sonho, que à primeira vista parecia praticamente inalcançável para aquele agonizante circo e seus miseráveis artistas, enfim se realizou. Depois de uma longa e angustiante viagem sobre aquele imenso oceano, finalmente desembarcaram nas exóticas e abafadas terras brasileiras. O navio que trouxera aquela sonhadora trupe para o Brasil partiu de Portugal em pleno inverno europeu e, ao chegar ao Hemisfério Sul, se deparou com o escaldante verão do Rio de Janeiro, que naquele momento ainda enfrentava uma terrível onda de calor. O dono do circo contava com uma calorosa e festiva recepção por parte do homem que, sob os encantos de Madame Staell, havia generosamente bancado todos os custos da viagem. Esta tinha sido a promessa feita ainda quando a vinda do circo para o Brasil tinha sido acertada. O então poderoso homem do governo — soube-se depois que era um senador bastante influente —, além de pagar antecipadamente todas as despesas da viagem, incluindo passagens, transporte de bens e objetos, além das refeições, também havia prometido um patrocínio em dinheiro por parte do governo brasileiro durante um ano. Essa verba seria mais do que suficiente para todo o circo e seus integrantes se manterem com certa dignidade, até que o circo ficasse conhecido pelos brasileiros e conseguisse se manter por conta própria. Contudo, o esperançoso Sr. Zacky e seus sonhadores companheiros não esperavam por uma traiçoeira intervenção do destino. Durante os dois longos meses que durou a viagem sobre o Atlântico, uma terrível febre infecciosa levou ao silêncio seu patrocinador e futuro anfitrião aqui em terras brasileiras.
Madame Staell foi a pessoa que tornou aquele sonho possível, conseguindo através de seus encantos e carícias convencer o senador Antônio Eugênio de Abreu — um sexagenário curioso e aventureiro — a custear todo o valor necessário a transferência do circo da Europa para as terras brasileiras. Essa encantadora mulher toda esperançosa e cheia sonhos imaginava que, uma vez em terras desconhecidas sobre a proteção de um poderoso pistolão do governo de uma jovem nação, poderia finalmente abandonar o circo de uma vez por todas. De alguma forma um tanto obscura, ela sentia — ou pressentia através de sua hipersensibilidade de cigana — que seus dias de reles vidente em troca de migalhas estavam terminando. Contudo, enquanto os artistas ainda sobre aquela imensidão de água sonhavam com dias melhores em terras distantes e desconhecidas por todos eles, as traiçoeiras Moiras tramavam em suas sinistras teias o destino de cada um deles. Enquanto uns ainda devaneavam com o paraíso, o corpo do então Senador, por sua vez era conduzido para a cidade onde todos se tornam iguais.
Quando chegaram, por fim, ao porto, a única recepção que tiveram foi de uma torrencial chuva que castigava o litoral há quase uma semana. — No Brasil uma terra tropical, as chuvas duram por dias e noites ininterruptas, como se as comportas do céu estivessem com algum defeito e não se fechassem por completo — Se por um lado a situação na Europa era quase insustentável, agora numa terra estranha e desconhecida, ficara pior ainda. Praticamente sem dinheiro algum, sem comida e nem ao menos onde pudessem ficar. Além da chuva que o céu derramava sem cessar, havia também a questão da língua falada por aqui — uma mistura de português com todo tipo de som que se pudesse imaginar — estranha para a maioria deles, exceto ao faquir do circo que era de origem portuguesa. Contudo, Vladmir — esse era o nome do faquir do circo — não era o tipo de pessoa que transmitia muita confiança, tal qual a imensa quantidade de velhacos que transitavam o tempo todo pelo cais e suas cercanias — talvez por essa insignificante peculiaridade, a comunicação entre Vladimir e os transeuntes do porto não foi tão difícil — e desde que surgiu a ideia de mudança de todo o circo para uma terra tão distante, Vladimir sempre se mostrou relutante em acompanhá-los em tão desvairada aventura. Alguns diziam que foi sua maculada imagem de trambiqueiro que o deixara sem credibilidade por todos os lugares em que havia passado ou talvez o amor platônico que ele nutria por Elizabeth, a belíssima assistente do mágico Norman, que o havia convencido. Mas sempre que alguém fazia alguma alusão a esse sentimento — evidente até para um cego — ele, logo insistia em negá-lo com veemência, dizendo que: “... as pessoas são sempre levianas por conveniência e quando querem cultivar na discórdia, confundem uma inocente admiração por algum outro sentimento qualquer...”. Por uma razão outra, fosse ela qual fosse, decidiu-se por fim, a acompanhar o Sr. Zacky e seu agonizante circo em mudança para as terras de além-mar. Sendo assim, ele mesmo também se lançara numa aventura em terras distantes que por fim selaria seu destino.
Vladimir Alvarez era o único faquir do circo e ocupava essa perigosa função há mais de cinco anos. Mesmo com todo esse tempo integrado ao grupo, ainda assim não havia conseguido conquistar a simpatia e a confiança da maioria dos artistas. Darquinha — o xodó de todos —, em particular, tinha pavor dele. Realmente, ele era um homem singular, de caráter espinhoso, seco de corpo e de espírito. Tinha as feições estranhas e, na altura de seus trinta e poucos anos, parecia ser muito mais velho devido à sua aparência cadavérica. Seu rosto era estranhamente afinado e sempre sedosamente escanhoado como a pele de um recém-nascido; tinha um fino e bem cuidado bigode preto bastante alongado, que contrastava com seus olhos claros e penetrantes. Suas mãos eram brancas e de uma agilidade assustadora; seu cabelo, negro como o mais escuro breu, era ondulado e caía sobre o pescoço fino, dando-lhe uma aparência bastante sinistra. Mesmo assim, sendo de confiança ou não, com toda aquela aparência maquiavélica, foi esse integrante da trupe que, com muita dificuldade e uma das joias de Madame Staell — certamente um dos presentes do Senador —, conseguiu alugar um terreno — soube-se depois que era público — próximo ao cais, onde mesmo debaixo de forte temporal, conseguiram armar um improvisado acampamento para se abrigarem daquele terrível aguaceiro durante aquela primeira noite em terras tupiniquins. Vladimir — ninguém sabe como — conseguiu também algumas verduras, alguns legumes, um pedaço de carne salgada e um pouco de farinha de mandioca. Além de uma garrafa de aguardente de cana, chamada por aqui de cachaça — bebida essa estranha a todos eles, mas que, devido à angustiante decepção pelo abandono em que se encontravam e ao frio que estavam sentindo, foi logo muito apreciada por todos que ousaram experimentá-la, apesar de que alguns disseram que queimava como o fogo do próprio Tártaro. As verduras e legumes, somadas à carne salgada, logo se transformaram numa bela sopa que foi engrossada com a farinha, tornando-se num apetitoso guisado. Improvisadamente protegidos da chuva e do relento, saciados pela sopa quente e alguns também acalentados pela cachaça, logo foram descansar como puderam, pois, além de estarem bastante decepcionados com toda aquela desesperadora situação, estavam também exaustos da viagem.
Assim que o dia amanheceu, o Sr. Zacky, acompanhado do mágico Norman, do faquir Vladimir – intérprete honorário – e da cigana Madame Staell – ávida por encontrar-se logo com o Senador –, foram em busca da sede do governo brasileiro para tentar encontrar seu benfeitor e saber o motivo pelo qual não foram recepcionados no cais. Para surpresa e decepção de todos, logo foram informados de que não poderiam ter uma entrevista com o Senador Antônio Eugênio de Abreu, pois esse tão liberal senhor havia falecido há mais de quarenta dias e que até mesmo sua viúva e filhos – ainda pequenos – tinham voltado à sua terra de origem, no longínquo estado de Goiás, no centro do Brasil, distante mais de duzentas léguas da capital. O desespero foi completo ao saber que nem o circo nem nenhum deles teriam mais nenhum patrocinador que pudesse lhes valer em particular ou pelo menos auxiliar o circo aqui no Brasil. Madame Staell era a mais desolada de todos, como se tivesse perdido um ente querido. Logo Vladimir entendeu, por uma conversa ou outra – ouvida em surdina pelo saguão onde estavam – enquanto aguardavam para serem atendidos por outra pessoa de posição, que o governo brasileiro era uma verdadeira balbúrdia. O salão, apinhado de toda espécie de gente, era malcheiroso e abafado ao extremo, com a pintura das paredes – que ainda resistia ao tempo – de um tom verde claro, melancólico e preguiçoso. Sobre uma imensa prateleira entupida de livros e toda sorte de papéis cobertos de poeira e teias de aranha, havia um relógio que condizia com a eficiência do que era executado ali naquele recinto. Esse relógio parecia não funcionar há muitos anos, fazendo jus à devassidão e inaptidão do lugar. A informação era que o presidente anterior havia morrido de gripe espanhola e o atual que assumira o governo tinha sérios problemas mentais. Mesmo sem entender o que a maioria dizia, o Sr. Zacky pôde compreender que ali na sede do governo, todos mandavam ao mesmo tempo, mas ninguém decidia nada. E por fim, quando ele decidiu tentar angariar algum tipo de benesse para o circo, nenhuma outra pessoa importante lhes deu muita atenção. Ficou logo subentendido que não haveria ajuda por parte do governo, e somente o que conseguiram com muita dificuldade e insistência foi uma licença para praticarem seu ofício em território brasileiro, desde que pagassem uma onerosa taxa ao erário, que – como sempre – estava com os cofres vazios naquele momento e não poderia liberar tal licença de forma gratuita.
O Brasil era uma república jovem, enfrentando uma crise institucional e econômica interminável, e por isso estava sem dinheiro em caixa. Havia descontentamento da população que gerava revoltas aqui e acolá, corrupção por todos os lados e uma tacanha política de "toma lá, dá cá". Se alguém porventura não tivesse nada a oferecer, era inútil buscar algum favor perante algum político. Sempre que alguém se fazia anunciar em qualquer gabinete em particular ou até mesmo numa repartição pública, a pergunta era sempre a mesma: "Está vindo da parte de quem? Ou quem o enviou?". Enfim, quem não tinha nada, também com nada continuaria, e assim seria para sempre.
Quando Vladimir tentou questionar o valor da licença, foi-lhe explicado de forma bastante grosseira e bastante convincente, que para exercer qualquer tipo de atividade no país, uma pequena e irrisória taxa deveria ser paga ao Estado, para custear os enormes e complexos gastos públicos. O Sr. Zacky se sentiu bastante frustrado ao saber que na República do Brasil, o indivíduo começava a pagar impostos bem antes de nascer e que continuaria pagando-os bem depois de sua morte. Realmente, a América era uma terra de oportunidades: um terreno fértil para velhacos e oportunistas. Quem era rico, ficava cada vez mais rico ainda e quem era pobre, tinha a oportunidade de ficar mais pobre a cada dia.
O dono do circo, acompanhado de seus fiéis companheiros, retornou cabisbaixo ao improvisado acampamento com uma licença numa mão e uma triste realidade na outra. Estavam sós, numa terra distante de tudo e desconhecida por todos. Voltar para a Europa naquele momento era impossível. Só havia uma única alternativa: fazer aquilo que sabiam fazer de melhor. Apresentar-se para quem quisesse pagar para ver e fugir da justiça assim que necessário. Todos concordaram que não havia outra coisa a ser feita, mesmo bastante decepcionados com sua má sorte, se lançaram a tentar montar o circo mesmo debaixo de chuva e com todo tipo de improviso. A mais acabrunhada dentre todos eles era Madame Staell, que viu seu horizonte pleno e claro ser obscurecido por negras e tenebrosas nuvens de uma tempestade que sua sensibilidade lhe prenunciava. Mesmo assim, desfez-se de mais uma de suas joias e alguns trocados de suas economias para poderem comprar alimentos, pregos, velas e aquilo que se fazia necessário para que o espetáculo pudesse acontecer. Sr. Zacky prometeu lhe restituir tudo aquilo que ela estava gastando, assim que o circo começasse a render algum trocado. Baseados numa inabalável fé, muito esforço e constante perseverança, dois dias depois da decepção com o governo brasileiro, após muito suor derramado misturado com a chuva que caía constantemente, assim que o céu decidiu dar uma trégua em todo aquele aguaceiro, aconteceu o primeiro espetáculo do Grande Circo Chittway no Brasil. O certo era que aquele improvisado circo, nem de longe poderia ser comparado ao que fora um dia em seus dias de glória, quando Sr. Zacky ainda era um garoto nas efervescentes cidades da Europa. Contudo, os artistas eram muito talentosos, os números bastante atrativos em si e a necessidade de sobrevivência era extrema. O resultado desse primeiro dia de espetáculo não foi muito lucrativo, mas suficiente para reaver uma das joias de Madame Staell — que lhe fora devolvida mediante o dobro do pagamento do valor penhorado — e uma apetitosa e farta refeição acompanhada com uma ou outra dose de cachaça. O animado espetáculo se repetiu por mais três vezes apenas naquele local — cada dia mais movimentado e rendoso — pois logo foi interrompido pela polícia, que muito rapidamente, assim que chegou ao local — certamente avisada por uma denúncia anônima — já foram de imediato exigindo a documentação que autorizava a prática daquele tipo de atividade ali na cidade. Esse documento, por sua vez, até que já existia de fato, apenas não havia sido pago ainda — e certamente não o seria nunca. Sr. Zacky, o proprietário do circo, um estrangeiro no país — bem como todos os outros integrantes daquela animada trupe — não tinha documentação alguma, nem mesmo para estarem residindo no país, muito menos para exercer qualquer tipo de atividade. Para obter esse tipo de alvará de funcionamento era necessário pagar as requeridas taxas, em seguida dar entrada na papelada necessária num cartório de tabelionato de notas — novidade republicana, que tornava qualquer trâmite simples em algo oneroso e demoradamente burocrático — e por fim homologar toda a documentação num destacamento policial. Nenhuma dessas etapas havia sido feita, e talvez jamais o fosse, pois, desde sempre era já o costume daquele circo — como tantos outros mundo afora — funcionar de forma clandestina.
Uma vez que, quando a polícia chegou ao local, era já quase noite, com o tempo fechado e escurecendo rapidamente, prenunciando que uma tempestade pudesse desabar a qualquer momento, o chefe daquele eficiente destacamento ordenou que toda e qualquer atividade fosse encerrada de imediato e que eles retornariam no dia seguinte logo pela manhã, a fim de resolver todos os trâmites legais necessários para que aquela atividade artística pudesse continuar acontecendo ali naquele local de forma correta. Contudo, antes de deixarem o acampamento, um dos policiais daquela muito competente companhia — talvez por mera curiosidade, ou quem sabe por pilhéria apenas, ou até mesmo por volúpia — desde que chegou ao acampamento, não tirava os olhos do convidativo decote do vestido da bela cigana, e logo desejou saber o que o destino lhe reservava, solicitando então que Madame Staell lhe tirasse a sorte lendo sua mão. O resultado desse ato se mostrou muito desastroso para ambos. Como o atirado patrulheiro não gostou do que ouviu e pelo olhar de desdém que a bela cigana lhe direcionava enquanto lia sua mão, talvez também por não entender direito o que a cigana havia lhe dito — Madame Sarah Staell era uma bela espanhola de pele clara e olhos negros questionadores, mas sensualmente discretos. Tinha longos cabelos negros caindo em cascata pelas suas esbeltas costas em belos cachos tão escuros como uma noite sem luar. Seu corpo, mesmo para uma idade já madura, mantinha ainda assim a firmeza de uma frondosa árvore florida com o frescor suave de suas flores em recente desabrochar. Por ser de uma região de Granada no sul da Espanha, falava um tipo de dialeto que às vezes misturava o castelhano com várias outras línguas do mundo árabe — pelo lado de seu pai que era egípcio — e o romani — pelo lado de sua mãe que era de Bukovina. Sua fala, às vezes, era tão inaudível que até mesmo seus companheiros mais antigos não conseguiam compreender corretamente. Quando foi solicitado que o faquir Vladimir traduzisse o que fora dito pela cigana, as coisas se complicaram um pouco mais. Vladimir — por ciúmes ou por trazer consigo um leve despeito pela cigana, que volta e meia, até mesmo de forma humilhante, repudiava suas investidas sobre ela — substituiu alguns termos e adicionou outros, que ela nem mesmo havia pronunciado.
Logo ficou entendido que algumas verdades jamais poderiam ser ditas de forma explícita a qualquer um, e que em alguns momentos específicos, algumas mentiras se faziam necessárias. O frustrado guarda, além de se recusar a pagar a mísera moeda exigida pelo místico serviço, presenteou Vladimir com um sopapo no peito e um doloroso pontapé nos fundilhos. E quando a cigana sorriu, mostrando os dentes cravejados de ouro, recebeu — por parte do agora ofendido patrulheiro — uma violenta estocada de sua carabina. Essa pancada no belo rosto de Madame Staell resultou em um negro hematoma que durou vários dias para desinchar e que logo evoluiu para uma inflamação em seu olho esquerdo, que tempos depois causaria a perda parcial de sua visão. Esse mesmo policial, inocente de seus abjetos atos — pois estava acostumado, desde sempre, a esse tipo de violência gratuita —, morreria três dias depois, em um sinistro acidente, vítima de sua própria arma, num tiro acidental que ele mesmo causara, quando, em companhia de dois outros soldados, estavam limpando e lubrificando suas carabinas. Sua arma, por alguma razão desconhecida, ainda estava carregada.
Na mesma noite desse último espetáculo, naquela cidade, após os ânimos terem se acalmado e a polícia ter deixado o improvisado acampamento com a promessa de um breve regresso, já conhecedores da truculência da polícia brasileira, decidiram por unanimidade que ali já não era um lugar seguro para exercerem seu ofício. Sob o auxílio e escolta de um dos espectadores, que muito se simpatizara tanto com os artistas em geral, mas principalmente com a contorcionista Cecile — uma polonesa que quase se virava do avesso e que, segundo quem pudesse afiançar com segurança, ou seja, já tivesse experimentado suas carícias, fazia diabruras no leito, deixando qualquer homem de cama por vários dias —, rapidamente desmontaram tudo em plena calada da noite e logo seguiram viagem para outra cidade não muito distante.
Na manhã seguinte, como havia amanhecido chovendo muito forte, a polícia que, além de distribuir gratuitamente — para quem merecesse ou não — tapas e pontapés, não era muito afeita ao trabalho duro, principalmente debaixo de chuva. Além disso, como também não contavam com a perspicácia daquele intrépido grupo e seu secular costume de "anoitecer e não amanhecer", somente retornaria ao acampamento logo bem depois do almoço, isso se o tempo estivesse melhor; caso contrário, só retornariam no dia seguinte. Aquele dia em questão era uma quinta-feira, e no dia seguinte, sexta-feira, era feriado. Como no Brasil, em dias de feriado prolongado, nada funciona — ou pelo menos quase nada —, só retornaram aonde o circo estava montado na segunda-feira, após o enterro do jovem policial que havia acidentalmente falecido na manhã do dia anterior. Contudo, quando lá chegaram, foram surpreendidos com o terreno completamente vazio, encontrando apenas a terra batida e breves resquícios de uma ocupação recente. Não havia nenhum sinal de circo funcionando sem autorização e muito menos de estrangeiros ilegais no local. Pesarosos pela perda de um companheiro, mas orgulhosos com o sentimento de dever cumprido, após buscarem por informações sobre o possível paradeiro do circo e seus integrantes em um botequim em frente ao terreno e sem conseguirem nenhuma pista segura, partiram em busca de outros fora da lei para combaterem. O dono do botequim, que havia alugado o terreno — que era público —, além de perder seus animados inquilinos, ficou também com o prejuízo de alguns tragos de cachaça e vários petiscos consumidos pelos policiais que decidiram fazer um brinde por mais um serviço prestado à população e pela memória de um fiel companheiro — obviamente que nem as bebidas e muito menos os petiscos foram pagos, segundo a polícia, era um grande privilégio a qualquer cidadão poder, de alguma forma, contribuir com a lei e a justiça.
O simpático e seduzido espectador, que os havia auxiliado a fugirem da polícia, custeando de seu próprio bolso o frete necessário para a mudança de todos os apetrechos e badulaques do circo, era filho único de um promissor e abastado fazendeiro do interior do estado, que sempre atendia a todos os caprichos de seu único herdeiro, uma vez que esse opulento e amoroso pai era um solitário viúvo. A pedido desse mesmo filho, ele conseguiu junto à Câmara Municipal uma licença de um ano para que o circo pudesse funcionar livremente na cidade, sem precisar pagar nenhum tipo de taxa, tributo, e nem mesmo o aluguel do terreno onde o circo seria montado. É certo que, apenas três meses depois, o circo já estava se mudando novamente, pois tudo aquilo que é novo pode ser bastante sedutor, mas com o tempo, logo se desgasta e fica velho. Assim, a novidade lúdica do circo, que no início encantou a todos, logo também ficou obsoleta e ninguém mais se interessou em pagar para ver os espetáculos. Até mesmo as contorcidas carícias da polonesa Cecile logo perderam o encanto, pois muito rapidamente se soube que a bela polonesa era do tipo de criatura insaciável. Tal como fazia com seu corpo no palco durante o espetáculo, para a alegria e espanto de todos, no leito não era diferente, contorcendo-se para todos os lados e para qualquer um que lhe causasse algum tipo de interesse. Sendo o apetite dessa polonesa bastante voraz, há quem diga que até mesmo o velho viúvo, pai de seu benfeitor, foi agraciado com um espetáculo particular, que deixou o pobre coitado de cama por vários dias.
Foi assim que, mesmo em terras brasileiras — considerada por grande parte dos habitantes do velho mundo como a terra da oportunidade — longe dos grandes teatros e das atrativas salas de cinema da Europa, o Grande Circo Chittway manteve seu status de eterno e incansável nômade. Perambulando agora pelas diversas e nada promissoras cidades do interior do Brasil, tentando sempre se manter distante das capitais e das perseguições da justiça, sempre a serviço do governo com sua insaciável sede de taxas e tributos.
A situação do circo e de seus integrantes aqui no Brasil não estava muito diferente daquela enfrentada na Europa nos últimos tempos. Certamente, o velho mundo estava sendo castigado com uma grande guerra no Norte, levando a economia europeia, que já enfrentava uma crise há tempos, a ficar ainda pior. No Brasil, mesmo com todas as dificuldades, havia uma vantagem satisfatória de não haver invernos rigorosos com violentas nevascas e o intenso frio que assolava a Europa todos os anos. No clima tropical, as apresentações do circo poderiam acontecer quase o tempo todo. Na maioria das cidades do interior, uma novidade como o circo tornava-se bastante atrativa, uma vez que nessas pequenas localidades ainda não havia chegado o cinema e nem ao menos contava com um simples teatro para o entretenimento de seus habitantes. Num país de grande extensão territorial como o Brasil, majoritariamente católico com sua rigorosa cultura coercitivamente religiosa, havia sempre festas e quermesses quase o ano todo em diversas e diferentes cidades pelo ermo sertão brasileiro. Nessas festas, que movimentavam toda a população da cidade e de suas cercanias, um espetáculo como o circo era sempre uma atração à parte.
Isso aconteceu há mais de cinquenta anos, quando eu ainda era um jovem adolescente em meu primeiro emprego, tentando juntar alguns trocados para sair…